30 de jun. de 2011,16:51
QUINQUAGÉSIMA OITAVA LEVA - 5º ANIVERSÁRIO


Foto: Anderson Ivo





CICERONEANDO


Atingir a marca de 5 anos de publicações é muito mais do que estar diante de uma mera contagem numérica. Há muitos sentidos por trás disso tudo. O maior deles é perceber que, em nossa missão à frente da revista, deparamo-nos com uma vastidão de autores e artistas, os quais, ao longo do tempo, deram verdadeiro corpo a cada edição. Alternando-se através das Levas, centenas de expressões ousaram compartilhar conosco as suas leituras de mundo. E a certeza mais valiosa de todas é saber que a descoberta destas criações ajuda a perfilarmos o entendimento de que precisamos estar atentos à possibilidade de transformarmos a nossa existência. A intenção de aliar textos a imagens vem da noção de que cada arte encerra em si a capacidade de harmonizar-se com as outras. Latente ou não, a matéria-prima das linguagens nunca deixou de estar bem diante de nossos humanos olhares. Durante todos esses anos, escritores, artistas plásticos e fotógrafos compreenderam bem a intenção de estarem integrados num mosaico de atos. Desde o início, anônimos e consagrados revezaram-se dentro da proposta de diversidade. Mesmo considerando as particularidades de cada criador, o resultado sempre promoveu um efeito de comunhão ampla dos signos. A melhor forma de celebrar tudo isso é trazendo à tona uma nova Leva. Por entre os textos de nosso 58º caminhar, somos arrebatados pela sensibilidade fotográfica de Anderson Ivo. Compondo as janelas poéticas de então, Victor Oliveira Mateus, Inês Monguilhott, Marcus Vinícius Rodrigues, Munique Duarte, Luis Benítez, Lúcia Delorme, Nilson Barcelli e Natália Nunes dividem conosco a intensidade de seus versos.  Dono de uma prosa de inquestionável qualidade, na qual habitam preciosos recursos do realismo fantástico, o escritor Claudio Parreira é o entrevistado do momento. Em sua crônica, W. J. Solha prestigia a literatura viva e pulsante de Hildeberto Barbosa. Por sua vez, Márcia Denser e Dheyne de Souza reservam-nos uma viagem intimista ao centro de seus contos. A resenha de Larissa Mendes devota olhares ao pseudo documentário Recife Frio, premiado curta de Kleber Mendonça Filho. Há sempre mais por aqui. Agradecemos a todos os colaboradores desta e de todas as eras da Diversos Afins. Aos nossos leitores, nossa imensa gratidão por vislumbrarem em nossos esforços a perspectiva preciosa do seguir adiante. Evoé!



*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.  





JANELA POÉTICA (I)


PARA UMA LEVEZA POSSÍVEL – II

Victor Oliveira Mateus


Um poema que não te ajude a viver e não saiba
preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!

Mário Quintana, Projecto de prefácio


Creio na finita circularidade do tempo.
Creio nas coisas nele desenhadas, nas que
o circundam, nas que o acrescentam e, ainda,
naquelas que um dia foram e hoje subsistem
em forma de mágoa ou de ternura farta
e irrepetível. Creio neste terraço: soalheiro,

carcomido pelo uso, aberto a uma vastidão
que intuo mas não explico. Creio no frémito
dos pássaros, ao fundo, por entre os castanheiros
e a auto-estrada que hoje à cidade me não leva.
Creio no serpentear das vespas no meio do verde
com seus aguilhões açulados, suas danças

enfeitiçadas, sua indiferença quase humana
tão à margem de tudo. Creio na lustrosa lousa
onde me apoio, luminária quase extinta para
o subtil enfeite das palavras. Aquelas com
que vejo, com que penso, com que escrevo;
aparentemente as mesmas, mas sempre

em desacerto: chocalhar de falho siso
na infindável desordem do mundo. Creio
na capacidade de nos transformarmos,
a partir de dentro, por um ousado valer
a pena. E creio, por fim, nesta insustentável
leveza, a evolar-se, difusa – território
de abandono, trajecto de recusa.



(Victor Oliveira Mateus, natural de Lisboa, onde reside, é licenciado em Filosofia, abandonou recentemente o ensino dessa Disciplina para se dedicar apenas à escrita. Tem publicados: quatro livros de poesia, um romance, traduziu, prefaciou e anotou Safo, S. João da Cruz e Voltaire. A sua poesia e alguns textos de cunho ensaístico encontram-se dispersos em antologias e revistas de cultura de Portugal e do Brasil)






Foto: Anderson Ivo





PRIMEIRO DIA DE AULA

Márcia Denser


Saia marrom, camisa bege, meias três quartos de lã, mocassins com sola de borracha, trança loura na cintura arrematada por um laço de seda. Idos de fevereiro, final de um verão impiedoso, mas Júlia tremia.

A aula começaria às 13h30. Ao meio-dia almoçaram ouvindo A Parada de Sucessos, cujo prefixo St.Louis Blues a orquestra de Glenn Miller desfigurava com um arranjo estupidamente marcial, o locutor mandava sua saudação para os céus do Brasil, meio sorriso irônico de seu pai: persistiam esses cacoetes de após-guerra?

Saíram, Vivien com Amanda no colo, na retaguarda, Álvaro e Júlia na frente. Com As lavadeiras de Portugal zumbindo estupidamente em seus ouvidos, a menina esforçava-se por acompanhar os passos do pai, orgulhosa por andar ao lado dele, ocupar o lugar de Vivien, a carinha na altura dumas pernas impecavelmente vestidas de tropical inglês, mais acima, adivinhava a gravata de seda azul com o prendedor de ouro e madrepérola, os cabelos esticados resplandecendo de brilhantina, porque ele gastava uma fortuna no Minelli, dizia sua mãe: quem seria o Minelli?

A menina evitava os verdes olhos mareados do pai, recebia um sorriso condescendente, ligeiro alçar de sobrancelhas: ria dela? Era parecido com Tyrone Power, mais ainda com Lewis Howard em Ricardo Coração de Leão: apresse o passo, Júlia, não aperte tanto minha mão, ele não ia fugir.

