31 de jul. de 2011,15:51
QUINQUAGÉSIMA NONA LEVA


Pintura: Staëll Di Lukka





CICERONENADO


A jornada de agora é pontuada por um sentimento deveras especial: arte e literatura podem estar ao alcance de todos. Se não somos ainda uma nação de consumidores vorazes de cultura, nada nos impede de acreditar em tal perspectiva. No campo da literatura, por exemplo, poderemos nos surpreender com muitas situações ofuscadas no turbilhão cotidiano. Não são poucas as pessoas que, quando apresentadas aos livros de forma leve, passam a querer mais e mais desbravar horizontes encerrados em suas páginas. Entenda-se aqui por forma leve um sentido desburocratizado de aproximação com potenciais leitores. Mesmo sendo um processo lento e gradual, dificilmente alguém irá rejeitar a possibilidade de se permitir a descoberta de um novo mundo. Talvez para tal intento seja necessária uma dose adequada de sedução, através da qual leitores possam tomar posse de seu processo pessoal de transformação do olhar. Inspira este sentimento a conversa que tivemos com João Luiz de Sousa, mais conhecido como João do Corujão, cuja trajetória de vida aponta para uma noção de como a literatura pode transformar existências. É dele a condução de um dos projetos brasileiros mais importantes no campo da disseminação das palavras, o Corujão da Poesia. Nesta entrevista, João fala de um tudo, especialmente no significado de um termo que resume bem sua missão à frente de tão importante causa: ser um libertador de livros. Por entre as múltiplas vozes de agora, espalha-se também a delicadeza contida nas telas de Staëll Di Lukka. Uma a uma, as janelas poéticas agregam  imagens presentes nos versos de Lívia Soares, Felipe Stefani, Luciano Fraga, Maria Quintans, Romério Rômulo, Iracema Macedo e Fabrício Clemente. Somos apresentados ao novo livro do poeta português Casimiro de Brito pelas linhas de Maria João Cantinho. O olhar cinéfilo de Larissa Mendes aponta para a instigante temática presente na produção argentina O Homem ao Lado. Noutro momento, os contos de Maria da Conceição Paranhos, Regina M. A. Machado e Alice Fergo mergulham no denso universo da alma humana. Insistindo em libertar palavras, a 59ª Leva desfila suas recentes expressões.




*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.  





JANELA POÉTICA (I)


MORPHEUS, UMA TRADUÇÃO

Lívia Soares


Não te deixes levar pelos
movimentos oculares rápidos, esse
manancial de fábula e engano.
Quanto do Sonhar não passa
de um delírio que deixa resíduos
nas pálpebras? E, no entanto,
eu te digo: sou daqueles que
nasceram com a fronte marcada,
em mim o Sonhar esfumou as fronteiras
entre céus e terras, corpo e alma
e todos os reinos intersticiais.
Quando acordo, tenho marcas por
toda parte e nunca sei o quanto
de mim deixei na terra das sombras.
Tenho, por exemplo, nas pontas
dos dedos um gosto de auroras;
algumas estrelas tatuadas na
noite escura da alma; sardas
salpicadas pelas colinas num torso
a se desmanchar de brancura;
a Via Láctea disposta e alojada
entre as costelas de um visitante;
a persistência de azuis aéreos
explodindo no céu da boca;
tempestades de areia traçando
arabescos e enigmas convidativos...
Talvez por isso não ousei, nunca,
duvidar do monumento a que
chamei - a Vida Verdadeira. Assim
eu nos vejo quando sonho. Tu
estás comigo, não como "deverias",
não a estupidez de uma utopia.
Estás comigo inteiramente, com
todas as colunas do Templo restauradas,
com todos os Paraísos reconquistados,
bem visíveis os termos da equação.
E ao despertar, o monumento
se confirma na largueza dos céus,
nas pinceladas da aurora,
na gravidade dos ventos: somos nós.
Os corpos já tocados pelo outono,
as almas educadas nas veredas,
as mãos firmes, delicadamente
portando as chaves de um reino
cujo tempo chegou, e nós sabemos.



(Lívia Mara Araújo Soares nasceu em Caicó/RN e vive hoje em Natal, a capital do estado. Trabalha e sonha entre o sertão e o mar, não exatamente nessa ordem. Prepara um livro de poesia, outro de contos e outro de ensaios, exatamente nessa ordem)







