30 de set. de 2010,21:43
QUADRAGÉSIMA NONA LEVA

Pequenos Mundos
Pintura: Nestor Lampros







CICERONEANDO


Depois de algumas tantas edições, resta-nos sempre certeira e vigorosa a presença veemente do verbo aprender. E tal acepção nunca feriu convicções nem tampouco afastou algumas certezas um tanto óbvias. Pelo contrário, com o que dispúnhamos em mãos acrescentou-se a novidade característica de outras vozes, seus tons, suas pulsantes verdades. Receber um sem número de textos e obras para apreciação nos remete à tarefa de destinar olhos ao mundo como se tudo fosse visto pela primeira vez. Ainda que tudo na vida seja objeto de transformação perene do algo já existente, a ideia do novo não pode ser tida como algo deveras limitado e pouco provável de acontecer. Para tanto, é necessário que percebamos os homens e seus feitos numa dimensão mais ampla possível. No terreno da Literatura e das Artes em geral, as expressões ganham corpo vivo pela capacidade de arrebatamento proporcionada aos nossos mais elementares sentidos. Parafraseando um pouco Caetano Veloso, cada autor ou artista sabe bem o que a vivência das dores e delícias da existência é capaz de exprimir. Enxergar na escuridão seria apenas uma delas. Some-se a isso a perspectiva de sermos cúmplices de grande parte das confissões expostas pelos criadores. Há muito se foram as verdades absolutas. De modo desavisado, algo pode nos tomar de assalto a qualquer instante. Aí reside a força das criações. Por essas tantas razões, tocar adiante qualquer meio editorial requer, sobretudo, um frequente exercício de escuta. A Leva que agora se anuncia abraça as referências contidas na poesia de Lita Passos, Alberto Boco, Lou Viana, Fabrício Clemente, Basilina Pereira, Carla Sagulo e Floriano Martins. Há também um pulsante mosaico humano a vibrar nas telas do artista plástico Nestor Lampros. Vislumbramos a densidade dos sentimentos presente nos contos de Geraldo Lima, Daniela Mendes e Wilton Cardoso. Nossa pequena sabatina rende escutas ao poeta Gustavo Felicíssimo, que nos fala sobre o gênero haikai e outros temas literários. O dilema das escolhas pontua o texto cinéfilo de Larissa Mendes, numa reflexão sobre o longa Mr. Nobody. Através da crônica de W. J. Solha, somos conduzidos ao curioso nexo entre vocabulário e literatura. Aos nossos leitores, ofertamos descobertas que nunca cessam.



*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.




JANELA POÉTICA (I)


OLHAR I

Lita Passos

Para Antonio Sapiranga


Debruçada nos varais dos teus poemas
A chuva lava, leva, enxuga
O sol a pele do verso.

Debruçada nos varais dos teus versos

Varro letras, envernizo verbo
Com lágrimas deste olhar.

Debruçada nos varais de tuas pedras

Lambo limbo pontos profundos

Cresço nas tuas reticências.

Debruçada nos varais de tuas políticas

Sou verbo, sou dança, sou chama

Com maestria cumpro palavra.

Debruçada nos varais do teu amor

Sinto o “Beijo de Deus”

Tua vertigem tua essência.



(Lita Passos é Gestora de Comunicação, Administradora, Professora, Poeta e Atriz. Nascida em Cruz das Almas-Ba, publicou na Revista da Academia de Letras do Recôncavo – ALER (poesia e prosa - 2008) pela FTC, “Mão Cheia” (poesias e contos - 2005) incentivo FazCultura, Flores de Fogo” (Poesias) - 1994, Editora Nova Primavera, Coletânea Mapa das Ilusões com o livro Conteúdo Suspeito (Editora Nova Primavera) - 1992, “Nosotros - Antologia Poética Brasil/Espanha” (Editora Pórtico) - 1996. Publica poemas desde 1990 em jornais e revistas literárias)





Céu Azul
Pintura: Nestor Lampros




ZEZÃO

Geraldo Lima


A figura atravessou a ponte e veio no rumo de casa. Menos que um homem visto assim mais de perto: um espantalho, um bicho.