Na esquina, ele fez sinal para um táxi, acariciou-lhe distraidamente os cabelos, entrou no automóvel e partiu. Júlia prosseguiu com a mãe e Amanda. Não lembrava o trajeto, apenas o sol implacável, o uniforme pesado, o suor e as lágrimas molhando o rosto torcido pelo choro. E Vivien: não seja boba, Júlia, ela não pudera estudar em colégio de freiras. Apesar da chupeta, Amanda choramingava no colo. No pátio, a madre superiora: sua filha tem cabelos lindos, qual é seu nome, meu bem?

Então tocou o sino. Já era o sino, um latido metálico que ouviria durante doze anos. Agarrou-se às saias de Vivien soluçando aquela palavra que contém todas as súplicas humanas: mãe, mãe. Mas esta enrijecera cerrando os lábios e se afastara sem olhar para trás, embalando Amanda que chorava aos gritos pela irmã. Júlia misturou-se às outras medrosamente aproximando-se com infinitos de temor e esperança. Então foi aí. Uma delas apontou-lhe o rosto: o que é que você tem na boca?

Era uma cicatriz no lábio superior. Pais, tios, avós, primos, ninguém parecia se importar com ela. Ou apenas estavam acostumados? Afinal não estava lá desde que nascera? Por isso era tão mimada? Porque talvez fosse por isso que Vivien chorava em silêncio e Álvaro saía batendo a porta ou então mandava-a calar-se e beijava-a e trancavam-se no quarto por um tempo enorme e Amanda ainda não era nascida? Então era isso? Então era ela?

As crianças cercaram-na: pilhas de caras caretas hediondas curiosas espantadas, murmúrios, frases que morriam ao chocar-se com o cordão avermelhado da cicatriz enquanto Júlia recuava encolhendo-se para dentro dum limite de si que até então desconhecia. Inesperadamente as outras afastaram-se, isolando-a junto à paineira, recompondo-se em grupinhos cochichantes que espreitavam, que irrompiam em risinhos agudos. O espelho fora colocado, o mundo a reconhecera e selara sua sorte: ela seria uma solitária.

E Júlia ficou só naquele primeiro recreio recostada ao tronco da paineira florida e, soluçando como um animal ferido, começou a odiar aquela paineira, uma a uma das suas flores, todos os seus odores, o vento que salgava sua boca com a poeira dos rodamoinhos que pés velozes levantavam, correndo, saltando, batendo pegador: fugindo dela.

Odiar o manto das freiras perpetuamente agitado numa ameaça de vôo, o toucado branco rígido onde um crucifixo com um Cristo de prata balançava e batia e batia em corações sem resposta. Odiar e jamais esquecer os ladrilhos e os corredores, sua fatigante e inextricável simetria, cacos do caleidoscópio, não, da rosácea petrificada do caleidoscópio da dor.

Naquele dia conheceu sua orfandade e compreendeu que viver é um inferno. Sem espanto, sem desespero, quase com serenidade, talvez com secreto orgulho, e então com perversa alegria: Júlia só teria a si mesma, de modo que estava tudo certo, estava tudo em paz. Às cinco horas, sua mãe lá estava, aguardando-a no portão.

Levou outra menina para casa.




(A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora/Tango Fantasma (Global, 1986, Ateliê, 2003, 2010, 2ª edição), A ponte das estrelas (Best-Seller, 1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II - obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas. Dois de seus contos - "O vampiro da Alameda Casabranca" e "Hell's Angel" - foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que "Hell's Angel" está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo)






Foto: Anderson Ivo






JANELA POÉTICA (II)


BOI

Inês Monguilhott


Bati
meus olhos
em outros olhos
sem resposta,
reflexo úmido de
uma porta
noutra porta.

O instante alfinetado no vôo
não carece de fosforescente resposta.

Não há palavras velando
o ar,
a água,
o capim,
sal ou cio.

Só a carne incorruptível,
luminosa.



(Inês Monguilhott nasceu em Recife, Pernambuco. Passou grande parte da vida na Paraíba e há vinte anos reside em São Paulo. dois anos começou a escrever graças a sua aproximação com o grupo de produção literária de Áurea Rampazzo, no museu Lasar Segal. Foi por influência do grupo, dos hormônios ou do tempo ocioso que resolveu levar a escrita a sério)





DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Larissa Mendes
 

Recife Frio. Curta-metragem. Brasil. 2009.






Os souveniers de casarões históricos de Olinda ganharam um novo artefato: chaminés. As sombrinhas de frevo foram substituídas por guarda-chuvas quaisquer. Nas praias, os temidos tubarões agora têm a companhia de adoráveis pinguins. “Hellcife”, para os íntimos, está irreconhecível. Ao menos no roteiro de Recife Frio, mockumentary (falso documentário) de 23 minutos, escrito e dirigido pelo cineasta (e também crítico de cinema) Kleber Mendonça Filho. Nele, o fictício programa portenho El Mundo en Movimiento, apresentado por Pablo Hunderwasser (Andrés Schaffer), explora a queda de um meteorito na Praia de Maria Farinha e a coincidente onda de frio que assola a até então tropical capital pernambucana. Já são 7 meses sem sol e com temperaturas que não ultrapassam os 14ºC.
                                                       
A reportagem televisiva analisa de forma criativa e bem humorada o impacto social, econômico e cultural acarretado pela pitoresca mudança climática na nossa Veneza Brasileira. Assim, observamos quase um cortejo dos mais variados personagens da cidade: o Papai Noel, que comemora o clima ameno para sua polar indumentária; o hoteleiro francês e o vazio de sua pousada, ironicamente chamada Le Soleil; o filho único da abastada família Nogueira, que migra de sua suíte para o minúsculo quarto da empregada, o cômodo mais cobiçado do apartamento de frente para o mar de Boa Viagem. Há ainda divertidos repentes, previsões meteorológicas e até mesmo explicações religiosas para tal fenômeno natural.

