31 de mai. de 2011,17:11
QUINQUAGÉSIMA SÉTIMA LEVA




Pintura: Gabriel Ferreira








CICERONEANDO


Perto de atingirmos nosso primeiro quinquênio de realizações, orgulhamo-nos de poder celebrar com um desejo incessante as mais variadas expressões culturais em torno da revista. De todo o já vivido, importa saber que nada nasce encerrado por uma ideia de completude, mas sim de uma vontade considerável de aprender com os ensinamentos dispostos pelo caminho. De fato, caro leitor, as lições são tiradas de cada verbo exprimido pelos autores, de cada signo representativo das imagens até hoje expostas por artistas plásticos e fotógrafos. Não há como descobrir o mundo se não passarmos pela leitura contida nos homens e nas coisas. É justamente esta possibilidade de revelação que é capaz de dar sentido mais consistente à nossa existência. Tal leitura deve ser democrática, autônoma, leve, tudo sem deixar de lado as devidas referências que norteiam o pensamento artístico. Estas últimas, mais do que um mero conjunto de regras formais ou acadêmicas, andam bem se não subestimarem as percepções agregadas no olhar de cada um de nós. E como nos diz o escritor Geraldo Lima, nosso entrevistado da vez, é preciso deixar pulsar as verdades que habitam os meandros de um texto, sendo que estas decorrem de um mergulho bem fundo na obra que está diante de nossos olhos. Sendo assim, não é possível passarmos ilesos face aos arrebatamentos poéticos de Vera Lúcia de Oliveira, Ale Safra, Alberto Boco, Carolina Caetano, Alba Liberato, Alexandre Bonafim e Carlos Sánchez. E o que dizer das representações de mundo contidas nas telas de Gabriel Ferreira? Talvez uma forma de reinventarmos a nós mesmos de modo sublime. Noutro ponto, a crônica de W. J. Solha vai mexer no delicado terreno da angústia no processo de criação artística, revelando o pathos presente nos interstícios de tão exasperada jornada. Nos contos de Regina M. A. Machado e Isaias de Faria, a presença intempestiva do diálogo que se sobrepõe aos ruídos das relações. A cinefilia de Larissa Mendes elenca razões para considerarmos Biutiful como uma película que de modo algum deve passar em branco. Disponibilizar uma nova Leva é como ansiar pela redescoberta do mundo. Sejam todos bem-vindos a um novo percurso!




*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.





JANELA POÉTICA (I)


AQUI NÃO SÃO

Vera Lúcia de Oliveira



aqui não são músculos de tijolo
aqui já a porta estrala
como de vértebras
aqui as tesouras cortam
os cabelos da casa
aparam as unhas dos mortos
aqui os passos têm fome
aqui a porta bate
cortando no meio a noite
aqui as paredes abrigam
ouvidos de carne


(Vera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota e cresceu em Assis-SP. Atualmente reside na Itália, onde ensina Literatura Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Perugia. Entre os livros publicados, estão Geografia d'ombra (poesia), Fonèma Venezia, 1989), No coração da boca (poesia), São Paulo, Escrituras, 2006; A poesia é um estado de transe (poesia), São Paulo, Portal, 2010. Recebeu, em 2006, do Ministério da Educação, o "Prêmio Literatura para Todos", na categoria de poesia, com o livro inédito “Entre as junturas dos ossos”, publicado depois pelo MEC em 110 mil exemplares e distribuído nas bibliotecas de todo o país)






Pintura: Gabriel Ferreira









FOLHETIM

Regina M. A. Machado


Segunda ao meio-dia:

- Oi, querida.
- Oi. Foi bem de aula? ... Sabe a nossa vizinha, D. Margarida?
- D. Margarida? Não, não sei.
- Acho que ela até é sua colega de departamento...
- Ah, não é não, mas já sei quem é. É uma figura da comunicação, estruturalista de carteirinha em 2011, imagine.
- Pois é, parece que ela fugiu com o seu Matias.
- Fugiu? Com o... com quem? Que história maluca é essa? Em vez de reportagem, você agora inventa folhetins para os jornais?
- Não, nem precisa. É um drama deslocado no tempo, também acho inteiramente fora de moda, mas é pura realidade.
- E quem é esse seu Matias?
- O seu Matias Cearense, que vende bucha na feira, não se lembra? Ele tem uma barraca grande, com um monte de tarecos para a casa, mas nós sempre fomos clientes das buchas.
- Jamais vi nem ouvi falar desse cara.
- Ah, mas é muito chato conversar com você, você não se lembra nunca de nada nem de nenhuma pessoa real, parece que só vê o que se passa acima das nuvens das suas especulações!
- Tá, isso dito e repetido, quem é mesmo o seu Matias?
- É um homem muito simpático, bem falante, calmo... parece que ele é feirante há anos em São Paulo, tem família aqui, ninguém entende essa loucura, os amigos dele deram parte por desaparecimento...
- Pode ser isso mesmo, não?
- Não, ela deixou uma carta para a família e a mulher do porteiro já deu uma versão pessoal para o prédio inteiro.
- Ah, e como são as duas versões?
- Eu mesma não vi a carta, e a história já rolou tanto pelos andares do prédio que já deve estar revista e aumentada várias vezes. Mas resumindo, eles costumavam conversar todos os domingos na feira, desde vários anos, depois passaram a tomar caldo de cana juntos... Um dia ela descobriu que ele sonhava em voltar para um sítio perdido lá nos sertões do Cariri, plantar coisas da terra, instalar um sistema de eletricidade solar – mas só de dia, de noite cortam a luz num raio de não sei quantos quilômetros. Teu amor e uma cabana, mas sem poluição luminosa nem outra qualquer.... e com tecnologia de ponta, parece.
- Ela diz isso tudo num bilhete de despedida?!?!
- E eu sei lá? Vai ver que a mulher do porteiro é ecologista fundamentalista!... ou alguém que passou adiante achou que faltava conteúdo político numa história banal...
- Banal?!!! É a coisa mais interessante que aconteceu neste prédio em quinze anos!... é um acontecimento histórico, uma inversão das tendências migratórias históricas desde que acabaram com o massapê do nordeste no ciclo da cana-de-açúcar!...
- O que seria dos meus humildes causos sem o brilho das suas contribuições, né, bem?
- ... Sem falar no valor simbólico deste adultério na contramão!... você não vê que sublime novidade representa ela ter deixado o executivo emproadinho do sul-maravilha, que nunca comeu fruita no pé e pensa que cultura é gostar de música clássica, por um pau-de-arara?... ter abandonado esta divina megalópole por um sítio que só deve ter pé-de-pau com certeza mirradinho por falta de chuva... Não sei não, acho que vou acabar gostando da D. Margarida...
- Bom, o almoço está pronto. Você pode continuar a se entusiasmar na mesa.
- Sabe que a sua historinha me deu fome? Macarrão de novo?!? Humm, deu foi vontade de uma peixada em praia do Nordeste...
- Não é macarrão, é alga, mentecapto!