Corremos pra dentro de casa. De lá, espiando pela greta da janela o ser desgrenhado especado ali no terreiro. Nosso pai veio lá do curral e se aproximou dele. Com certa alegria, a voz do nosso pai: Ora, mas se não é o Zezão de guerra! Quem é vivo sempre aparece... Abrimos então a janela: ali, à nossa frente, no ser maltrapilho, a lendária figura de Zezão. Com quantas festas acabara? Havia roubado a mulher de quem? Duas mortes nas costas, nenhum peso na consciência.

Louco. Andara pelas estradas e pelos ermos. Nos campos, entre o gado, roendo coco e chupando ingá — João Batista, no deserto, sobrevivendo com quase nada. Noção nenhuma de vida e morte. De cócoras, quase nu diante da nossa casa. Por pudor, as mulheres lá na cozinha. Em troca da roupa limpa, a mão suja estendida cheia de coco indaiá. Um quase sorriso em meio à barba cerrada. Ruína de dentes. Tudo o que lhe restara: o silêncio e uma generosidade insana.


(Geraldo Lima nasceu em Planaltina, GO. Professor e escritor, é autor dos livros A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Cultural, FCDF), Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora) e UM (romance, LGE Editora/FAC). É um dos colunistas do site O Bule)





O Jogador
Pintura: Nestor Lampros





JANELA POÉTICA (II)


POSSE

Fabrício Clemente


Enquanto a chuva te beija,
não esquece, te dissolve.
Parte, como a paisagem

que a si mesma se devora.


Toda fuga é permitida
ao que pilha o próprio punho;
todo resquício é rosácea
no trompete do trovão.

Estas folhas, estes dias
falam frutos violentos.
Na mão molhada da terra
as árvores cedem, se deitam.

Enquanto foge, não esquece:
Remonta teu rosto,
renova tua morte,
vira rio, chuva, vento.


(Fabrício Clemente nasceu em 1980 no estado de Goiás. Atualmente vive de São Paulo a Goiânia e de Goiânia a São Paulo, onde prepara dissertação de mestrado sobre os poetas Roberto Piva e Claudio Willer. É apaixonado por rock, especialmente por Dylan, Doors e Beatles. Adora Jazz dos anos 40 e 50. Participa do Blog Vida Miúda)




DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Larissa Mendes


Mr. Nobody. Canadá/França/Bélgica/Alemanha. 2009.



"Enquanto nós não escolhemos, tudo é possível".


No livro O Encontro Marcado, Fernando Sabino menciona uma frase do escritor francês André Gide: “o diabo desta vida é que, entre cem caminhos, temos que escolher apenas um e viver com a nostalgia dos outro noventa e nove”. Não haveria citação mais propícia para ilustrar Mr. Nobody.

O ano é 2092 e Nemo Nobody (Jared Leto) o último humano mortal de uma espécie agora imortal está prestes a completar 118 anos, embora sua última lembrança é de quando tinha 34. Durante este período, acompanhamos os desdobramentos de um Nemo menino, jovem e adulto. Partir com a mãe ou ficar com o pai? Casar com Anna, Elise ou Jeanne? Estas são apenas algumas de suas indagações. Mas, afinal, qual desses caminhos de fato Nemo tomou e quais dos ‘outros 99’ são frutos de sua imaginação?

O filme é bastante experimental e ambíguo para ser facilmente rotulado. Mesclando drama e ficção futurista, Mr. Nobody é uma história sobre a complexidade da vida, suas perspectivas, escolhas e acasos. Até porque para cada escolha – consciente ou não – existem consequências e renúncias. Parafraseando Tennessee Williams, citado em determinado diálogo: “tudo poderia ter sido outra coisa, e seria igualmente importante”.

Com roteiro e direção do belga Jaco Van Dormael (cineasta de O Oitavo Dia e Um Homem Com Duas Vidas) o longa, montado em flashbacks não-lineares, repleto de indas e vindas, é um quebra-cabeças embasado em diversos conceitos científicos, como a Superstição do Pombo, Teoria do Caos, Teoria das Cordas, Big Crunch (teoria inversa ao Big Bang), entre outros. Envolto por uma atmosfera poética e filosófica a começar pela simbologia do trem do próprio pôster –, sua bela trilha sonora e fotografia contemplam temas como o tempo, o amor, a morte, o destino e a imaginação. Ninguém (em latim, nemo) sairá do cinema ileso aos questionamentos da película e de sua própria existência.