O curta utiliza da ficção científica – gênero praticamente inédito no cinema nacional – para imprimir a visão autoral de Kleber Mendonça Filho sobre a região metropolitana de sua cidade e ponderar universalmente sobre o aquecimento global, a especulação imobiliária, a manipulação estética, as relações de hierarquia e consumo dos brasileiros. Recife Frio traça ainda uma crítica da verticalização urbana e da própria frieza e artificialidade do contato humano. O caráter documental e a espontaneidade das declarações fazem com que a todo instante os espectadores transitem entre realidade e ficção. Vencedor de mais de 40 prêmios ao longo dos festivais pelos quais passou – o mais recente foi o de Melhor Curta-Metragem de Ficção no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro –, Recife Frio prova o quanto um argumento aparentemente non-sense pode abordar questões universais. Os versos da cirandeira Lia de Itamaracá (minha ciranda não é minha só/ela é de todos nós), em sua glacial roda no epílogo do filme, arrematam um estilo nada provinciano de se fazer cinema. Canto, aliás, que promete ser ecoado em O Som ao Redor, primeiro longa de ficção do diretor, que deve estrear em breve.



(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)





Foto: Anderson Ivo





JANELA POÉTICA (III)



EM MEIO A LARANJAS PODRES

Munique Duarte


Deixei a chave debaixo da sexta laranja
que havia no cesto
Sua sexta-feira choveu na minha alma
em gotas ocre indefinível
Achei que a declaração era falsa e debaixo
do sexto carimbo certificado
Certifiquei-me que seus atos não passavam de
sexta-feira mal cheirosa
Falso, incrédulo, perdulário
Onde você colocou meu terço e meu sacrário
na sexta vez que te pedi naquela terça-feira chuvosa
e mal cheirosa de maio
Você sempre arromba meu cofre em seis segundos
e leva minhas intimidades embora
Como na última vez daquela segunda-feira nublada e já noite
em que fiz minha última confissão
Malas, revólveres, lençóis, embaraços
de uma quarta-feira mal resolvida
Ninguém invade a alma de uma pecadora confessa
cinéfila, louca, virgem, malbaratada
em dia mal cheiroso, chuvoso
A chave está em segredo em meio a laranjas podres.




(Munique Duarte nasceu e vive em Santos Dumont-MG. É jornalista responsável pelas publicações dos sindicatos dos carteiros e dos auxiliares de ensino privado de Juiz de Fora-MG. Já colaborou n’O Bule, Sobrecapa Literal e Escrita Criativa (Portugal). Participa da antologia “Escritos de Amor”, a ser lançada pela Casa do Novo Autor Editora)






Foto: Anderson Ivo






APERITIVO DA PALAVRA

Por W. J. Solha


Hildeberto Barbosa e o sinal de Caim




Em À Sombra do Soneto e Outros Poemas, Hildeberto Barbosa Filho – que além de poeta é crítico literário de nome – opina nos primeiros versos de seu curto Insight:

- Tenho para mim / que nunca escrevi um poema.
 
Natural, para quem confessa, doloroso:

- Nem as coisas perfeitas me fazem feliz.

E o que são coisas perfeitas, no entender dele?

-... telhados molhados, estações de trem (depois das despedidas), casas em ruínas.

Também acho Poesia difícil. Terrível criá-la, insuportável analisar a criação alheia. Raramente somos levados - ao produzir esse gênero literário que, segundo Umberto Eco, se define pelo fato de raramente chegar ao fim das linhas - à saciedade que, avidamente, buscamos na fatura de toda e qualquer obra de arte. Talvez justamente porque seja de resultado tão escasso, o que implica sempre de se ter de liquidá-la num tiro só. E se já é quase impossível satisfazer-se o poeta com o que faz, mais inacessível ainda é a plenitude com o que fazem os outros.

Li o pequeno livro novo de Hildeberto sentindo-o poeta e crítico em dueto e duelo consigo mesmo. Fica óbvio que ele sente as pepitas quando as tem na bateia, como ao ver num velho umbuzeiro o talhe bruto, /solitário verdume na paisagem. Mas saber disso não o torna menos angustiado.

A infância é sua Pasárgada. É lá que encontra sua cidade, solitária, sedenta entre montanhas.

É de lá que sente brisas com cheiro de alfazema.  Daí – conclui – que é preciso guardar bem nos celeiros d´alma a messe dos encantos primeiros/ Que a leva do tempo distancia./ Guardar nos oratórios o palor de antigos santos e tudo o que for miúdo relicário de Poesia.

E se angustia.

É evidente que Hildeberto tem o sinal de Caim, de que fala Hermann Hesse no “Demian” (*). Escreve:

- É a ira de viver que me põe vivo.

Motivo?

- Todos os anos passaram por mim e o futuro não chegou.

Como assim?

Replay:

- Tenho para mim / que nunca escrevi um poema.

Mas ele escreveu, sim. E aqui vai:


RECORRÊNCIA


Sempre amei as pedras.

Brutas,
raras,
cálidas
sempre amei as pedras.

Túmidas,
toscas,
tristes,
trágicas
sempre amei as pedras.

Súplices,
Sacras
sempre amei as pedras.

Perfeito!


(*) A marca de Caim aí aparece como sinal dos seres superiores, onde algo de diabólico coexiste com um traço de humanitarismo e criatividade.