No final da semana:

- Tem novidade?
- Sobre o quê?
- A D. Margarida, ora...
- Ah, o ilustre professor agora se interessa por fofoca do prédio!... pois tem sim. Ouvi uma conversa no elevador, que ela andou por aqui, que saiu uma briga tremenda lá no apartamento deles e que o que se ouvia era: “Não vou, não tem cabimento, você é louca” e coisas assim. Será que ela veio buscá-lo?
- Mas será o Benedito? Tá tudo invertido mesmo!!! Agora é o paulista que encarna os valores machistas que sustentam a família patriarcal??? E o nordestino, então, teria tido pena do marido abandonado?.... Meu Deus, que golpe no meu orgulho regional!.. O que será que ele vai fazer? Será que vai lá e acaba com os dois? Será que vai dar graças a Deus por ter se livrado daquele pau-de-virar-tripa?
- Não sei e nem dá para saber. Você já está tentando aplicar as suas estruturas narrativas num episódio da pobreza ou da caridade afetiva de gente que a gente mal conhece.
- É, não dá mesmo para imaginar, e, aliás, prefiro aguardar. Mas ganhei meu dia com a sua fantástica crônica da vida real – aguardemos o desenlace. E essas sacolas aí, amanhã é dia de feira?
- É sim. E vou ter que procurar outro vendedor de bucha.
- Mas não vai tomar caldo de cana com ninguém, não é? Estou começando a achar que feira é muito perigoso. Sabe do que mais? Vamos jantar fora: te convido para comer uma carne de sol com farinha de pau e manteiga de garrafa num restaurante que está muito bem cotado e depois a gente podia ir num forró em homenagem ao seu Matias. Tou precisando desenferrujar esta postura de computador. ... Ah, eu queria me lembrar da cara dele....



(Regina M. A. Machado é doutora em Literatura Brasileira pela Sorbonne Nouvelle/Paris3 e autora do livro Fiction et café dans une vallée impériale, Paris, Editions Indigo-Côté Femmes, 2011. É pesquisadora associada ao CREPAL e seus trabalhos publicados têm se orientado para releituras da ficção de José de Alencar. Atualmente, anima oficinas de francês (ASL – ateliers sociolinguistiques) em Bonneuil-sur-Marne, onde mora)






Pintura: Gabriel Ferreira







JANELA POÉTICA (II)



DISSIDENTE

Ale Safra


não me arrepia a caída dessa alça da blusa,
essa curta saia e coxas roliças no mistério do além sombra.
pouco importa entreaberta sua boca rosada
nessa oferta matreira e sonhos frescos.

hoje sol escancara amarguras


(Ale Safra. Bacharel em filosofia. Adivinhadora de coisas óbvias. Caipira de Santa Fé do Sul/SP. Autora do blog Dedos Não Brocham)






OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão


PIRIGULINO BABILAKE – ROSA FUBÁ






Longe, bem longe mesmo dos apelos da indústria carnavalesca, despontam talentos e suas outras tantas formas de encher a vida com música de qualidade. Para quem gosta de boas sonoridades, é verdadeiro alívio saber que, lá pelas bandas baianas, nem tudo que reluz é axé e seus agregados, muitos deles fruto de uma ditadura mercadológico-fonográfica brutal e que sequer se importa com o respeito aos ouvidos de muita gente. Definitivamente, não estamos aqui para chover no molhado, mas sim para demonstrar um pouco do deleite que é ouvir os moços do Pirigulino Babilake, gente inventiva e que privilegia a boa mistura entre som e verbo.

