*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.
3 EPIGRAMAS DE HILTON VALERIANO
Marta, preciso é o tempo a recobrar sua lição.
...
Semeiam as vagas a inconstância e o porvir.
...
Se podes amar, faça-se amado.
(Hilton Valeriano é professor de filosofia formado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Residente em Hortolândia - SP. Tem poemas publicados nas revistas Jornal de Poesia, A Cigarra, Veropoema, Germina, Zunái, Sibila)
Foto: Cristina Carriconde
O LUGAR DAS NUVENS E DOS RELÓGIOS
Wesley Peres
Quero mudar o lugar das nuvens e dos relógios, angariar fundos para comprar uma máquina tão grande quanto teus olhos. E te darei de presente o lugar vago das nuvens e dos relógios, e também a máquina tão grande quanto os teus olhos. Goiânia é uma cidade e lá me lembrei de você, saindo da loja Soares Silva de materiais hidráulicos, porque hidra lembra-me a mulher de água daquele poema de João Cabral. Na madeira do meu corpo, dentro da madeira do meu corpo, há uma água desidratada, bela quanto os teus dedos embrulhado de cabelos lisos. E a lisura costuma ser o disfarce das frestas, assim como é em sua pele que vislumbro alguma coisa, que não é em-si, nem tampouco é para os meus olhos.
(Wesley Peres é escritor e psicanalista. Mora em Catalão – GO. Autor do romance CASA ENTRE VÉRTEBRAS, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006. São dele os livros: PALIMPSESTOS (poemas), vencedor da Coleção Vertentes cegraf/UFG 2007, RIO REVOANDO (poemas) USP/COM-ARTE 2003; ÁGUA ANÔNIMA (poemas), vencedor da Bolsa Cora Coralina 2001, publicado em 2002 pela AGEPEL)
Foto: Cristina Carriconde
JANELA POÉTICA (I)
ÂMAGO
Débora Tavares
Render-se à simplicidade das horas.
Apanhar um punhado de areia,
ampulheta viva, esvaindo sais e pedras.
Diluir o gozo da posse
para que restem
apenas as curvas da mão.
(Débora Tavares é paulista, graduada em Letras. Ministra oficinas de criação de haicais. Tem poemas postados em diversos veículos literários: Revista Entrelivros, Jornal Rascunho (Curitiba), Jornal “O Casulo”, Revista Puçanga, Revista Máquina do Mundo, Germina Literatura, entre outros)
OUVIDOS ABERTOS
Por Fabrício Brandão
MARKU RIBAS – 4 LOAS
Falar de Marku Ribas, mais do que remontar a um rico cenário musical nacional de outrora, é redescobrir o Brasil. Contudo, diga-se isso sem qualquer tipo de inclinação saudosista, pois o que temos hoje também merece olhares especiais. Mas o que significaria, de fato, redescobrir uma plural nação pelos sons desse mineiro, que sabe como ninguém, acumular as feições de cantor, compositor, violonista e percussionista? Respostas melhores são trazidas pelo vento vibrante que atravessa os quatro cantos do álbum que ora se apresenta.
Espécie de precursor do samba-rock e dono de uma trajetória que abraça sonoridades bem típicas do funk, soul e jazz setentistas, Marku é puro vigor em cada uma das faixas de seu 4 Loas. À vitalidade de sua interpretação vem se somar o cuidado com arranjos bem abrasileirados, tudo misturado num caldeirão cujo sotaque soa moderno a todo vapor. E cabe um adendo aqui: o artista há quase 20 anos não gravava um disco inédito. Por tudo o que o álbum traz, não fica difícil saber por que Marku é deveras admirado por muita gente da cena musical brasileira atual.
Uma a uma, cada canção de 4 Loas é pontuada por um trabalho vocal que chama atenção pela intensidade com a qual o artista mergulha seu canto cheio de suingue. E os ouvidos fatalmente serão atraídos por faixas como Aurora da Revolução, Querobem Querubim, Altas Horas e Daomé. Some-se ao já dito, toda a suavidade presente na bossa de Doce Vida. Com quase 50 anos de carreira, Marku é um tipo de artista que se enquadra numa condição muito especial, qual seja a de transmitir autenticidade quando o assunto é compor letras. Em seu canto, certa referência ao universo feminino aparece entrecortada como sublime forma de admiração. Tudo é muito cheio de vivacidade e de uma sincera vontade de dar continuidade aos caminhos. A redescoberta enfatizada no início está ao alcance de todos os amantes da boa música. Aliado aos apelos da modernidade, Marku Ribas paira vibrante e sem deixar de lado a personalidade que o lançou. Tudo o mais é muito pouco para definir um belo trabalho.