Pintura: Staëll Di Lukka
 






O SÍNDICO

Maria da Conceição Paranhos


Aos sábados, a campainha tocava às 08h45min. Ivan, sozinho no apartamento, demorava-se. Esperava o segundo toque, às 08h46min. Então se levantava vagaroso e abria lentamente a porta. Após os cumprimentos e mesuras, dizia, como sempre, há 15 anos: “— Desculpe, Sr. Clayton estava terminando o banho”. Isto não sem antes molhar bem os cabelos, despenteá-los e os ir enxugando enquanto falava. Em seguida, cintava mais o roupão de banho, toalha em volta do pescoço e mãos na cintura, um charme verdadeiramente. Ivan era um sedutor irresistível, seus belos cabelos negros semilongos, as costeletas bem definidas, retangulares, finas e compridas, o que fazia um contraste com o corte casual, sutilmente desordenado, flou. Ele, o síndico, esboçava um gesto não se sabe de irritação contida, neutralidade ou indiferença ou todas, aliadas a certo olhar de lampejos rápidos, maléfico. Tudo veladíssimo. Era um homem derrotado. Em grande parte por não aceitar o seu próprio desígnio, seu desígnio de dentro e o que lhe viera com a vida. Ele vivia, como diz meu sábio pai, serrando serragem. Pena. Sua falta de resignação diante da falência de sua empresa de construção civil era amarga e contaminava todos os seus atos, por óbvio sua vida doméstica e a de sua vizinhança. E então Ivan lhe dizia: “— Sr. Clayton, não quer entrar um pouco?”. Com aparente naturalidade, Ivan fazia esta pergunta. Sua ironia dançava nos olhos vivos e pensava no síndico. Ridículo. Aquela gestualidade enrustida e a postura teatral. Queria o Clayton exibir uma superioridade da qual não dispunha nem por personalidade nem por história de vida. Às vezes o síndico dava um ou dois passos soleira adentro. Jamais se sentara, em 15 anos, quando das suas visitas formais, olheiras, o rosto e o cabelo ensebados e o cheiro de gasolina (fazia manutenção do seu Fiat Uno, já bem sambadinho, aos sábados pela manhã). 52 sábados por ano durante aproximadamente 10 minutos de pé à porta de Ivan, incluindo os rituais todos, 780 sábados em 15 anos. Horas, de pé! Ele pensava que iria humilhar Ivan com essa atitude que se queria cerimoniosa e fria. Ivan percebia uma faísca de maldade cortante no olhar de uns olhos verdes feios, de sapo, e no beiço caído. “— O senhor precisa entender, Sr. Ivan, que não trabalhamos com previsões, mas com provisões. A situação do condomínio é preocupante”. Nada exclamativo, tudo dito com desídia.  Havia algo de comovente no Sr. Clayton. Talvez o seu desejo de ser correto em tudo. O síndico rolava na boca aquilo que ele considerava um achado verbal: previsões... provisões. Ivan se ria ao me relatar isso. Dizia-me: “Olha aí, meu amigo, o tópico de tantas das nossas conversas: tudo é palavra! La vida essueño. Calderón de la Barca grafou e fixou definitivamente o óbvio, e por isso é universalmente citado O que vale mesmo é a convicção de quem fala. Ou o modo como se escreve. O resto é com quem ouve. Ou lê”.

A bem da verdade, o Ivan, culto que fosse, possuía ideias com as quais eu não anuía. Mas nas questões de linguagem quase sempre concordávamos.  Amigo meu não tem defeito. Muito menos amigo morto, que passa ao olimpo da veneração. E, depois, Ivan como jornalista, foi o melhor que já conheci, o que já é uma imensa vitória da lucidez contra a mediocridade da esmagadora maioria de seus confrades.

Mas foi assim que Sr. Clayton ia mesmo à busca da taxa condominial – expressão que, particularmente, detesto. Detesto, aliás, qualquer taxa. Detesto tanto, que nem tomo táxi, pela semelhança da primeira sílaba com o morfema de base tax-. Apesar do quê, não se pode confundir /ch/ com /ks/. Fonemas, a verdade da língua, seus sons. Todo o resto é arbitrariedade, agora mesmo enquanto escrevo. Com a linguagem é assim. Sou linguista, diga-se logo, para evitar mal-entendidos ou maus entendimentos.

Voltando, Ivan sistematicamente atrasava o pagamento de quase todas as suas contas, porém as pagava. Condomínio incluído. Não atrasava porque queria. Havia uma pessoa muito doente em sua família e com ela gastava quase todo o seu capital líquido, uma sobrinha querida e órfã, que vivia numa clínica particular em São Paulo, há anos. Esquizofrenia.  Além do mais, as despesas de viagem, pois ia visitá-la com frequência, sentia a sua falta e queria dar-lhe todo o seu carinho e atenção. Era como uma filha mesmo. Ivan tinha, além disso, dois filhos casados, todos dois fora, realizando seu Ph. D. na Universidade de Cornell com bolsa da Fullbright. Claro que havia, a despeito da bolsa, grandes despesas. E havia a pensão de sua ex-mulher, compradora compulsiva.