(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)





Nroyht
Pintura: Nestor Lampros




JANELA POÉTICA (III)


ÁRBOL DE ORO

Alberto Boco


Es fácil ver metal en la copa
brillo de oro con el sol inclinado
primero la mirada con el sol de través
y no hay otra cosa más que simple fresno
una mañana tibia de mayo por la calle del triunvirato
entre el asfalto y las paredes los vidrios
devuelven la escena que pasa
y detrás la mirada rumbo a lo que viene
a cada metro en un día que crece
la calle del triunvirato
donde un árbol que no es de oro
no es más que la mirada
la carga de nuestra ilusión
en un punto de lo azaroso
como ha sido siempre
cuando miramos
detenidamente
algo


(O poeta Alberto Boco nasceu em Buenos Aires. São de sua autoria os livros de poemas “Arcas o pequeñas señales” (1986), Ausentes con aviso (1997) e “Riachuelo” (2008), dentre outros. Por sua obra, recebeu prêmios e menções na Argentina. Em 2007, coordenou o Café Literário “Mirá lo que quedó”, junto com Alicia Grinbank, Alfredo Palacio e Rolando Revagliatti)





Mulher e Instintos
Pintura: Nestor Lampros






Narcossol

Wilton Cardoso


Era um sol desabado de domingo. Um sol adolescente borrifando um fim de tarde no capim. As lembranças brotavam no pasto das sensações. O menino brincava sobre os paralelepípedos, sob a luz cinza dos postes. O sol das lâmpadas se afundava nos nervos, era um sol lunar feito de vidro e metais proliferando uma sombra vadia na rua vazia. Seu olhar, um quintal baldio se estendendo até o agora, mergulhado naquele sol narcótico prolongando-se na duração. O sol é o olhar de espanto do menino, que insiste iluminar o mundo de viés, que insiste na surpresa e resiste ao compasso regular da hora, do agora medido e monótono que quer usurpar o sol de seus olhos, deixando-o cego ao impreciso das turvações, deixando limpa a cara das coisas, a vida exata e os fatos esclarecidos. O menino então terá crescido. E pronto. Um sol no entanto teima em brotar nas fendas todas de seu solo. Um solo movediço, poroso e quebradiço, útero de luz e embriaguez. Um sol que se gesta ainda melhor nos desertos, o mesmo sol entorpecente, o mesmo sol potente se proliferando, sempre outro, como capim de luz, inumerável sol erva rasteira que brilha e se dana lançando-se ao ar ao acaso, ao alto até o vácuo, até ejacular o seu instante no negror do nada: pleno ébrio precário. Que não tem fim


(Wilton Cardoso mora em Goiânia-GO. É poeta e ensaísta e publica suas obras nos blogs minutos de feitiçaria e vida miúda)





Homenagem a Miró
Pintura: Nestor Lampros





JANELA POÉTICA (IV)


OS SAPOS

Basilina Pereira


A natureza é um saco de pancadas.
Daqueles consistentes,
bem encorpados,
tecido com magia e seiva
pra resistir à mão do homem,
à mente do homem,
ao homem.
Quanto?
Até o saco encher-se de gritos
e das veias oceanográficas da matéria
emergirem os sapos que verdejaram
em pântanos de curare,
sem cobras...para devorá-los.
E, então, os sapos comerão o homem,
comerão o homem,
os sapos.

(Basilina Pereira nasceu em Ituiutaba-MG. É professora aposentada, advogada e poeta. É autora de “Quase Poesia” (LGE Editora – 2009) e “Janelas” (Verbis Editora – 2010)




Mulher Fruta
Pintura: Nestor Lampros









PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão


No vasto panorama da literatura brasileira há sempre pessoas impulsionando o motor das criações. Nesse vão, apenas ter vontade soa como algo por demais reducionista, sendo necessário abarcar uma visão capaz de abreviar as distâncias entre as projeções e a realidade que urge cada vez mais complexa. Hoje, não são poucos os que se propõem a capitanear movimentos em prol do fazer literário. Apoiados sobretudo nos recursos trazidos pelas mídias digitais, editores e autores travam verdadeira cruzada por aquilo que consideram um caminho viável a seguir. Na compressão tempo-espaço, nos foi dado conhecer e acompanhar as articulações de pessoas das mais diversas orientações, todas elas elegendo gêneros a percorrer. Gente como o paulista Gustavo Felicíssimo, poeta que hoje se afigura verdadeiro militante em defesa das palavras.