* Para abrir ouvidos, clique aqui
Foto: Cristina Carriconde
JANELA POÉTICA (II)
INFINITO
Edson Bueno de Camargo
pés como mobília da casa
na pequena varanda
de lírico imenso e verniz de besouros
(Edson Bueno de Camargo escreve algumas coisas que acabam se chamando poesias pela boca dos outros, despudoradamente concorda. Já está se tornando uma espécie de eminência parda em sua cidade: tipo louco da aldeia ou bêbado conhecido. Tem algumas coisas publicadas em livros, coletâneas e pela Internet afora. Teme que se parar de escrever, torne-se invisível aos poucos)
Foto: Cristina Carriconde
SÓ POR UM INSTANTE
Gerusa Leal
Bum. Bum. Bum. Bum. O socador golpeia o chão compactando o solo, bum, bum, bum, bum. A poeira cinzenta cobre as botas cinzentas sem cadarços sem meias as pernas magras mergulham nas calças desbotadas e os joelhos dobram e esticam e bum, bum, bum, bum, e as mãos ressecadas pelo cimento e calejadas pela madeira das hastes do socador que bum, bum, bum, bum, e a camisa bem gasta aberta no peito que se contrai e distende enquanto o socador continua, bum, bum, bum, bum, e a cabeça que levanta deixando ver o rosto e bum. O socador pousa na terra, a mão segura a ponta da camisa e passa no rosto enxugando o suor. E ela vê então o pedreiro, mas só por um instante, um ínfimo instante que dura apenas o tempo de lembrar-se de si. Aperta o passo atravessa a rua as pessoas indo e vindo, e só vê agora as fachadas das lojas, as placas, os pontos de referência, está com pressa e não sabe direito o caminho.
Perde-se. Perde a hora. Perde a urgência e se senta na tora de madeira embaixo da árvore. E bum... bum... bum... bum... Deixa a moça ela tá descansando e bum... bum... bum... Menino, para de mexer aí e bum... bum... bum... e o ônibus parou e abriu a porta e alguém subiu dando bom dia ao cobrador. Será que tá passando mal? e bum... bum... tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, reconhece o martelo na madeira desmontando o tapume.
O cheiro da rua é forte, mistura de esgoto com fruta, verdura, carne, suor, óleo diesel e flores. Suspira e bum. Sumiu tudo ao redor, tudo parou, ela sumiu-se de si. Foi tanto tempo, foi quase nada, e aos poucos bum... bum... bum... bum... o sangue correndo nas veias, o silêncio zumbindo ao redor e bum, bum, bum, bum, bum, está atrasada, abre os olhos, levanta, atravessa a rua, caminha alguns passos, reconhece a fachada da loja, sobe as escadas, apanha o relógio que deixou no conserto, coloca no pulso, desse os degraus lentamente, agora tem tempo. Tic. Tac. Tic. Tic. Tic. Merda, parou outra vez.
(Gerusa Leal é escritora entre o conto e o poema. Psicóloga de formação, leitora crônica. Pernambucana, recifense, reside em Olinda. Tem escritos publicados em várias coletâneas e antologias. Alguns contos e poemas premiados isoladamente e seu primeiro livro-solo, “Versilêncios”, é Prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras. Trabalha num livro de contos, colabora com a revista eletrônica Histórias Possíveis)
Foto: Cristina Carriconde
JANELA POÉTICA (III)
SALIÊNCIA
Josely Bittencourt
(Josely Bittencourt é mineira (quase capixaba). Professora de Língua Portuguesa que adora um cafezinho. Mas tem o hábito de tecer poemas nas horas mais incertas)
Foto: Cristina Carriconde
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
Uma das mais valiosas virtudes do universo musical é poder proporcionar aos seus apreciadores uma infinidade de caminhos possíveis. E falar dessa variedade não implica num mero registro quantitativo, como se tudo fosse guiado por índices estatísticos do deus mercado. Afastando-nos da noção de juízos de valor simplistas, é sadio arrematar que há espaço para toda a sorte de expressões, guardadas, é claro, as necessárias medidas que diferenciam a multiplicidade dos gêneros. Para quem possui uma trajetória consolidada em torno de uma banda, trilhar as veredas de um caminho individualizado é muito mais do que um desafio criativo, aponta para o exercício crucial e autônomo de se operar escolhas.