À primeira vista e a julgar pelo nome da banda, pode até parecer uma trupe de amalucados reunida para berrar suas vozes aos quatro ventos. Mas eis que se percebe a lucidez exposta por entre as letras de um repertório que sabe a elementos como o samba, rock, pop, bossa nova e forró. O melhor de tudo é constatar que os rapazes sabem muito bem aonde chegar com tamanho ecletismo. Ao mesmo tempo em que bebem na fonte da tradição, sabem engrossar com modernidade o caldo vibrante de suas canções.

Rosa Fubá valoriza a força que emana na feição popular dos cantos regionais. Tudo isso agregando sentidos a uma visão também poética do contexto urbano. Pelo percorrer das faixas, em sua maioria compostas por Pietro Leal, sobram razões para crer na afirmação da qualidade do grupo. Há, por exemplo, um lirismo todo especial impregnado em canções como Samba de Lá e No Osso. Ponto alto do disco, Guarda-chuva é espécie de hino sertanejo, no qual viver é ato sublime de amor e desprendimento. A influência da literatura de cordel faz do recitar de Coisa de Mulher verdadeira ode ao universo feminino. Noutro ponto, Memórias de um Arrepio exala a intensidade sinestésica dos caminhos da paixão. É nesse mosaico bem repleto de sensações diversas que é preciso estar desnudo para ouvir bem a proposta do Pirigulino Babilake e, tal como se apregoa por ali, tentar entender, por exemplo, porque feliz mesmo foi Ary Barroso.


* Clique aqui e abra os ouvidos ao disco






Pintura: Gabriel Ferreira









JANELA POÉTICA (III)



VIII

Carolina Caetano


olha a tua casa, amor
um cheiro persiste de certa veste que repousaste
sobre as costas da cadeira, ainda menina
e eu já sentara: passam os anos, e os panos falidos
sobre as cadeiras. Olha as minhas costas, amor
a tua veste dependurada, repousa e persiste
o cheiro da tua vida, a tua pele descalça
de quando corrias, e o vento assanhava
tua pele já nua. Tudo se fora. Amor, minhas costas
eterno barranco, vê cá tua vida
a tua inteira vida.



(Carolina Suriani Caetano, nascida em Uberaba, Minas Gerais, 1989. Além do seu blog, escreve nos sites das Escritoras Suicidas e As Tormentas)







Pintura: Gabriel Ferreira









ANGÚSTIA DA CRIAÇÃO

Por W. J. Solha






Neste quadro – Intervalo - Edward Hopper capta o vazio que já senti tantas vezes entre duas sessões de cinema, ansiedade que eu não conseguiria definir melhor do que Bráulio Tavares o fez num de seus extraordinários artigos, e que cito de memória:

- É a expectativa difusa de que algo miraculoso, impossível, começará a acontecer quando as cortinas se abrirem, algo maior que a vida real, e com o poder de fazê-la parar durante duas horas.

A arte é densa. E é por essa densidade que a senhora solitária espera. Falo da densidade humana e artística, que ela poderá encontrar até numa obra-prima da comédia, como Quanto mais quente, melhor, de Billy Wilder. Numa tira de Quino. Ou num comercial do New Civic modelo LXL Special Edition, da Honda.





A angústia da criação é o reverso dessa, da senhora. É a que está justamente na operação capaz (ou não) de obter espessura de conteúdo e forma que a tirará do nada. Trabalhei no setor de criação de duas agências de publicidade e sei o que é ter de apresentar a um cliente a grande ideia que deve detonar as vendas de seu produto, coisa que ele sempre quer pra ontem. Já escrevi os versos que um maestro e seu coral esperavam para começar o ensaio numa sala ao lado. Já criei – desesperadamente - o papel para um ator teatral a mais, enquanto distribuía os personagens ao elenco exato de uma peça minha. Já improvisei um comportamento extra, além do que me cabia, no finalzinho de um curta-metragem, com imediato alívio de ter suprido uma inexplicável lacuna que pressentia para aquele momento decisivo.

Pra todos os efeitos, entretanto, talvez o mais castigado criador seja o romancista. Num comercial de TV, crônica, charge ou tira de jornal, você acaba sempre dando um jeito – nem sempre ideal – e o entrega assim mesmo, pois aí não se admite dilação. Isso também ocorre em áreas mais “sérias”. Certa vez, amigos meus, fanáticos por Mozart, irritaram-se quando, ao assistirmos em DVD a um dos trinta concertos para piano e orquestra, dele, eu disse: “Esse foi puramente burocrático”. O próprio Bach, obrigado a apresentar nova cantata toda semana, nem sempre se saiu essas coisas todas com elas. Eficientes, claro. Mas apenas isso. Miguelângelo deixou inúmeras esculturas inacabadas, certamente porque percebeu que acabariam mal, mas deixou algumas outras completas que são horríveis, como a de Giuliano de Medici, com seu pescoço... inviável.




Bem, mas eu falava do inferno do romancista. Por quê? Porque o seu é um trabalho bem mais vasto do que o exigido por um conto, poema, crônica ou peça de teatro. Pressupondo-se que o autor partiu de uma ideia que continua a empolgá-lo, sua agonia consiste na necessidade do delineamento de cada figura e ação (ou não fazê-lo completamente, como no caso de Machado com Capitu), mas isso sem – jamais – perder o conteúdo preciso, a forma exata, o conjunto sinfônico. Em todos os romances que escrevi, senti-me (não pela qualidade) alguém como Rembrandt, que pintava sempre em várias camadas, que terminavam por lhe conceder a densidade almejada, com suas luzes cheias de sombras, penumbras cheias de luz. De meus primeiros livros, ainda datilografados, guardo oito, dez versões de cada um, cada uma ilegível, de tantas anotações. Dizem que Schubert se chocou ao ver as partituras de Beethoven, todas intrincadas de tantas correções, sem que isso tirasse delas uma aparência de fácil concepção, como aquela torrente de variações das quatro notas iniciais da Quinta.