Residindo na Bahia desde 1993, Gustavo é exemplo vivo de uma vida dedicada à literatura. Além de poeta, é pesquisador e ensaísta. Em Salvador, juntamente com outros escritores, fundou o tablóide literário SOPA, do qual foi seu editor. Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Organizou e fez publicar Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna, hoje em sua segunda edição. Tem fomentado diversos eventos literários e conduz com valiosa obstinação um trabalho fundamentado na pesquisa, sobretudo poética. Fruto de seus estudos e de sua investida apaixonada, nasce seu livro de estreia, Silêncios (Editora Via Litterarum), publicação voltada para o haikai e que será lançada no dia 9 de outubro, em Salvador. Nessa entrevista, Gustavo discorre sobre a importância do haikai na cena literária nacional, além de pontuar aspectos sobre sua trajetória enquanto resignado ativista cultural.



Gustavo Felicíssimo
Foto: Pedro Augusto


DA – Mesmo tendo uma longa trajetória voltada para os versos, digamos assim, mais tradicionais, você está em vias de lançar seu primeiro livro, Silêncios, obra dedicada inteiramente ao haikai. O que determinou essa sua escolha?

GUSTAVO FELICÍSSIMO – Nesse trabalho, publico poemas imersos em formas originárias do Japão. Além do haikai, há capítulos com tankas, haibuns, senryus, haikais encadeados e, como posfácio, um estudo sobre os mais relevantes aspectos do haikai no Brasil. Trata-se da primeira vez que se publica uma obra com essas características na Bahia. A possibilidade do pioneirismo e a qualidade, apontada por especialistas, que a obra traz fizeram-me optar por sua publicação agora.


DA – Há, de fato, um hiato muito grande entre o haikai japonês e o poema ocidental?

GF - Essa resposta pode ser dada de muitas maneiras. Dependendo da visão do poeta, sim e não são justificativas plausíveis. O haikaísta que segue o cânone do tradicional haikai japonês dirá que sim, embora as transformações havidas no Japão e no mundo tenham ampliado o seu horizonte. O haikai foi utilizado à maneira que melhor se adequou à necessidade de cada autor e lugar.

Parece-me coerente e apropriado fazermos uma síntese de como o haikai se desenvolveu em língua portuguesa no Brasil, pois nossas primeiras referências, curiosamente, têm como base autores franceses, não japoneses, como podem pensar.

O baiano Afrânio Peixoto introduziu o haikai no Brasil do mesmo modo como era feito na França: com título, métrica de 5/7/5 e sem rima, como esse que é de sua autoria:

A BELEZA ETERNA

O sabiá canta,
Sempre uma mesma canção:
O belo não cansa.

Após, Guilherme de Almeida trouxe uma proposta que até hoje chamam de parnasiana. Ele introduz rimas no haikai; uma entre o primeiro e o terceiro verso, outra que acontece entre a segunda e a sétima sílaba do segundo verso, veja:

VENTO DE MAIO

Risco branco e teso
que eu traço a giz, quando passo.
Meu cigarro aceso.

Somente após esses momentos, o haikai tradicional, oriundo da lavra de japoneses radicados no Brasil, veio à tona, sem título ou rima, mas mantendo a métrica. Podemos defini-lo como aquele que melhor valoriza os elementos da natureza procurando captar um instante, uma paisagem, referindo-se ao agora, de forma simples e com sentido completo, como esse do mestre Oldegar Vieira:

Junquilhos envergam.
Flores de neve pousando
nas hastes, de leve.

Mas quando falamos de haikai no Brasil, o nome de Paulo Leminski surge invariavelmente em primeiro plano. Alinhado aos valores contraculturais e libertários dos anos sessenta, Leminski produziu uma obra tensa, densa e provocadora como a sua própria personalidade. Ele produziu um haikai livre de amarras, cheio de sacadas, clicks, como dizia. É de sua lavra o seguinte haikai:

passa e volta
a cada gole
uma revolta


DA - Percebe-se que o haikai ainda não é um gênero tão difundido no Brasil. A que possíveis razões você atribui isso?