De todo o dito, há quem se encaixe com precisão nessa perspectiva de abrir as fronteiras do novo e retirar daí um trabalho que traga em si um mergulho no próprio âmago. É o caso de Sérgio Britto, cantor, compositor e tecladista dos Titãs, banda que ajudou, de modo especial, a construir e firmar a história do rock brasileiro. Ao longo de sua intensa vivência musical, Sérgio pôde experimentar um complexo percurso de saberes e sabores, desde os primórdios e o ápice dos Titãs até as investidas mais atuais. No tempo presente, corre em suas veias o fluxo trazido pelas imagens contidas em seu terceiro disco solo: SP 55. Some-se a isso o fato de o álbum assinalar uma via autoral que sabe fazer adequado uso dos recursos da memória e de marcas íntimas da vida do artista. Os passos de então trazem um Sérgio profundamente comprometido com o que de melhor sua música possa trazer às pessoas, tudo embutido numa opção que bebe na fonte genuína de nossas brasilidades. E foi tratando de estes e outros afins pertinentes à sua carreira que Sérgio Britto travou conosco uma breve conversa.
DA - Para desenvolver um trabalho solo, ainda mais se tratando de um artista integrante de uma banda há muito consolidada no cenário musical, como é o seu caso, o sentido de liberdade e autonomia parece conferir um sabor especial aos rumos criativos. O que você considera mais importante nesse processo?
SÉRGIO BRITTO - Trabalhando como artista solo, experimento um tipo de liberdade e descompromisso que é impossível ter em grupo. O simples fato de ter que fazer escolhas sozinho me estimula e entusiasma tremendamente. Esse movimento me fez, acredito eu, continuar crescendo artisticamente. Depois de tantos anos fazendo música, acho que é isso o que realmente importa.
DA - Muitas vezes, quando se deseja comparar vivências experimentadas por diferentes gerações, há uma certa tendência em escalonar juízos de valor, colocando numa balança o que há de melhor ou pior, sobretudo no que se refere a composições. Para aquela geração que deu origem aos Titãs como essas questões se apresentavam? O sentido de transgressão era maior?
SÉRGIO BRITTO - Acho que a própria sociedade brasileira, por causa da circunstância histórica, ansiava por um pouco mais de transgressão. Certas coisas precisavam ser ditas de forma mais contundente, mais agressiva. Nesse sentido tudo nos empurrava pra esse lado.
DA - SP55, seu mais recente trabalho solo, percorre um universo de memórias pessoais. Como falar de intimidades e tantos outros recantos particulares da vida sem soar nostálgico ou excessivamente emotivo?
SÉRGIO BRITTO - Canções são boas ou ruins, não importa muito o assunto. Sei muito bem que existe prevenção com artistas que tratam desse universo mais "íntimo" ou são mais líricos, mas sinceramente não me preocupei com essa questão. Músicas "transgressivas" também podem soar extremamente ingênuas ou gratuitas…
Acredito que quando se faz esforço para desenvolver uma "voz própria", no meio do caminho, a gente se livra dos clichês, das obviedades.
DA - Chama atenção no disco a sua incursão por gêneros como o Samba, MPB e Bossa Nova. De onde partiram tais escolhas?
SÉRGIO BRITTO - São gêneros que conheço desde sempre e com os quais tenho intimidade. Desde o início da minha carreira solo, a vontade era a de encontrar uma sonoridade que me identificasse e diferenciasse dos Titãs. À medida que fui compondo e gravando o SP55, resolvi focar na questão da brasilidade. Fui excluindo músicas, tirando guitarras, etc. Acabei estabelecendo balizas estéticas para que o disco soasse realmente diferente do que eu já havia feito com a banda.