Meu último (nos dois sentidos) romance – Relato de Prócula – quase me tira do sério. Foi muito difícil equilibrar a... estória de Prócula (mulher de Pilatos)... com a via-crucis do personagem que a imagina, um certo padre Martinho Lutero, lá de Pombal, no sertão profundo da Paraíba. Fases como essa me fazem pensar que... a obra em que estamos metidos... já tem sua matriz pronta no futuro, cabendo a seu autor “apenas”... vê-la, ouvi-la, e transportá-la para o presente. Enquanto isso não acontece, ele come o pão que o diabo amassou. Meu impasse foi tão grande, num determinado ponto da escritura do livro, que mandei meus originais pra quatro amigos escritores, pedindo-lhes socorro – Hugo Almeida, lá de São Paulo; Ivo Barroso, Carlos Trigueiro e Esdras do Nascimento, do Rio. Resultado: empate. Retrabalhei o livro, medindo as aprovações e reprovações recebidas, e apelei, então, pro poeta Paulo Bentancur, do Rio Grande do Sul, para uma quinta e derradeira impressão. Suas observações foram tão válidas, que meu narrador paulista se tornou um gaúcho com o mesmo sobrenome do tchê.

Bom título para este texto seria Agonia e Êxtase – como no romance de Irving Stone e no filme de Carol Reed sobre Miguelângelo. Foi terrível, para o Buonarroti, deixar de esculpir – atividade com a qual se identificava – pra pintar o teto da Sistina, por exigência do Papa Júlio II. Mas bendito Papa! Já em 1980, a artista plástica Fayga Ostrower foi convidada, pela Encadernadora Primor S/A, do Rio de Janeiro, a ministrar um curso de arte para os operários da sua fábrica, e disso nasceu um trabalho estupendo chamado Universos da Arte. Bendita encadernadora! Os faraós Quéops, Quefren e Miquerinos botaram milhares de homens a serviço louco de suas pirâmides, não se sabe a custa de quantos sacrifícios, mas... benditos faraós! Todo trabalho marcante exige um empenho acima do humano e, quando nosso superego não faz isso, o resultado só aparece com esses agentes externos a nos infernizar. Em setembro do ano passado, por exemplo, recebi uma ligação do Recife, em que fui convidado para um teste de ator, com vistas ao primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho.

- Não, não, obrigado. – eu disse. - Estou beirando os setenta e dei um basta nessa loucura.

A insistência foi tão grande, porém, o filme prometia tanto, que acabei aceitando o teste e, depois, o papel. Na última semana desse filme, recebi convite para outro teste, agora para o terceiro longa do Marcelo Gomes – autor de Cinema, Aspirinas e Urubus – e, na última semana desse filme, convidam-me para um curta de Laércio Ferreira no sertão da Paraíba. Minha idade e a responsabilidade eram tão grandes... que terminei o périplo completamente esgotado, pois – além do esforço emocional que representar exige – eu passava as noites em claro, ensaiando sozinho nos quartos de hotéis, porque você não imagina o que é um ator não-profissional, obscuro, velho, trabalhar com tais feras. Pense no que é ver, a cada uma de minhas trinta sequências, o trânsito da Avenida Conselheiro Aguiar – de movimento intensíssimo – paralisado, enquanto eu contracenava com ninguém menos do que Hermila Guedes. A angústia da criação, aí, subia como minha pressão: tudo tinha que ser perfeito, tudo tinha que ser perfeito, tudo tinha que ser perfeito! Isso me custou um cardiologista e um geriatra, em seguida.


Kléber, Marcelo e Laércio destronaram meu superego, esse que vinha me fazendo produzir vários livros, e assumiram seu lugar, um de cada vez. Como todos esses filmes têm lançamento previsto somente para o próximo semestre, imagine a agonia de não ver o resultado do que vivi.

Já experimentei todas as angústias da criação, suponho. Já terminei quadros que me fizeram ficar horas e horas diante deles, sem saber o que lhes estava faltando. Certa vez suspendi a mostra numa das galerias de Arte de João Pessoa, a Gamela, pra surpresa de sua dona.

- O que foi que houve? – Rosely Garcia perguntou.

- Está faltando alguma coisa nos meus quadros e não vou expô-los assim.

- Mas eu já não estive aí e não os aprovei?

Voltei à escrita, olhando a toda hora aquelas telas nas minhas paredes. A angústia, indizível. Até que... percebi que aqueles quadros todos somente funcionariam... juntos. Faltava-lhes, individualmente, densidade. Doei, então, o lote à UFPB, com o compromisso do responsável, de mantê-lo sempre... como uma instalação intitulada: Ando Muito Confuso...