GF – Não vejo assim. Hoje há até experiências de haikai na sala de aula em alguns lugares do país e dois grupos de estudo e discussão sobre o tema na internet, ambos capitaneados por grandes mestres, onde aprendi muito. Ademais, o haikai influencia a poesia brasileira desde o modernismo. Em Oku – Viajando com Bashô, obra fundamental de Carlos Verçosa, há uma passagem de uma carta de Drummond para Oldegar Vieira, onde ele afirma que “o gênero sempre me atraiu pela graça, leveza e poder de síntese, alcançando mesmo, às vezes, profundidade conceitual”. Em Alguma Poesia (1930) Drummond publicou um poema que, não raras vezes, é identificado como um haikai:

Stop.
A vida parou
ou foi um automóvel?


DA – Silêncios possui uma condução que remonta à pesquisa poética, quiçá um verdadeiro estudo sobre as ramificações do haikai. Qual o maior desafio na concepção de uma obra como esta?

GF – Parece-me que talento, conhecimento e prática estão na base de tudo. As paredes de uma casa, por exemplo, não devem ser levantadas sem que haja o alicerce. A mesma coisa se dá na poesia.


DA – Você é um militante literário incansável e, frequentemente, garimpa e descobre poetas e outros tantos autores. O que considera mais árduo nesse tipo de jornada?

GF – Faço o que está ao meu alcance e, às vezes, além dele, participando como membro do Comitê do Proler aqui na região sul da Bahia, promovendo saraus, debates, colóquios, seminários e até organizando a publicação de algumas obras, como é o caso de Diálogos, já em segunda edição. Mais árduo nesse tipo de jornada é se perceber, muitas vezes, gritando para surdos e acenando para cegos.


DA – Em sua opinião, qual é o principal impacto trazido pela literatura digital?

GF – Eu não saberia dizer ao certo. Parece ainda muito cedo para conclusões. Observo o fato de que a mídia impressa está mais voltada para os vestibulares, por isso a considero superficial. Já os cadernos literários dos jornais que ainda sustentam esse tipo de publicação, cada vez mais são lidos apenas por escritores e alguns apaixonados. Por sua vez, a internet está cumprindo importante função ao democratizar o acesso a autores que, não fosse por ela, certamente jamais seriam lidos por nós. Em oposição, a facilidade de se publicar em meio virtual esconde um sem fim de coisas que sequer merecem serem lidas.


DA – Entre seus planos para o futuro, está o desejo de fundar um portal sobre a literatura baiana. Há algum projeto definido para isso?

GF – Certamente. Em pouco tempo colocaremos no ar um site à altura da literatura baiana e também uma editora voltada exclusivamente para o meio virtual.


DA - Muitos são os que escrevem, mas poucos são os afeitos à escuta, ao aprendizado pautado em referências clássicas, formais ou fundamentadas. Acredita que tal conduta seja um sério desvio de nossos tempos de então?

GF – Essa é uma particularidade que faz parte da literatura de todos os lugares em todos os tempos e não nos estranha. Seria bizarro se a mediocridade imperasse sobre o conjunto literário da nação. Os estelionatários intelectuais estão condenados desde sempre, pois sempre haverá um facho de luz brilhando na escuridão.


DA – Afinal, o que buscam os poetas?

GF – Cada poeta busca, ao seu modo, a chave para esse enigma. As descobertas são muitas, por isso o sentido de Ser e Estar no mundo possui significantes que se perdem nas profundezas da palavra. Daí a assertiva de Gullar, para quem o poeta deve buscar o indizível sabendo o que quer dizer.








Meu Irmão Lendo
Pintura: Nestor Lampros





JANELA POÉTICA (V)


AUTO-RETRATO

Lou Viana


Pernas grossas e varizes
nariz tolo
torto pensamento

algumas próteses


Não sou a maior das maravilhas

nem a pior das hipóteses


(Lou Viana é graduada em Letras e Psicologia. Tem especialização em Literatura Brasileira e em Literaturas Africanas e Mestrado em Teoria Literária. De 1999 a 2007, participou da comissão editorial do Jornal Panorama e do Poesia Viva (jornais de poesia da cidade do Rio de Janeiro). Publicou: "O céu do lençol" pela Sette Letras, em 1996, e "Fina ficção", em 2010, pela Editora da Palavra)






OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão


TULIPA RUIZ – EFÊMERA



Que o cenário musical brasileiro sempre foi capaz de produzir cantoras de qualidade, isso todos estamos um tanto cansados de saber. Porém, é necessário observar tudo com cautela, pois, atualmente, uma certa tendência de uniformização parece rondar as aparições de muita gente. Ao mesmo tempo em que presenciamos uma avalanche de talentos, lidamos também com as ciladas tramadas pela falta de imaginação e originalidade. Daí, tudo corre o risco de se relativizar e percorrer um caminho médio, alternativa incapaz de provocar distinções sadias. Será, então, que nossos ouvidos estarão fadados a um fosso de mediocridades?

Prestando atenção ao trabalho de Tulipa Ruiz, podemos enxergar certa luz no fim do túnel. De modo suave e até certo ponto despretensioso, a moça deixa sua voz e seu verbo passear por entre a melodia das canções. Seu álbum de estreia, Efêmera, nada na contramão do óbvio. A receita por aqui não admite tons agressivos, combativos e nem tampouco fantasiosos. Por entre as faixas, fica claro que Tulipa não almeja encantar pelos seus vocais ou chamar atenção pelas letras de tom autoral. Há apenas a força de um convite leve a percorrer canções como a carro-chefe Efêmera (com participação especial de Céu), a sublime Do amor e a delicada Só sei dançar com você.

Os arranjos acertados do disco dialogam de perto com as intenções da artista. Tulipa constrói seu trabalho inaugural sem afetações e apostando nos dotes da simplicidade. O abordar das relações e de algumas paisagens urbanas são itens bem incorporados ao espírito do disco. O que dizer da irreverência presente na faixa Pedrinho? Certamente, uma espécie de canção de amor ao avesso. Em A ordem das árvores, os sentimentos brincam de um bucolismo que cheira a modernidade. Diferente do que se possa imaginar, o nome de batismo do álbum aspira a um sentido de permanência. Não existe passado nem futuro, apenas as cores de um agora, objeto mais palpável às nossas vacilantes mãos.


* Para abrir os ouvidos ao disco, clique aqui




JANELA POÉTICA (VI)


PULSOS DE ANJA LECHNER

Floriano Martins




Imagem: Floriano Martins



O teu corpo recebe em seu leito um verbo distinto a cada noite.
Pequenos afazeres da casa protegem o dia de outros assuntos.
Recosto-me na sombra gasta do abismo a contar teus beijos.
O primeiro me ensina os segredos da pólvora.
Outro me faz crer que posso voar.
São como desafios silenciosos os pequenos rostos boiando no espanto de cada olhar.
Sinais de desordem que a vida elege em seu trânsito fugaz pela prosperidade do tempo.
Palavras com que escavo a invisibilidade de teu vulto.
Silêncio que abrigamos ao lado delas para que preservem o que sabem a nosso respeito.
O movimento pendular de teus beijos acentua o labirinto que tecem por dentro e por fora de meus lábios.
Um braseiro descreve as imagens do desejo como amuletos vorazes.
Rebatizo teus ritos como quem desvenda as virtudes da tempestade.
O teu corpo sofisma os disfarces da noite com seus espectros verbais.
Reconheces a volúpia indecifrável de cada pantomima?
Ainda recordas o nome com que me fiz passar por ti?
Eu mesmo tratei de esquecer-me, para que não tivesses como voltar.



(Floriano Martins é cearense e já publicou alguns livros, entre poemas, ensaios, traduções e preparação de antologias alheias. Coordena o Projeto Editorial Banda Hispânica. Tem uma incorrigível inclinação para envolver outras pessoas em tudo que faz, em decorrência do que certamente estejam em curso projetos dentro e fora do país, envolvendo a publicação de livros e a organização de eventos)