Foto: arquivo pessoal
DA - Percorreu muitos caminhos para chegar ao repertório definitivo de SP55?
SÉRGIO BRITTO - Gravei muita coisa e, apesar do disco ter 18 músicas, acabei deixando várias canções de fora: algumas simplesmente não faziam parte deste projeto. Esse caminho, na verdade, começou a ser trilhado quando gravei o meu primeiro trabalho solo, "A minha cara". Naquela época, eu já queria fazer um disco de Pop com brasilidade explícita; cool, com canções mais elaboradas do ponto de vista melódico e harmônico.
DA - As letras presentes no disco remontam a uma viva poesia cotidiana, feita de reminiscências e observações marcantes da existência. Baseado nisso, como é a sua relação com a literatura?
SÉRGIO BRITTO - Leio desde que me conheço por gente, mas de forma errática. Gosto de poesia e literatura, é claro, mas acho que o que realmente moldou a minha maneira de fazer canções foram outras canções. Não sei se um grande poeta daria um bom songwriter… Acredito que não. Ninguém aprende samba na escola. É preciso ter uma habilidade muito específica que só se adquire fazendo canções.
DA - Quanto aos Titãs, vocês já têm em mente algum novo projeto musical?
SÉRGIO BRITTO - Sim, estamos ensaiando e levantando material para um novo disco. Precisamos nos renovar e acredito que uma boa maneira de fazer isso seria investir nessa brasilidade de que estava falando. É claro que o que vai resultar disso será algo totalmente diferente do meu trabalho solo. Afinal de contas, os Titãs são uma banda de rock! Já fizemos uma incursão muito feliz nesse território: "Õ Blesq Blom”. A minha aposta é que o novo trabalho dos Titãs vai ser algo por aí, só que mais cru e nervoso.
DA - Após todos esses anos dedicados à música, você tem a sensação de ter alcançado um grau satisfatório de maturidade? Seu olhar sobre as coisas mudou bastante?
SÉRGIO BRITTO – Sim, mudou, é claro. O bacana da maturidade é poder sentir-se dono do seu próprio tempo, responsável pelas suas escolhas, pelos seus erros e acertos, etc. Às vezes, é trabalhoso, mas a sensação de compensação é muito maior.
Foto: Cristina Carriconde
JANELA POÉTICA (IV)
DEVASTAÇÃO
Cyro de Mattos
I
Vem das cinzas
II
Pia no mato neste verão
(Cyro de Mattos é autor de 40 livros, sendo 14 de poesia e, entre eles, “Cancioneiro do Cacau”, Prêmio Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio), finalista do Jabuti e o Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, e “O Menino Camelô”, infantil, Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes. Tem antologia poética publicada em Portugal, Itália e Alemanha. Representou o Brasil como convidado no III Encontro Internacional de Poetas, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Atualmente é o diretor-presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Larissa Mendes
Um Lugar Qualquer (Somewhere). EUA. 2010.
Uma Ferrari andando em círculos na primeira cena de Um Lugar Qualquer é uma bela metáfora para ilustrar a vida do astro de filmes de ação Johnny Marco (Stephen Dorff). Ele passa os dias bebendo e assistindo sessões privadas de pole dance em seu quarto no lendário hotel Chateau Marmont, em Los Angeles. Sua inércia é interrompida pela chegada da filha de 11 anos, Cleo (Elle Fanning, irmã de Dakota). Todo o glamour de Hollywood é substituído aqui pelo mesmo vazio existencial de qualquer figurante, seja no papel de pai ausente – amoroso, porém ausente – ou de dublê de sua própria vida, guiada por uma agente da indústria do entretenimento.
Talvez este quarto longa metragem de Sofia Coppola seja seu roteiro menos inspirado, valendo-se de vários elementos do primoroso Encontros e Desencontros, como o cenário de um hotel, cenas de piscina e uma relação doce entre um homem entediado e uma bela loira, ainda que neste caso seja a filha pré-adolescente. Contudo, reafirma a predileção da diretora pelo cerne solitário dos personagens – e seus desdobramentos – vide as irmãs de As Virgens Suicidas (1999), Bill Murray em Encontros e Desencontros (2003) e sua versão da rainha Maria Antonieta (2006).