(W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal)







Pintura: Gabriel Ferreira






JANELA POÉTICA (IV)


LICÁNTROPOS

Alberto Boco



En tiempos llamados post-históricos la era del midia
y el regreso de la horda
con ojos atascados como por un mal dormir
nuestro “flojo cognac” * desanda el aparato
sueño partido este todo supuesto entre oropeles de nada
y el pretexto de los recursos escasos
él no aúlla bajo el puente que filtra por sus huesos
el rayo de la luna
lenta bala de plata las cajitas del tetra
la basura y las costras en la era del confort
olor a mierda y meo de semanas
mientras las voces al acaso apuran su propia cadencia
……………….. …el precio tiene que ser algo razonable…
………………… …hay que coordinarlo…

soba su entrepierna y no aúlla bajo el puente
mientras decimos cosas en agotados papeles y pantallas
y andamos niños olvidados por la música
entre sueños y vigilias que parecen la realidad
y no se diferencian.


* Em “Idilio Muerto”, de Cesar Vallejo




(O poeta Alberto Boco nasceu em Buenos Aires. São de sua autoria os livros de poemas “Arcas o pequeñas señales” (1986), Ausentes con aviso (1997) e “Riachuelo” (2008), dentre outros. Por sua obra, recebeu prêmios e menções na Argentina. Em 2007, coordenou o Café Literário “Mirá lo que quedó”, junto com Alicia Grinbank, Alfredo Palacio e Rolando Revagliatti)






Pintura: Gabriel Ferreira







PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão



Talvez não seja crucial sabermos o que realmente se passa na mente de um criador. Uma obra não precisa ser alvo de uma série de tentativas de conceito ou definições que apontem para aquilo que move o desejo exato de se construir um texto. Quem tece um relato intenta penetrar na camada mais misteriosa possível da interpretação do outro. E a este outro é dada a possibilidade de compreender as coisas dentro de um repertório que agrega visões particulares da existência. Contudo, tal autonomia não significa um alijamento total das referências consolidadas através dos tempos ao que poderíamos chamar de práxis literária, mas sim uma válida perspectiva de engajamento pessoal que impulsiona um aprofundamento do ato de ler. Podemos aqui até fazer referência às palavras do escritor baiano Aleilton Fonseca que, num artigo recente, nos diz que sempre que um texto flui de seu autor e atinge o leitor, estabelecida está a comunicação primordial entre os seres e o universo. Para ele, o escritor é, antes de mais nada, um mensageiro, aquele que concede sua imaginação e voz a serviço do gênero humano, e tal feito perpetua-se pelo continuar das experiências sucessivas de leitura.

A obra do escritor goiano Geraldo LimaGeraldo Lima incita-nos a refletir sobre muito do que foi dito anteriormente. Dono de uma escrita que sabe varrer de modo denso recantos da alma humana, Geraldo é, sem sombra de dúvida, um representante de peso da nova geração de contistas brasileiros. Seu estilo narrativo flui intensamente à medida que a epifania particular de seus personagens deixa marcado o cerne central de suas sinas, qual seja a não coagulação dos instantes vividos. Aos poucos, homens e seus lugares são retratados como se orquestrassem propositalmente um mosaico complexo de signos a serem desvendados. E o leitor a quem este autor dirige seus pequenos contos é um alguém profundamente respeitado na sua capacidade de vislumbrar outras tantas esferas possíveis do texto. Tal experiência pode ser experimentada na leitura do recém-lançado Tesselário (Ed. Multifoco), obra cuja pedra fundamental está assentada sobre o painel inalienável das dualidades humanas. Professor e dramaturgo, Geraldo Lima também lançou, dentre outros, Baque (Contos, LGE Editora), UM (Romance, LGE Editora) e Trinta gatos e um cão envenenado (Teatro, Ponteio Edições), além de integrar o coletivo literário O Bule. E foi para falar um pouco de sua trajetória pelas veredas surpreendentes dessa estrada chamada literatura que o autor travou um breve diálogo com a Diversos Afins.




Geraldo Lima
Foto: Maura Lima


DA - A grande característica do miniconto talvez seja a de poder aliar, ao mesmo tempo, capacidade de síntese e sugestão. No entanto, a vaguidão narrativa pode ser uma armadilha à espreita do autor. Como é que você percebe essa questão?

GERALDO LIMA – Concordo. Esse poder de aliar capacidade de síntese e de sugestão é característica fundamental do miniconto. Nesse caso, o autor deve buscar a condensação da narrativa para não se perder em detalhes desnecessários, em pura abstração, ou no que você chamou, apropriadamente, de “vaguidão da narrativa”. Deve restringir-se ao essencial da história. Ainda que o texto seja um pouco mais longo (costumo chamar de microconto ou nanoconto os textos mais curtinhos), permitindo um pouco mais de detalhes descritivos, por exemplo, não se deve perder o sentido do essencial, do que interessa para manter a concisão e a presença de lacunas que serão preenchidas pela imaginação do leitor.


DA - No seu caso, como nasce um texto? Há uma disciplina rigorosa no modo de pensar e arquitetar os relatos?

GERALDO LIMA - Às vezes, eu procuro pela história, forço para que a ideia venha e se aloje em minha mente. Outras vezes, a ideia para compor uma história me chega de repente, sem que eu tenha procurado por ela. Nasce também da observação da realidade, da leitura de outros autores, de lembranças, de casos acontecidos com outras pessoas. Mas, independente de onde me venha a ideia, ou inspiração, o trabalho para compor o texto leva um tempo. No caso dos textos curtos, às vezes faço um esboço e o deixo numa pasta, à espera de ser completado. Mas, na maioria das vezes, acontece assim: deixo a história rolar na minha mente, vou compondo-a aí, até sentir que está pronta para ir para o papel. Trabalho direto no computador. Depois de escrita, reescrevo-a algumas vezes. Deixo-a de molho algum tempo. Retomo-a depois e vou lapidando, tirando os excessos, ou acrescentando algo mais. O fato é que a elaboração do texto, no meu caso, pode durar anos. Toda vez que o retomo, encontro uma frase que me parece mal elaborada, uma palavra que está sobrando, um personagem que não está bem definido. Embora seja um trabalho exaustivo, há um prazer enorme em ver o texto chegar àquele ponto em que nos damos por satisfeitos.