O Desenhista
Pintura: Nestor Lampros




A IMPRESSIONANTE INFLUÊNCIA VOCABULAR DA LITERATURA

Por W. J. Solha


Tornou-se lugar-comum, na imprensa, reportar fatos como o acidente com o avião da TAM, que matou 162 passageiros, ou o deslizamento de terra no Morro do Bumba, em Niterói, como “tragédias anunciadas”, influência evidente do belo título que é o Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez. Claro que isso não é de hoje. Todo sujeito ciumento é um “Otelo”, desde que Shakespeare escreveu a peça a respeito do suplício do Mouro de Veneza. Todo homem excepcionalmente forte é um “Hércules”, desde que Eurípedes encenou a tragédia Heracles entre os gregos, Sêneca levou ao palco o Hércules sobre o Eta, entre os romanos. Do mesmo modo, toda viagem ou percurso repleto de percalços passou a ser “uma odisséia”, desde que Homero escreveu a história de Ulisses, cujo nome grego era Odisseu. Daí 2001 – Uma Odisséia no Espaço, o filme de Stanley Kubrik – daí Ulisses, o famoso romance de James Joyce, que consome cerca de 800 páginas pra contar o que foi um dia – 16 de junho de 1904 - na vida de um certo dublinense chamado Leopold Bloom. Se esse caminho, porém, é de mais sofrimento do que aventura, o rótulo é o de “via-sacra”, “via-crúcis” ou “calvário”, por conta do peso do texto evangélico, que transformou, também, todo traidor em “judas”, toda vítima em “cristo”, todo mau caráter em “judeu”, toda maldade humana em “judiação”, todo homem caridoso em “bom samaritano”, todo fim do mundo em “apocalipse”. Do mesmo modo, abrindo para o Velho Testamento, todo começo de qualquer coisa é “gênesis”, todo assassino é um “Caim”, todo lugar maravilhoso é um “paraíso”, toda debandada é um “êxodo”, toda enchente é um “dilúvio”, todo vidente é um “profeta”, toda figura com salvadora liderança é “messiânica”, toda decisão sábia é “salomônica”, todo embate desproporcional, tipo camundongo Jerry contra o gato Tom, Oliveiros contra Ferrabrás, Vietnã versus Estados Unidos, é uma luta de “Davi e Golias”.

Quem nunca classificou alguma cena terrível de “dantesca”, por conta da Divina Comédia de Dante? Quem nunca chamou o herói de uma causa perdida – como Vitorino Papa Rabo, de Zé Lins; ou o Príncipe Michkin, de Dostoiévsky - de “quixotesco” devido à obra de Cervantes? Quem nunca disse que um sujeito em dúvida terrível é “hamletiano”? Caramba, já vi muita gente demasiado séria ser chamada de “Dom Casmurro”, por causa do livro de Machado de Assis. E de “masoquista”, devido ao romance A Vênus de Peles, de Leopold Ritter von Sacher-Masoch, no qual um personagem somente chega ao orgasmo depois de surrado pelo amante da esposa. Claro que você acaba de se lembrar de que “sádico” se deve ao Marquês de Sade e a seus romances – como Os 120 Dias de Sodoma. Do mesmo modo, “pantagruélico” é o comilão por excelência, desde que Rabelais escreveu seu romance Pantagruel, e “acaciana” é sempre uma figura pública tipo Conselheiro Acácio, pseudo-intelectual pomposo, desde que Eça de Queirós escreveu o romance O Primo Basílio.

A quanto mulherengo já demos o nome de “casanova”, devido ao libertino escritor Giácomo Casanova, que – segundo afirma nos vinte e oito volumes de suas memórias – enumerou cento e vinte e duas mulheres que possuiu ao longo da vida! Ou de “Don Juan”, por causa do personagem fictício que, por suas inúmeras conquistas amorosas, compareceu em várias obras de arte, como a peça Don Juan Tenório, de José Zorrilla, e a ópera Don Giovanni, de Mozart! Quem já não disse que no meio do caminho há uma pedra e não se perguntou “e agora, José?”, graças a Drummond? Ou “que país é este?”, graças ao Affonso Romano de Sant´Anna?

Um dos casos mais famosos de apropriação desse tipo é o de Freud, que viu no personagem clássico de Sófocles – Édipo Rei – o protótipo do portador do complexo emocional que envolve amor e ódio na relação filho-mãe-pai, tendo Gustav Jung estabelecido a mesma relação filha-pai-mãe no Complexo de Eletra, partindo das peças de Sófocles e Eurípedes que contam como essa personagem matou a mãe, Clitemnestra, pra vingar a morte do pai, Agamênon.

Quanta História por trás de cada palavra!