Um Lugar Qualquer é extremamente delicado e exige paciência para compreender esta delicadeza. O que, convenhamos, é de bastante ousadia. Para se ter ideia, os quinze primeiros minutos de filme não possuem um diálogo sequer. É uma experiência quase sensorial, onde o espectador prova praticamente o mesmo fastio do personagem, seja dormindo durante o sexo ou em longas sessões de Rock Band. A propósito, a trilha sonora continua sendo um ponto alto nas tramas de Sofia Coppola. Sua narrativa pouco convencional faz com que a complexidade do ser humano, seu vazio e sua falta de rumo não escolham tempo ou lugar para manifestar-se. Você pode recentemente ter saído da infância ou há muito adentrado na vida adulta. Em Hollywood, em Tóquio ou num lugar qualquer.
(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)
Foto: Cristina Carriconde
JANELA POÉTICA (V)
INVIERNO EN CIUDAD DE GUATEMALA
Carta de consejos a una joven escritora
Silvia Favaretto
(A escritora italiana Silvia Favaretto foi agraciada com vários prêmios literários em seu país, dentre os quais, INVES Palermo, 1998 - VALLE SENIO, 1999 - Malattia della Vallata, 2003, e seus poemas circulam em diversas revistas e antologias. Como tradutora, publicou suas versões para o italiano de poemas em castelhano, alemão e inglês. É autora de “Parole d’acqua – Palabras de agua” e “Entre la carne y las palabras”)
Foto: Cristina Carriconde
CIRCUITO
Nilto Maciel
“Entramos nos quarenta anos com a inexprimível ideia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa.”
Júlio Cortázar, Casa Tomada.
Cansados de vagar pelas ruas, famintos, Daniel e Irene pararam diante de um bar. Se não encontrassem comida, ao menos descansariam. Outra pousada talvez não houvesse por perto.
O garçom ofereceu-lhes vinho, cerveja, vodca, uísque. Aceitaram vinho com salame. Ela abaixou a cabeça, quase até a tábua da mesa. Ele olhava sutilmente para os outros bebedores. Um deles, exaltado, falava mal do governo. Outro cochilava diante do copo. Havia bigodes volumosos, barbas ralas, dentes luzidios, olhos faiscantes.
Daniel pediu mais vinho e salame. Irene queria chorar, sair dali, deitar-se, esquecer tudo. Tivesse calma. Precisavam ordenar as ideias. O vinho talvez os ajudasse. Ao redor dele o governo tombava. Bigodes se enchiam de dentes; barbas, de olhos. E a casa? Como estaria a casa deles àquela hora? Já teriam tomado conta da biblioteca, devorado os livros franceses? Ah! Como guardava belas recordações de Balzac, Flaubert, Victor Hugo.
Por um instante Irene esqueceu de si mesma. Tivesse o irmão cuidado com aquele vinho. Não costumava beber e poderia se embriagar. E, então, como teriam boas ideias e sairiam dali? Ele se exaltou. Não precisava de ideias. A única ideia daquela noite deveria levá-los de volta à sua casa. Sim, a casa lhe pertencia. Não a deixariam para primos distantes e, muito menos, para intrusos, invasores estranhos. Ela se pôs a chorar baixinho. Nunca mais voltaria àquela casa. Como voltar, se estranhos a haviam tomado?
Um dos bigodes do recinto aproximou-se dos irmãos. Pediu licença para ajudá-los. Pôs seu copo junto ao de Daniel e puxou uma cadeira. Ouvira toda a conversa do casal. “Somos irmãos”. Os dentes do intruso brilharam, assim também os olhos. Se não podiam voltar para casa também não podiam passar a noite nos bares ou nas ruas. Daniel pediu mais vinho. Irene mirava o brilho dos dentes do outro.