DA - Numa recente entrevista, o escritor argentino Daniel Freidemberg sustenta que a literatura detém o poder de um jogo, que nos é permitido jogar. E é então que entra em cena a verdade, ou alguma verdade, muitas vezes não dita, o lapso. Enquanto autor, como você vislumbra tal ideia?

GERALDO LIMA - Sabemos que a literatura não tem, a princípio, compromisso com a verdade, pelo menos com a verdade histórica. Ao contrário da História, a literatura não mantém compromisso com a integridade do referente, com a veracidade dos fatos. Seu compromisso é com a imaginação, com a subversão da realidade, com o mergulho nos desvãos do ser, com a crítica aos desmandos do Poder... Para mim, há verdades, e elas emergem, sim, das entrelinhas, dos lapsos, dos meandros do texto. Esse jogo, a que se refere o Daniel Freidemberg, existe nesse sentido. Cabe ao leitor, então, jogá-lo da melhor maneira possível. Para isso precisa mergulhar fundo no texto, buscando seus múltiplos sentidos no que está oculto ou implícito. A força e encantamento do texto literário (e só assim o considero literário) reside nisto: na capacidade de suscitar visões múltiplas sobre a vida, em outras palavras, na capacidade de ampliar nossa cosmovisão.


DA - Quem escreve almeja ser compreendido pelo leitor?

GERALDO LIMA - Penso que isso faz parte dos anseios de todo escritor. Mas nem sempre isso acontece. Nem sempre ocorre o diálogo entre o leitor e o texto. E aí chegamos àquele papo dos formalistas russos sobre o “leitor ideal”. Há, sem dúvida, aqueles textos que exigirão mais da capacidade de compreensão do leitor. No meu caso, penso sempre que os meus textos exigem um leitor mais maduro, com experiência de vida, aberto aos aspectos mais dramáticos da existência. Escrevo para deixar o leitor incomodado. Mas isso não exclui a possibilidade de outros leitores conseguirem dialogar com o meu texto. Falávamos das verdades não ditas, dos vazios, daquilo que está oculto nas entrelinhas, nos lapsos do texto. Pois bem, quando o leitor chega a essas camadas do texto e de lá retira aquilo que o autor nem desconfia que disse, penso que ele se apropriou de um dos muitos sentidos do texto. E quando ele verbaliza isso, é como se iluminasse o texto e o autor começasse a enxergar a própria obra com mais amplitude.



DA - Na estrutura de Tesselário, seu mais recente livro, chama atenção a forma como a obra está organizada visualmente. O arranjo de claro/escuro das páginas extrapola o meramente físico, vai muito além e nos atira ao ambiente das contradições humanas. Ninguém passa impune pelas imagens ali provocadas?

GERALDO LIMA - O efeito esperado é esse. Como eu disse: escrevo para deixar o leitor incomodado, intranquilo, com a mente povoada de reflexões. E sua observação sobre a estrutura do Tesselário está corretíssima, não há que se acrescentar mais nada. O escritor José Ricardo Moreira disse na orelha do livro: “E depois que o ouvido se acostumar, feche os olhos e prepare-se para o Breu”. Ou seja, prepare-se para o mergulho no lado turvo da mente humana, num universo de sensações e experiências extremas.



Foto: Maura Lima




DA - A temática da morte tem um papel marcante no livro, quiçá um contraponto à própria existência manifestado de forma intensa em Breu. O que significa para você lidar com a certeza da finitude?

GERALDO LIMA - Jorge Luís Borges disse, numa de suas conferências, que “O importante é a imortalidade. Essa imortalidade consegue-se através das obras, através da memória que nos outros deixamos”. Esse é o meu esforço. Se vou conseguir ou não, já é outra história. A certeza da finitude me leva, de certo modo, a valorizar a vida. Para mim, o que tem que ser vivido é aqui. A vida é aqui e agora, e não sabemos a sua duração, pois a morte é algo que está sempre no horizonte. No Tesselário, há dois textos em que enfrento mais de perto essa questão da presença inevitável da morte. São eles: “Dona Morte, suave e terna” e “Funeral”. No primeiro, há um jogo entre a vida e a morte, um jogo de xadrez em que o protagonista parece sempre levar a melhor sobre a adversária, até que esta lhe dá o xeque-mate. Mas há um respeito da morte diante daquela vida que resistiu tanto. É um final sublime, não-trágico. No segundo, reflito sobre o instante mais dramático na presença da morte: a hora de nos despedirmos do morto, do ser querido, e depois retornamos às nossas vidas, à rotina.



DA - Acredita que a criação literária é, sobretudo, fruto de um embate constante com a angústia do ser?