(W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal)





Muitos
Pintura: Nestor Lampros





JANELA POÉTICA (VII)


PACIENCIA

Carla Sagulo


Bajo la mesa
mi pierna lleva el ritmo

de algo tan veloz que se me escapa.


El tiempo se dilata en el mantel
como una mancha.

Lo apuro con un vaso

y no tarda en volver

la gota que rebasa puntual

cada segundo.

Decime

¿cuánto falta?
¿cuánto debe filtrarse todavía?


Ya nadie llora y sin embargo,

siempre se expande
entre vecinos la humedad.



(Carla Sagulo nasceu em Buenos Aires. Publicou “El vino de la casa” (Ediciones VOX, 2007) e “Fuego chico” (Nulú Bonsai Editora, 2009). Integrou a antologia “Lo humanamente posible” (Editorial El fin de la noche, 2008). É professora de Letras da Universidade de Buenos Aires e trabalha como tradutora e revisora, além de lecionar espanhol para estrangeiros)





Tomando Uma Corzinha
Pintura: Nestor Lampros




AS COISAS BONITAS SÃO TRISTES POSTO QUE SOZINHAS

Daniela Mendes


xxxxxmanhã.
O rosto do cara que veio consertar minha pia até parece uma caricatura de Lautréamont, mas isso não é melhor do quando éramos morcegos.
xxxxxxxxxxalmoço.
Aquele isqueiro que tu me deste, hoje, é só uma faísca que acende o fogão para preparar minha comida.
xxxxxxxxxxxxxxxsesta.
Chet Baker não tem um canino e sua boca mais parece uma janela para o abismo.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxanoitecer.
No teto, tem sim um carrossel de sombras parado.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxpausa a vida.
- Descobri que Fernando Pessoa também dava esmola de esperança com astrologia.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxtelevisão.
Na sala, uma ópera se perde numa cena de novela, enquanto o espírito de Leonard, o dog alemão de Billie Holiday, me visita com seu olhar tristonho.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnoite completa.
Pernilongos traiçoeiros camuflam seu vôo no estudo de violino da vizinha.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxmadrugada
Nos outros apartamentos, um universo de camas sonâmbulas rangem apaixonadas.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxenfim, sonho... ...
em preto e branco, uma vaca sozinha no meio do pasto me mata de inveja.



(Daniela Mendes é psicóloga e ensaia contos e quase-poemas em busca daquilo que chama A sua letra. A mais recente, primeira e única publicação foi na antologia de contos em e-book Histórias Possíveis, com outros escritores (de verdade). Livro cujo título é homônimo da revista/blog em que é co-editora com Wesley Peres. Anda em um movimento solitário para libertar a Paris descrita por Cortázar, Henry Miller, Sartre, Godard, Simone de Beauvoir e etc. do malvado Sarkozy no blog Minha Paris Imaginária. Gosta de fundir a cuca com Lacan e relê obsessivamente sempre os mesmos livros. Ocasionalmente, até aprisiona uma nova vítima. Só sofre liquidificação com música e, por isso, vez em quando, compõe sambinhas engraçados e tristes. Contato: dani.mfsousa@gmail.com (porque também tem estômago pra críticas))





Segrout
Pintura: Nestor Lampros




* Nas telas de Nestor Isejima Lampros, há um verdadeiro mosaico dos sentimentos humanos. Percebe-se no artista a influência do Cubismo enquanto elemento motivador das criações. Dentro dessa perspectiva, os homens retratados por ele esbravejam súplicas e desejos, tudo amalgamado num caldeirão borbulhante de signos tão comuns a todos os mortais.

Nestor manipula cores e formas como quem abre brechas no tempo. A despeito disso, um quê de memória aflora em seus contornos, revivendo Picasso, que nos apregoava ser a qualidade de um pintor dependente da quantidade de passado que este traz consigo. Os lampejos da existência assumem o controle da situação, creditando aos seres razoável parcela de autonomia sobre seus feitos. É, então, que o artista toma como instrumento de seu nobre ofício a possibilidade de intervir no destino mundano, fazendo-nos crer que até mesmo o inexplicável é capaz de ser domado pelas labaredas da intuição. Além de dedicar-se à pintura, Nestor Lampros também é quadrinhista, chargista, arte-educador e escritor.


 
publicado por Fabrício Brandão
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