Morava sozinho num casarão. Os pais mortos há muito. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas vidas. Casamento nunca não quis. Preferia a noite, os companheiros de bar. Mulheres surgiam e sumiam, feito fantasmas, sombras, inacessíveis. Em suma: muita solidão. Nem sequer um gato para miar-lhe o silêncio, um cão para ladrar-lhe a escuridão. Se ao menos ainda gostasse de livros! Atemorizava-se diante da amplitude de Balzac. Aborrecia-se com o infinito amargor dos personagens de Flaubert. Talvez devesse colecionar selos e revê-los aqui e ali. E, se fosse mulher, poderia tricotar e desfiar coletes, echarpes, cachenês.
O homem ora agarrava o braço de Daniel, ora apalpava o ombro de Irene. Os irmãos se entreolhavam. Ela mostrava uns olhos de medo e espanto. Ele simulava uns lábios de quietude e impassibilidade. “Precisamos ir embora, caminhar”. Sim e não. Pois como andar pelas ruas àquela hora? Já fechavam as portas do bar. Nenhum boêmio, nenhum bêbado mais. “Vamos à minha casa. Dormiremos e, quando for dia, tomaremos nossos rumos”. Irene amparou-se no irmão. Aquele sujeito talvez estivesse embriagado. “Iremos de carro”. Pior ainda. Não conseguiria dirigir. “Tenho motorista. Se não gostarem dele, chamarei o chauffer”.
O automóvel planava. As esquinas se sucediam. Vultos sonolentos andavam pelas calçadas. O condutor parecia um boneco. O dono do carro nada mais falava. Daniel olhava para um lado; Irene para outro. Súbito, o automóvel parou. E os irmãos, pasmados, se viram diante da casa que lhes fora tomada.
(Nilto Maciel: Venho da serra, do verde do Ceará, mas meus pais e avós vieram do sertão seco. Do tempo do trabuco, da injustiça, da perseguição, de Antonio Conselheiro (Antonio Vicente Mendes Maciel), aquele de Canudos, que as tropas militares massacraram. Não esqueci isso. Li a História desses povos, dessas gentes. Mas li também Camões, a Bíblia, Alencar, Machado, cordel, Moreira Campos. E me pus a escrever também. Mais para relembrar aquele povo e seus descendentes. Para recriá-los. Ou mesmo criá-los, porque talvez nada exista. O que existe é a obra de arte, que é ficção. Nada é real. Quanto mais antigo mais irreal. Ninguém me conhece, ninguém me lê. Sou marginal da literatura. Há muito deixei de sonhar com glórias e famas. Tudo isso é passageiro. O que é bom fica, permanece. Sem precisar de muletas, fanfarras, galardões, medalhas. Sou apenas um escritor de poemas, contos e romances)
Foto: Cristina Carriconde
JANELA POÉTICA (VI)
A PALAVRA DEVASTADA
Nicolau Saião
Tudo depende, caro senhor, de como
(Nicolau Saião nasceu em Monforte do Alentejo, Portugal. Poeta, publicista, ator-declamador e artista plástico. Participou em mostras internacionais de Arte Postal, além de ter exposto individual e coletivamente em vários países. Tem colaboração diversa na imprensa cultural em vários países. Orientou e dirigiu vários suplementos literários, tais como “Miradouro” e “Fanal”. Colaborador permanente da revista francesa “Carré Rouge” e das brasileiras “Agulha” e “Jornal de Poesia”. Está representado na revista “La Lupe.com – Círculo Internacional de Literatura Vanguardista”. É autor de “Os objectos inquietantes” (Editorial Caminho), “Passagem de Nível” (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos”, “O armário de Midas” (2001))
Foto: Cristina Carriconde
* Existem obras que, mais do que serem vistas, precisam ser verdadeiramente sentidas. Além do plano imediato do olhar, há uma outra dimensão que cada um sabe transcender a seu modo. E temos esta sensação quando nos deparamos com as imagens de Cristina Carriconde. Adepta de um estilo que privilegia as mais diferenciadas nuances da condição humana, Cristina nos oferta, em seu captar de luzes, uma perspectiva mais aprofundada sobre os seres e seus feitos, tudo misturado a um sentimento cotidianamente lúcido.
Gaúcha por origem e radicada no Rio de Janeiro, Cristina tem uma forma impactante de nos arrebatar com seus signos. Em seus planos, ricos em detalhes, cores e formas, as expressões dos homens e seus lugares ganham contornos também lúdicos e capazes de conferir ao mundo uma plasticidade singular.