GERALDO LIMA - No meu caso sim, mas não creio que seja uma regra para todos os escritores. Cada escritor tem o seu caminho, os motivos que o levam a escrever. Esse "embate constante com a angústia do ser" está no centro da minha criação literária sim. A ideia do agônico é que move minha ânsia de expressão. Mas procuro manter, também, uma visão crítica da realidade que me cerca. Vejo o ser inserido num contexto social. Creio que o meu texto resulta, em boa parte, dessa fusão entre o existencial e o social. Para mim, cada texto é a tentativa de mergulhar nos desvãos do ser e flagrar aí o momento da sua queda, os motivos do seu desespero, dos seus desencontros, da sua solidão, da sua miséria, da sua vontade de existir ou de morrer. Agora, a angústia do ser e a visão crítica da realidade, por si só, não resultam em boa literatura, ou pelo menos no que eu creio ser um bom texto literário. Se eu não tiver o domínio da técnica, do código e adquirir uma razoável bagagem literária, não conseguirei criar nada que se possa chamar de boa literatura.



DA – O autor, quando não é capaz de estabelecer um nexo entre sua obra e os fatores sociais e históricos do seu tempo, põe em xeque a qualidade de seu trabalho?


GERALDO LIMA - Penso que não. Nem todos os autores escrevem focados na realidade social e histórica do seu tempo, o que não quer dizer que sua obra não tenha qualidade literária. Para mim, a qualidade literária da obra de ficção, no caso, encontra-se, primeiramente, na sua estrutura, no modo como o autor apresenta os fatos narrados e trabalha a alta voltagem da linguagem. É mais do ponto de vista estético que se deve buscar essa qualidade. O que não significa aqui exaltar o vazio, a alienação, a superficialidade.


DA – Por que escrever?


GERALDO LIMA - Porque desejo entender um pouco mais o ser humano e adentrar cada vez mais seus labirintos de contradições. Porque pretendo deslocar as pessoas do seu eixo de tranquilidade e conformidade. Porque quero suscitar espanto e reflexões. Porque creio no poder encantatório da palavra e da imaginação. Porque através da literatura consigo dialogar com os outros de forma mais eficaz e duradoura. Porque a literatura, no meu entender, é ainda um território onde as experiências estéticas são possíveis.






Pintura: Gabriel Ferreira








3 MINICONTOS DE GERALDO LIMA *


Memória


Pensou nas duas crianças presas em casa, na cadelinha unhando a porta para entrar (odeia ficar no quintal à noite), no gás vazando, asfixiando o ambiente, e no tempo que levaria para conseguir esquecer tudo isso.


Por trás daquele sorriso


De dentro do sorriso saltaram os ferrinhos comprimindo os dentes. Tarde demais. Ferro contra ferro, língua contra língua, dente contra dente. Saliva, murmúrios. Depois, o abismo, a voz de Deus cada vez mais distante.


Ana


Sei que vai se agarrar nas minhas pernas me pedindo pra ficar. Por enquanto, tá lá na cozinha, deixando cair panelas, talheres... Quer me fazer ouvir o seu desespero. Não pode viver sem mim. Mas minha mente já não está mais aqui, que posso fazer? Fecho a porta, ouvindo ainda os seus gemidos de dor. Melhor assim. Teria sido ridículo vê-lo atirando-se aos meus pés.




* Do livro Tesselário (Editora Multifoco)






Pintura: Gabriel Ferreira









JANELA POÉTICA (V)

Alexandre Bonafim

"Uma necessidade cósmica nos protege”
Adélia Prado



Um pássaro desenhado por crepitante manhã
carrega, na plumagem, a iluminura do crepúsculo.
Oráculo dos ventos: quase ninguém entende
o alfabeto das auroras. O pássaro é iniciático.




(Alexandre Bonafim é poeta, contista e ensaísta. Nasceu em Belo Horizonte, mas passou a maior parte da vida pelas terras do estado de São Paulo. É eternamente mineiro em exílio, mineiro nas raízes da vida. É mestre em literatura brasileira. Defendeu a seguinte dissertação: "A graça poética do instante: poesia e memória nas crônicas de Rubem Braga". Atualmente é doutorando pela USP, em literatura portuguesa)







DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Larissa Mendes



Biutiful. Espanha/México. 2010.







A ortografia incorreta da palavra beautiful parece anunciar que qualquer forma de beleza contida no novo filme de Alejandro González Iñárritu será no mínimo desconstruída, a começar pelo cenário de uma Barcelona bem diferente daquela abordada recentemente por Woody Allen. Aliás, o recurso da desconstrução com histórias paralelas que se bifurcam usado com exaustão pelo diretor nas montagens da trilogia composta por Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006), desta vez dá vazão à linearidade da trama.

Biutiful é mais um tocante drama familiar do cineasta mexicano. Uxbal (Javier Bardem) é pai de Ana (Hanna Bouchaid) e Mateo (Guillermo Estrella), frutos de seu casamento mal sucedido com a infiel Marambra (Maricel Alvarez), mãe bipolar, que parece mais personagem de Almodóvar. Para sustentar os filhos, ele e seu irmão administram pequenos negócios ilícitos, agenciando imigrantes chineses na construção civil e senegaleses na venda de produtos falsificados. Nas horas vagas, exerce suas habilidades como médium, cobrando indevidamente por seu dom de comunicar-se com os mortos. A certa altura da trama, o protagonista descobre ter câncer de próstata em estágio avançado, restando-lhe poucos meses de vida. Conhecedor da morte que é, Uxbal torna-se afoito para resolver todas suas pendências antes de partir. O que se vê, a partir daí, é a lenta degradação de um anti-herói, um homem preocupado com o futuro de seus filhos, sua ex-mulher e até mesmo dos imigrantes que explora.