Hildeberto luz e sombra


Cria pássaros, como o canário Cesário Verde, o azulão Mallarmé e, numa gaiola gótica, o galo de campina Dante. Criou seu próprio detrator, Lousânio Verdésio, de Aroeiras, que de vez em quando fustiga seus versos: “Tudo ali é cópia da cópia, espessa e indigna fraude verbal!” Vai visitar o poeta Lúcio Lins, no hospital, e dá com outro, Vanildo de Brito, também morrendo de câncer no quarto vizinho. Sai arrasado. E bebe no Bar do Baiano. Mas não só por isso. “Alguma coisa mais forte do que minha vontade me impulsiona para esse mundo estranho. Desgraça, desamparo, desolação”. E escandaliza ao proclamar: “Odeio a Poesia!”, e relaciona livros e autores da Paraíba que o enfurecem. Quando vai apresentar meu livro “Trigal com Corvos” - que tanto elogiara – desaparece. Mas a também Vitória Lima com razão se deslumbra com títulos de livros dele: “Caligrafia das Léguas”, “São teus estes boleros”, “Desolado Lobo”, “Comarca das Pedras”. E ele bebe no Bar do Baiano. De dia não lê, diz ele: estuda. À noite busca o prazer do silêncio e da solidão da leitura “contínua, circular, interconectada, dispersiva”. E bebe no Bar do Baiano. Apaixonado colecionador de livros, de repente tem a enorme alegria de completar a tetralogia do cascudólogo Américo de Oliveira Castro, através de livreiro de Natal. Sublinha, em Paul Áster: “Artistas sofrem e não se encaixam neste mundo, buscam outro”. Sente que alguma coisa se parte dentro dele. Bebe no Bar do Baiano. Num calor insuportável, trânsito insuportável, cidade insuportável, rotina insuportável, alivia-se ouvindo “Amorério”. Não sabe se Deus existe, mas os Concertos Brandenburgueses fazem-no sentir que algo nos transcende. Réplica do explosivo, genial Gauguin – Anthony Quinn em “Sede de Viver” - adora Van Gogh (Kirk Douglas no filme) em quem vê, como vejo nele, “vitalismo, desespero, paixão e um sentimento trágico da vida”. Ah, e as tardes de domingo: “Que meus inimigos a experimentem enquanto eu viver!” E bebe no Bar do Baiano.  Bebe. Ante o velho tamarindo de Augusto dos Anjos, sente  “a intensidade latejante da verde várzea, o espaço e o tempo que se converteram em imagens radicais e dissonantes”, inquieta-se com a idéia de um “poema/percurso”. Oh, e sente sua terra-mãe, de sol e pedra, onde as nuvens “são fantasmas alucinados”, como “o lugar mais distante e mais triste”.  Aí lhe digo de meu encanto com o coral da UFPB apresentando “Oratório do Rio”, composto por Tom K em cima de seu poema e vejo-o, por um momento, feliz. Mas bebe no Bar do Baiano. Mando-lhe meu romance, “Relato de Prócula”, sentindo-me como Franklin ao empinar a pipa com para-raios contra o céu sombrio, e me surpreendo com carta sua, entusiasmada e tão brilhante, que deslumbra Affonso Romano de Sant´Anna, Ivo Barroso, Esdras do Nascimento, Ruy Espinheira, Carlos Trigueiro, Zé Bezerra e Sérgio de Castro Pinto.

A ficção não cria um personagem desse!



(W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal)






Foto: Anderson Ivo






JANELA POÉTICA (IV)


LA MARCHA DE UN ANIMAL DESCONOCIDO

Luis Benítez


Puede suceder en la tarde única
que de una piedra salga un animal desconocido:
distante de las clasificaciones y las enciclopedias,
puro y sin nombre,
centelleante y venido de los húmedos misterios
de ésta, la ignota tierra que él y tú pisan,
armado por la visión de los ardientes abismos
de lo subterráneo y el aire, él es un dios
y tú un hombre manchado por el tiempo.
El tiene en su cabeza, si la tiene,
guardado el número del día y de la noche,
el emblema del alba, las anchas otras realidades
que contienen diez crepúsculos en uno.
Tú eres la memoria de unas horas tiradas entre las edades,
como las semillas que olvida el jardinero.
El camina o nada o vuela sobre los destinos y las épocas
indiferente, absorto en su misma condición
de uno con la hoja y con las novas
y tú estás separado y errante,
detrás del muro fresco encerrado en el tiempo.
Obsérvalo pasar de rodillas,
aunque como todo para ti está ciego.



(Luis Benítez nasceu e vive em Buenos Aires. Sua poesia tem recebido diversas premiações por países da América Latina e Europa. Recebeu o título de Compagnon de la Poèsie de la Association La Porte des Poètes, com sede na Universidade de Sorbonne, em Paris. Seus livros de poesia, ensaio, narrativa e teatro foram publicados na Argentina, Chile, Espanha, EUA, México, Venezuela e Uruguai. Recentemente, a editora espanhola PUBLICATUSLIBROS.COM organizou, num e-book, a obra “Poemas Completos (1980-2006)”, que podem ser baixados gratuitamente aqui)






Foto: Anderson Ivo






PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão


Há alguns anos encontrar pessoas era algo um tanto limitado pelas condições geográficas. E estamos a falar de um encontrar fruto de uma acepção mais profunda da palavra, aquela que aponta para a construção de relações profícuas não somente nos termos de contatos frequentes, mas também de gente com as quais ousamos dividir nossos mundos. Mas eis que na voraz compressão tempo-espaço o ofício literário, por exemplo, ganhou proporções outras, ousou estabelecer-se num plano de interações onde a busca da qualidade demarca a sobrevivência dos bons autores.

Por tudo o que foi dito acima, nosso admirável mundo novo, emaranhado de redes e redes, atentou para o fato de que a observação da leitura do outro assumiu verdadeira condição imperativa. Não há como passar impune pela enxurrada tecnológica e depois, com necessária cautela, também não separar o joio do trigo quando o assunto é eleger o que merece ser reconhecido como algo efetivamente bom em termos de produção textual. E o caminho torna-se tão mais gratificante e recompensador quando compartilhamos intensamente os signos que nos são ofertados no grande banquete literário que é a vida. Existência esta que nos incita a abraçar manifestações como a do escritor paulista Claudio Parreira.

Apregoando, como ele mesmo diz, as feições de chargista e vigarista, Parreira transita pela vida com a fluidez de seus provocativos verbos. Seus contos ousam nos remeter à noção de que para um autor o mundo em que vivemos não é o bastante: é preciso estar alerta, quiçá insones, com recusas devidamente prontas ao que nos atribuem como sendo algo irremediável. O escritor rege a sinfonia de suas desacostumadas palavras rumo a uma Pasárgada que sabe a lucidez, ironia e sonho. Apartado dos delírios gratuitos, percorre, íntimo, o universo amplo do realismo fantástico, sugerindo-nos que o caos habita as primeiras horas de seu processo criativo. Em sua movimentada jornada, foi colaborador do jornal O Pasquim 21Revista BundasCaros Amigos on line, Agência Carta Maior, além de figurar em coletâneas como Contos de Algibeira (Ed. Casa Verde) e Fiat Voluntas Tua (Editora Multifoco), Dimensões.br (Editora Andross) Portal 2001 e A Fantástica Literatura Queer (Tarja Editorial). Sabatinado pela Diversos Afins, Claudio Parreira aborda detalhes de sua criação, suas preferências literárias, bem como outros temas que nos apontam estarmos diante de um valioso representante da nova geração de ficcionistas brasileiros.