Durante os 147 minutos de Biutiful, a sensação é de um desconforto constantemente sufocante, seja pelo submundo da Catalunha ou pelas múltiplas angústias dos personagens em close. Em seu primeiro longa-metragem sem a participação do roteirista Guillermo Arriaga, Iñárritu sai-se bem, sobretudo pela certeira escolha de Bardem como protagonista – o que lhe rendeu a indicação de Melhor Ator no Oscar 2011, além da conquista da categoria no Festival de Cannes 2010 – e por abster-se de qualquer panfletagem religiosa, mesmo abordando o espiritismo em um de seus motes. O cineasta vale-se de assuntos mais urgentes, como a miséria, a depressão e suas vertentes, o homossexualismo enrustido e a conjuntura da imigração ilegal na Espanha e demais países da Europa, reafirmando sua predileção por núcleos globalizados e pequenas tragédias humanas, tendo a fragilidade da vida como componente invariável. Se beleza não põe mesa, Biutiful no mínimo o empanzina de reflexão.



(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)







Pintura: Gabriel Ferreira









JANELA POÉTICA (VI)


A FONTE

Alba Liberato



A fonte é sempre redonda côncava receptáculo
porque chegar a ela por esbarro
podendo ante a sede comum
contornar barrancos o da frente
ao detrás mãos rentes
nos trancos?

A fonte apóia os flancos recurvados
ambos bebem do seu líquido
saciados. Oráculo mudo
a fonte à sede cede essência
porque negar protuberâncias
reentrâncias, se em sequiosa cópula
podemos dessedentar
sem ânsia?



(Alba Liberato vem produzindo textos desde a década de 60, incluindo estórias populares do Nordeste para cinema de animação, tendo realizado inúmeros filmes curtos e o longa-metragem BOI ARUÁ, que carrega no seu lombo prêmios nacionais e internacionais)








Pintura: Gabriel Ferreira






OS OBJETOS

Isaias de Faria



- Livro bom, meu amor, é aquele gasto, surrado, triturado por olhos que entenderam muito, pouco, ou nada do que eles queriam dizer.


- Gosto dos sapatos, mesmo os de salto baixo, meio ofuscados na vitrina. Nada me impede de comprá-los. Nem mesmo as vendedoras que tentam imitar o meu nariz empinado.

- Estávamos falando de livros.

- Ah, é. Detesto aquelas marcas de dedos sujos na lateral branca do livro fechado, detesto dedicatórias de autores que nunca mais irão se lembrar de seus leitores...

- Você tá amarga...

- Amarga tanto assim eu não estou não, mas eu detesto esse monte de livros que você junta.




(Isaias de Faria, poeta belohorizontino, escreve em várias revistas eletrônicas. Ainda inédito em livro)







Pintura: Gabriel Ferreira








JANELA POÉTICA (VII)


ESPIGA

Carlos Sánchez



Tu dura fragilidad
tus manos afinadas
la simplicidad de tu cuerpo
que decido perfecto
completan el cuadro
de esta dicha adulta.
Serenamente te festejo
en los límites
que me permite el tiempo
gran saboteador de sueños.
No puedo pretender
una idea del mañana
dejo los pasos al sol
los caminos al viento
los pensamientos
librados al instinto.
Fina
como una espiga
de trigo dorada
en mi granero antiguo.



(Carlos Sánchez nasceu em Buenos Aires, é cidadão italiano desde 1973, e atualmente reside em Foligano (Ascoli Piceno). Percorreu e morou em vários países da América Hispânica, Europa e no Extremo e Médio Oriente como consultor e especialista em Comunicação Social da FAO e outros organismos das Nações Unidas e de Cooperação Internacional. É jornalista, fotógrafo e diretor de programas de televisão. Dentre suas obras, estão: “Gestos” (poesias, Juan Mejía Baca, Lima, Peru, 1964), “Signo de tierra” (novela, Editor Lalli, Siena, Italia, 1983), “Alta Marea” (poesias, Ediciones Quasar, Roma, 2005) e “Recuerdate que no sabes recordar” (Ediciones Lìbrati, Ascoli Piceno, Itália, 2010))







Pintura: Gabriel Ferreira




* Pelas telas de Gabriel Ferreira, predomina a esfera dos ritos, na qual os homens professam o mistério íntimo de sua crença em meio ao turbilhão da existência. Há de se reconhecer a presença de uma linguagem autônoma beirando as expressões e formas ali transpostas. Em boa medida, os signos desse artista baiano comungam das manifestações afro-brasileiras, revelando-nos serem os dois continentes, mais do que irmanados por laços culturais e históricos, amalgamados por uma consciência que transcende a matéria.


Verdadeiro multimídia, o que inclui também vivências como artista gráfico, chargista, desenhista técnico, músico percussionista e arte-educador do IMAQ (Instituto Maria Quitéria/Ponto de Cultura - MinC), Gabriel viaja o país realizando exposições. Em sua trajetória, já publicou ilustrações em revistas, jornais e catálogos, além de ter produzido saraus lítero-musicais. Alguns de seus trabalhos foram premiados em salões de arte na Bahia.



 
publicado por Fabrício Brandão
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