Cláudio Parreira
Foto: Marianna Parreira



DA - Há em seus contos a presença forte dos elementos pictóricos arquitetando a condução narrativa. Diria que imagens, mesmo em estado bruto de abstração pessoal, são a fonte primeira das palavras?

CLAUDIO PARREIRA - Sim, as imagens são a fonte primeira. Talvez isso seja porque a princípio queria desenhar, e "via" as coisas antes de transformá-las em palavras. Mas as imagens comuns, cotidianas, sempre me pareceram insuficientes para expressar o que eu desejava. Daí as fui torcendo, exagerando com o auxílio das palavras. Quando descobri o Surrealismo é que me senti finalmente em casa. Fui para o laboratório, fundir uma coisa na outra, apagar os limites entre imagens e palavras, extrair uma nova realidade. A imagem de um poste não me diz nada. Mas se eu conseguir imprimir a imagem de um poste flácido na memória do leitor, o meu trabalho está concluído.


DA - Estaríamos, então, diante de um sentido de transgressão ou transcendência?

CLAUDIO PARREIRA - A minha história está mais para o lado da transgressão, pelo que ela tem de provocativo. Não busco a transcendência, não aquela da tradição metafísica. Não quero o sublime; me agrada o choque. Não quero o meu leitor em nenhuma paisagem paradisíaca: prefiro fazê-lo contemplar um transatlântico ancorado em plena Avenida Paulista.


DA - Essa ideia de provocação vem, fundamentalmente, da sua porção chargista? Em que medida o escritor e o artista plástico estão fundidos numa pessoa só?

CLAUDIO PARREIRA - Eu lia O Pasquim quando era menino. E ficava impressionado com os cartunistas, os chargistas. Queria fazer aquilo! A proposta anárquica do jornal sempre me chamou a atenção, e eu sabia que aquilo existia para provocar o leitor. Como eu não conseguia provocar com o meu traço, descobri que as letras eram o único caminho possível. Com a chegada das novas tecnologias, hoje até me arrisco a fazer algumas charges, alguns cartuns, mas já não é a mesma coisa de quando menino. As letras me seduziram. Escritor e artista plástico ainda habitam em mim, mas o escritor sempre sai na frente.


DA - Julio Cortázar sustentava que havia nascido para não aceitar as coisas como lhe são dadas. Até que ponto um autor deve estar comprometido com a transformação da realidade?

CLAUDIO PARREIRA - Concordo com o argentino: se aceito o que me é oferecido, escrever se torna sem sentido, vazio. Mas acredito que um autor não tem o comprometimento de transformar a realidade; isso cabe a outros setores da sociedade. O comprometimento do autor é com a sua obra, que, esta sim, pode ajudar na transformação do real.


DA - Em termos de processo criativo, por vezes, é exigida do escritor certa habilidade em ordenar o seu caos interior. Como é que essa ideia se aplica à construção de suas narrativas?

CLAUDIO PARREIRA - O caos, ah!, o caos! Não há criação literária sem caos. Eu sou bem simples em relação a isso: primeiro deixo que ele se instale por completo, domine a criação, deixo de lado todas as normas de boa conduta, as fórmulas, o que seja. Digo que no primeiro instante não faço, é o caos que faz. É a ideia bruta, a massa, matéria-prima, o texto quente. Só mesmo depois - algumas horas, dias, meses até - é que ponho ordem na coisa. Aí entram todas as ferramentas do ofício, essa a hora de "trabalhar" o texto, dar-lhe a forma definitiva, modelar. Nesse momento já é um processo muito cerebral, frio, técnico mesmo. Mas o caos é sempre o princípio, é a parte mais prazerosa de todo o processo.


DA - Até que ponto a leitura dos clássicos é fundamental para a consolidação de uma escrita? No seu caso, há algo especial em torno disso?

CLAUDIO PARREIRA - Os clássicos sempre serão a base da escrita. É preciso que sejam lidos, discutidos, analisados - porque é sempre a partir deles que nasce o novo. Muitos os consideram chatos, anacrônicos, mas na verdade eles são a base do que deve ser construído, e é exatamente isso que muita gente não leva em consideração. É preciso ler os clássicos para subvertê-los, virá-los do avesso, extrair deles algo diferente.

Os meus clássicos prediletos são O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote De La Mancha e também Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cito ainda Viagem à Roda do Meu Quarto, de Xavier de Maistre - os quais até hoje uso como referência para o meu universo fantástico. Poderia citar aqui outra dezena de obras e autores, mas esses em particular me ensinaram que extrapolar o real não é algo, digamos, moderno. Eles foram, e continuam sendo, o ponto de partida para o que venho escrevendo desde sempre.


DA - Com o advento da internet, o que mudou fundamentalmente na sua rotina de criação?

CLAUDIO PARREIRA - A rotina de criação permanece a mesma: dependendo da ocasião, um guardanapo de bar serve de suporte, um caderno, qualquer coisa. Não aposentei a caneta. Hoje, preferencialmente, escrevo direto no computador pelas facilidades que os editores de texto oferecem. A internet, no entanto, uso mesmo como ferramenta de divulgação. Ela é ótima nesse sentido. Sou da época Correio, mas me adaptei muito bem ao e-mail. Antes, às vezes demorava mais de uma semana para alcançar um único leitor. Hoje atinjo centenas em apenas alguns segundos. Creio que essa é a grande vantagem que a internet nos oferece agora.



Foto: Marianna Parreira


DA - Uma das críticas usuais sobre o modelo alavancado por muitos blogs e sites é de que está se fazendo uma literatura de compadres, na qual tudo é endossado indistintamente. O que você pensa a respeito disso?

CLAUDIO PARREIRA - Essa crítica é válida, sim, basta ser um leitor atento dos blogs para se dar conta disso. É a famosa troca de favores: "Fala bem de mim que eu falo bem de você". Eu mantenho dois blogs: o Blog PPC!, pessoal, no qual concentro a minha própria criação, e também o Palavras Outras, este voltado exclusivamente para a criação alheia, como o próprio título indica. Mas o que entra no Palavras Outras não é porque fulano ou beltrano pediu, ou pagou, ou me fez um agrado com palavras ou livros. O conteúdo do blog é pautado sempre por aquilo e aqueles que me interessam, que eu acho que realmente têm algo novo a dizer. Essa questão que você levantou, infelizmente, é um fato - e continuará sendo. E vai muito além da literatura: é um problema social que pode ser verificado em muitos outros campos, artísticos ou não.


DA - Sem dúvida alguma, o trabalho desenvolvido pelo site O Bule tem se firmado como uma valiosa ação literária na grande rede, na qual esmero e qualidade aparecem muito bem equilibrados. Como tem sido essa experiência de fazer parte de tão importante projeto? É possível vislumbrar ali uma perspectiva que aponta para a formação de leitores?

CLAUDIO PARREIRA - Vou começar a resposta pelo fim: O BULE forma, sim, leitores. Digo mais: consolida. Ao longo desses quase dois anos de blogue, agora site, tivemos a oportunidade de perceber que já havia na rede um grande público ávido por literatura de qualidade mas que não encontrava algo que fugisse aos padrões tradicionais, "certinhos", um público que ansiava por um site que dessacralizasse esse bicho de sete cabeças chamado Literatura. Essa passou então a ser a missão d'O BULE: levar ao grande público a boa literatura contemporânea (e não apenas ela), seja em forma de contos, crônicas, poemas, seja em forma de sorteio de livros e, mais ainda, em entrevistas que não se limitam a perguntar aquilo que se espera, mas, antes de mais nada, provocar tanto os entrevistados quanto os leitores. Disso tudo, é com grande prazer que dizemos que muita gente boa, que hoje anda com os próprios pés, já passou antes pelas páginas d'O BULE. Não é elegante citar nomes aqui, mas muito dessa novíssima geração de escritores contemporâneos ainda tem O BULE como referência, o que nos enche de orgulho e da sensação de que estamos cumprindo - e bem - a nossa missão.

Nessa máquina chamada O BULE, digamos assim, é preciso deixar de lado o pessoal e pensar no coletivo, no objetivo que queremos atingir. Manter um site coletivo não é tarefa simples, sabemos todos nós, os colunistas, mas o importante é que funciona. Os quase dois anos de atualizações diárias e sucesso  são as provas mais do que evidentes de que a literatura encontrou n'O BULE um suporte à altura.


DA - Muito se sustenta que o Brasil é um país de poucos e parcos leitores. Subvertendo um pouco a questão, podemos também considerar que, em geral, as pessoas são subestimadas?

CLAUDIO PARREIRA - Sim, acho pertinente o seu ponto de vista. Se as pessoas não têm condições mínimas de saúde, moradia, sobrevivência, o que dizer então da cultura? E, ao contrário do que se pensa, e se insiste em repetir como um mantra, o Brasil é, sim, um país de muitos leitores. O que lhes falta é o acesso mais democrático ao livro, mais barato. Já ouvi falar de se incluir livros em cestas básicas. Ideia absurda? Não acho. É preciso aproximar o leitor ainda mais do livro, do escritor, tirar a literatura do pedestal.

Dizem também que a música erudita não tem público. Não se verifica isso nos concertos gratuitos ao ar livre. Existem as campanhas promocionais de teatro. Por que não se intensificam os "esforços" em relação à literatura? Será que ainda temem que o objeto livro seja a mola propulsora de um antigo mecanismo chamado reflexão? Dando acesso às pessoas a essas diversas manifestações culturais, o atual panorama sócio-político brasileiro pode mudar e muito. Mas será que isso é interessante para uma minoria? Parece que não. É cômodo que as coisas - e as pessoas - permaneçam como estão.


DA - É instigante perceber na forma como você escreve a atuação viva dum realismo fantástico, lugar povoado do lúdico e também de certa dose irônica. Você pensa concretamente numa literatura voltada para a reinvenção da existência quando se utiliza desse percurso por outros mundos paralelos?

CLAUDIO PARREIRA - Penso sim. E é isso: as minhas narrativas são repletas dessas figuras de sonho, de tempos paralelos, janelas que conduzem a outros universos. O Realismo Fantástico ao qual você se refere foi fundamental, na figura de Julio Cortázar: ao conhecê-lo, descobri não o mundo, mas um outro mundo possível. E risível também. É nele que vivo até hoje, é neste espaço que se desenvolve toda a minha criatividade. Isso eu tento levar ao leitor: a experiência de ver muito além deste real nosso de cada dia.


DA - Afinal, por que escrever?

CLAUDIO PARREIRA - Nesta pergunta cabe um universo, mas prefiro ser bem conciso na resposta: escrevo porque não concordo, porque não estou satisfeito com as coisas como elas são.







Foto: Anderson Ivo





JANELA POÉTICA  (V)



BENDITA

Natália Nunes


Herdei essa aura de mistério e ternura
E um resquício de dama, de sacerdotisa do sagrado
Feminina sob o manto, no resguardo
Cântaro de delícias, lisuras, agrado
Fui fresca de fissuras,
Com os panos aflitos por serem rasgados
Tonta de misérias, gota, gotas
E ainda agora, permaneço pedindo
Sou O pedido.



(Natália Nunes autocria-se na palavra, mãe que é do mundo. Não que escreva: bate asas, vive, e, se ri ou se lágrima, sobram letras – que precisam sair, entrar em queda livre, ser coisa no mundo, precisam. É de Belo Horizonte por nascença, e é mulher que assim se exerce)







Foto: Anderson Ivo








LAURA

Claudio Parreira


Não importa, eu vou. Escalando as costas da tarde, que se precipita feito uma flecha em direção ao depois.

Porque assim tem sido desde sempre: logo cedo a questão me abraçou: você escolhe entre voltar, permanecer ou seguir. Não aprendi a voltar; permanecer é doloroso. Seguir, portanto. É o que tenho feito.

Cada segundo traz nos bolsos o mistério. A aspereza do oxigênio. O suor em chamas. O nome dela é Laura.

Foi num sonho. Laura era um susto. Não pude ver o seu rosto, o seu corpo. Névoa de sono. Mas sim, os sentidos todos apontando pra ela, a mulher.

Quando acordei toda a cama era um oceano. Peixes transparentes no ar. Na boca um gosto amargo de estrelas. Laura era fiapo de sonho, impalpável, mas já existia em mim.

Daí todos os meus dissabores.

- Laura, foi quando eu suava labaredas. No sonho, ela estava no sonho. Viu ela por aí?

Riam de mim. Esse o mal das pessoas: ninguém acredita nos sonhos alheios.

Minha única certeza era uma só. Nunca no meu passado, no meu presente de maneira confusa. Só depois, talvez. Laura só no futuro.

Por isso escalo os calendários com a determinação de um condenado. Não me cabe permanecer aqui. O desespero é hoje, nunca ontem. O sofrimento é agora.

Longa a estrada. Os gatos no caminho. Uma conversa esclarecedora.

- Não sei como ela é – dizem os gatos -, mas tenho amigos que moram lá, no depois. Falam de Laura, Lauras. Depois é cheio de Lauras.

Suspeito, portanto, de que estou no caminho certo. Um homem que acredita na palavra dos gatos. Talvez por escrever.

As primeiras letras também foram difíceis. Difícil subir ao caderno, acomodar-se às dobras das sílabas, domar consoantes. Porque no princípio toda palavra é vertigem. Como as mulheres. Desconhecido azul.

O rigor. Porque as palavras fogem à falta de rigor. Precisam de um braço para contê-las. De maneira que o meu aprendizado com as mulheres começou com as palavras.

Mas eis que agora me vejo aqui sem nenhuma delas. Há tempos não escrevo uma mulher. Laura é sabedora da minha condição. Por isso veio no sonho. Vapor-mulher, a direção que faltava aos meus pés.

Quanto mais avanço menos gatos eu vejo. Os poucos que ainda restam temem falar. Depois é um território nebuloso, eu sinto. Só os gatos mais corajosos chegam lá. Só os homens mais corajosos se dispõem a chegar lá. Depois. Laura não está. Laura é lá.

Econômica a minha paisagem. Uma estrada, só, uma tempestade de girassóis do lado direito, do esquerdo os cardumes: peixes azuis amarelos pretos, tantos peixes - e não dão a mínima para os gatos.

- Não como os peixes sonhados pelos homens – diz um gato amarelo. - Não tenho essa capacidade.

Sonhos particulares. Cai por terra a minha teoria de que os sonhos pertenciam a todos. Não pertencem aos gatos, pelo menos.

- Os nossos são de outra natureza – dizem os gatos verdes. – Basta um sonho de gato para o seu mundo sair do eixo.

O meu mundo saiu do eixo desde que sonhei com Laura. Seria o meu, então, um sonho de gato?

- Só um gato sonha sonhos de gato – dizem os gatos azuis. – Eis aí uma questão a ser considerada.

Vejo Laura pela primeira vez, finalmente. Está ao alcance da minha mão. E ela não é mais névoa, nem sonho.

- Mas você não pode me tocar – ela diz, o sorriso tranquilo no rosto.

Estendo meu braço e o que encontro na extremidade é uma pata de gato. Meu braço é um gato. Eu sou o gato.

- É por isso? – protesto. – Não sou um gato, não era até há pouco. Estou gato, e isso é diferente!

Laura sorri. Todo o meu trabalho foi inútil. A minha caminhada. Malditos gatos! E agora de nada me adiantam as palavras, são vento.

- Tanto faz pra mim se você está gato ou elefante – ela diz, a voz serena. – Você nunca vai me alcançar.

A tempestade de girassóis. Os cardumes. Laura é o caos.

- Agora – diz Laura, os lábios sorrindo sílaba por sílaba. – Você é agora. Percebe?

Nenhum gato mais. Somos apenas eu e ela.

- Eu sou agora.

- E eu, depois – ela diz.

- Por mais longe que eu vá, serei sempre agora.

- Depois é a minha maldição.

O universo tem essas cápsulas que separam as coisas, as pessoas. Não posso alcançar o ontem.

Laura é névoa mais uma vez. Sempre será. Mas não aprendi a voltar; permanecer é doloroso. Sigo, portanto.







Foto: Anderson Ivo





JANELA POÉTICA (VI)


UM CORPO DE VERÃO


Marcus Vinícius Rodrigues


Um corpo de verão passeia
sob a pálpebra que cerra.

Eu sei.

Só de sonhá-lo, sei do abraço
e todos os hálitos que esperam.

Aguarda, tarde,
para o sol sob as pálpebras

e saiba.

Sou eu o horizonte que basta.



(Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-BA. Publicou os livros "Pequeno inventário das ausências” (poesia), Prêmio Brasken/Fundação Casa de Jorge Amado - 2001, “3 vestidos e meu corpo nu” (contos) – Editora P55, 2009, “Eros Resoluto” (contos) – Editora P55 e, mais recentemente, “Cada dia sobre a terra” (contos) – EPP Publicações e Publicidade, 2010. Participou das antologias “Concerto lírico a quinze vozes: uma coletânea de novos poetas da Bahia” (Ed. Aboio Livre, 2004), “Os outros poemas de que falei” (Prêmio Banco Capital, 2004) e “Tanta poesia” (Prêmio Banco Capital, 2005), dentre outras)





OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão



ANELIS ASSUMPÇÃO – SOU SUSPEITA ESTOU SUJEITA NÃO SOU SANTA




Para um descendente direto da linhagem de um alguém como Itamar Assumpção o sentido da palavra herança extrapola qualquer mero entendimento físico.  E aqui nem de longe pensemos na noção já tão desgastada de dons transmitidos ou de trejeitos captados no modus operandi do predecessor. Pois, então, pensemos apenas na capacidade de se andar com as próprias pernas, sugerida na expressão musical de Anelis Assumpção. A moça não renega as raízes e sua presença sonora torna-se marcante pelo fato de, em seu disco de estreia, ousar mais, muito mais do que apenas cantar bem.

Sou Suspeita Estou Sujeita Não sou Santa é um nome de batismo que toma de assalto alguns eixos sentimentais modernos. Nele, o arquétipo das relações humanas é posto em xeque e, em seguida, é redimensionado para um olhar que sabe a sutis ironias, lampejos amorosos e outras delicadezas possíveis da existência. Ouvir o disco assemelha-se à experiência de percorrer um mundo paralelo de sensações. É como mirar a paisagem que passa bem rápido de dentro de um trem e, da imagem contemplada pelo viajante nada passivo, perceber que tudo se mistura no tempo e no espaço das razões.

Cada uma das canções está envolta numa aura de emoções próprias, todas elas atreladas a um sentido ternamente poético. Logo na primeira faixa, Mulher segundo meu pai, estamos diante da presença etérea de Itamar Assumpção, transmutando numa bucal percussão a verve de seu legado. Em Amor sustentável, Anelis vira do avesso a noção comportadinha do ideário romântico piegas e deixa o som ser atravessado pelo recitar leminskiano do ator Gero Camilo. Deita I e Deita II são entreatos de um mesmo aparato cênico, uma cisão que condensa os significados centrais do disco. Destaque-se também a suavidade de Secret e Neverland, e o canto sublime de Quaresmeira.

O álbum é recheado de vigorosas apostas sonoras, vias que transitam principalmente por elementos do dub, samba, reggae, jazz e MPB. Somem-se a isso as participações de gente como Céu, Thalma de Freitas, Karina Buhr e Curumin, turma que engrossa o coro da nova e boa cara da música brasileira. Com todos esses ingredientes em mãos, Anelis flutua por sobre os dias aborrecidos de nossa moderna idade. Que tal fazermos o mesmo?



* Clique aqui e abra os ouvidos!






Foto: Anderson Ivo





JANELA POÉTICA (VII)


AULA

Lúcia Delorme


Aprende:

o gesto gratuito
sem esperança de níquel
do menino-semáforo

Ensina:

a luz também lacera
o silêncio pode corromper



(Lúcia Delorme, nascida na cidade de São Paulo, é formada em psicologia e vive em Salvador, Bahia. Escreve o blogue Raízes aéreas e é autora do livro do mesmo nome, inédito, de onde foi tirado o poema aqui publicado)






Foto: Anderson Ivo





CARTAS A ANA XIV

Dheyne de Souza



Ana, o que acontece comigo agora, embora por muitas vezes natural, sim, me estranha um pouco a carne dos ossos. A carne subentendida dos verbos. A carne impostora do trânsito da Ausência. Angústia? Talvez também. Ana, minha pessoa mais querida e longe, hoje tenho me dado golpes pequenos. Sim, são. São maneiras não recomendáveis de postar o corpo, de furar posturas, de incomodar-me membros. Não é? Também estranho o olho teimando em iludir o espaço, de um jeito peregrino chover saudade rubra. Está bem, também já não quero mais pedir-te, dizer-te, matar-te em esmolas. Imolo-me somente hoje e Ana. O que faço com essa parede? Que cor a porta? As tuas unhas, ali, ceifando minha memória. Se se desse conta do quanto és má, Ana, mas eu me prometi não dizer isso agora. Nem é pela promessa também, que isso é incentivo, a quebra, mas pelo cansaço exaltado disso. Falarei das tranças que guardam meus ombros dos seus, essas amarras embutidas no teu colo, essa farsa de pelo de ouro de roubos de ar. Também disso não, pelo cansaço desejado disso. Intuir a cor do sol no crepúsculo da sua espera, e ela. Aguardar uma possível resposta sua, que nunca veio. Como estás vestida, Ana, será.



(Dheyne de Souza está em Goiânia-GO, escreve principalmente poesia, tem trabalhado em artes plásticas e colabora nos ambientes de Histórias Possíveis e Vida Miúda com o pseudônimo de Ana)






Foto: Anderson Ivo







JANELA POÉTICA (VIII)

 

 

OFERTÓRIO

 

Nilson Barcelli



Lânguida,
a tua mão acaricia-te
no silêncio branco da noite.

Pegas em sonhos ávidos
e metes na boca
o sabor quente a canela,
que mascas na passarela do enlevo.

Percorres-te debaixo da pele
e, de ti, conquistas o céu.

Incandescente,
sorves a polpa despida,
sonhada e roliça,
tal como as raízes do oásis
procuram a água.

Ofereces-te num altar,
em fragmentos de seiva,
e és total em cada parte.

Depois,
mansamente,
guardas os bem-me-queres
no sacrário da mente,
até que rebentem de novo.



(Nilson Barcelli, vagamente luso-brasileiro com algum sotaque italiano, um romântico inveterado de triplo sangue latino, é o pseudônimo de um português de meia idade sem formação literária. Começou a escrever prosa em 2003 para melhorar a sua capacidade narrativa e, em 2005, quase por acidente, fez o seu primeiro poema. Daí para cá tem-se dedicado quase em exclusivo à poesia, onde os afetos, principalmente o amor, ocupam um lugar de destaque. Apesar de vários convites para publicar em livro a sua poesia, tem recusado sistematicamente. Irá fazê-lo dentro de 5 ou 6 anos, a menos que surja uma proposta remunerada pela tiragem da edição (será a prova inequívoca de que o editor acredita na qualidade da poesia que faz))






Foto: Anderson Ivo





* O fotógrafo baiano Anderson Ivo imprime sua sensibilidade no registro de manifestações culturais, grafismos e arquitetura, mas o seu foco mais sutil pode ser percebido na beleza cotidiana captada das ruas. Essa particularidade do artista aponta para seu desejo de documentar as peculiaridades do seu tempo, trazendo à tona interessantes momentos que normalmente passam despercebidos.


Anderson já teve trabalhos selecionados para bienais promovidas pela Confederação Brasileira de Fotografia e é membro do fotoclube Confraria Fotográfica em Salvador. Em suas concepções, o fotógrafo considera que o mais importante são o olhar atento e a atitude diante da busca de formas de expressar a arte.  Acredita também que discussão e produção fotográfica em grupo são experiências muito enriquecedoras.

 
publicado por Fabrício Brandão
Permalink ¤ 17 EXPRESSARAM AFINIDADES

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