O fato é que com uma dívida já alta de condomínio, Ivan ainda teria de pagar o fundo de reserva. Decidiu levantar dinheiro no banco, com um empréstimo, para sanar a situação. Pronto, estava resolvido. Foi quando resolveu tomar todas num certo sábado. O que era simples agastamento tomou proporções cada vez maiores. Na madrugada de 1º de dezembro de 1999, Ivan certificou-se de se os moradores estavam fora (viajavam no fim-de-semana com frequência). Estavam, disse o porteiro. Neste mesmo dia, escreveu um poema sobre anjos, que jogou pela janela como aviãozinho para a casa da vizinha da esquerda, Dona Maria da Assunção.  Colocou uma bomba-relógio na garagem do prédio para as 03h00minh e foi dormir.



(Maria da Conceição Paranhos Pedreira Brandão nasceu em Salvador, Bahia. Poeta com vários livros publicados, de modo geral, devido a prêmios. Exercita outros gêneros: Ficção, Crítica de literatura e outras linguagens, Teatro, Vídeo, Tradução. É Doutorada em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia. O mais recente livro de poesia é Delírio do Ver (Rio; Salvador: Imago Editora, 2002). A maioria de sua obra, poética e em outros gêneros, é inédita (nove livros prontos))








Pintura: Staëll Di Lukka









JANELA POÉTICA (II)

Felipe Stefani


"Sede astutos como as serpentes e simples como as pombas"
(Matheus 10.16)


Resta o exílio.
Não compreendo as vozes que dormem
na exatidão do engano.
Fiz do silêncio dos ciclos
que veneram a poesia
um mito,
e naveguei as correntezas sem margens,
as flautas inauditas,
e os sinais das estações.

Tudo isso eu vi,
pois o único caminho não precisa de rotas,
e minha palma se abre a tudo.

Como o extremo sinal do único principio,
fui extremo,

e vivo.



(Felipe Stefani é poeta e atista plástico paulista. Lançou dois livros, "O Corpo Possível" (2008), pelo coletivo Dulcinéia Catadora, e "Verso Para Outro Sentido"(2010), pela Escrituras Editora. Tem seus desenhos publicados no site Só Desenho  Escreve também em seu blog Cultuar)





OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão


ANA PAULA DA SILVA – PÉ DE CRIOULA






Após alguns anos de estrada e consolidando uma trajetória de qualidade, a catarinense Ana Paula da Silva desbrava novos caminhos em seu quinto disco. Pé de Crioula, de cara, é um nome sugestivo naquilo que remonta a toda uma atmosfera carregada de brasilidade. Estamos diante de um álbum todo devotado ao samba de um modo bastante especial, qual seja o de tomar os espaços sonoros com uma dose bem encaixada da raiz do gênero. 

A cantora, que em seus discos anteriores apostou em possibilidades diversas de musicalidade, agora distribui toda a intensidade de seu canto num projeto que se presta a um verdadeiro tributo ao samba. Sua voz marcante empresta vigor a canções como Curiosidade, Samba na veia, Me alucina e Nuances do amor. O disco finca suas bases na porção tradicional do samba, mas é em faixas como As guias de uma moa, Longa espera, Negro coração e Pé de Crioula que parece atingir um grau máximo de beleza por conta da presença viva e plástica dos elementos afro-brasileiros. Neste aspecto, todo um rico cenário fruto da cultura negra constrói um painel sensível e intenso de nossa miscigenada nação.

E o que dizer das letras? A melhor resposta é que, de fato, há, por trás de cada canto, verbos a falar de vida com a propriedade de quem se aproxima de uma merecida maturidade musical. Pé de Crioula, ao mesmo tempo em que atesta a qualidade de compositora de Ana Paula, abre alas para composições de gente como Giana Viscardi, Michi Ruzitschka e Wilson Moreira. Lá se vão aproximados 16 anos de carreira e a moça parece flutuar, com sua voz impregnada de personalidade, rumo a vias cada vez mais sólidas. A cada novo trabalho, a artista mostra disposição para a permanência. E quem gosta de boa música certamente saberá reconhecer as razões de tais constatações. 


Abra os ouvidos e clique aqui







Pintura: Staëll Di Lukka







JANELA POÉTICA (III)


O CICLO DO MEDO

Maria Quintans


esta é a metafísica saturada do sonho.
[não dizer nada]
dormir com o cão enrolado à pele.
rasgar no desejo o fôlego do poema.
afundar de ironia a almofada do silêncio.

                             
toma. [este é o meu sangue].


***


o medo tem um corpo de água espessa.
[podia bebê-lo]
habituar-lhe o sexo.

boca onde todo o sinal se amacia.
onde todo o animal se abre.


***


o medo tem patas iguais a candeeiros.
as patas dos candeeiros são de carneiros. com a língua de palavras a medo.
a lã desenvolve penas com patas de lã. as patas têm na lã a impressão digital do medo.
que por acaso chegou atrasado.


[tão incompreensível como a vertigem do reflexo]



(Maria Quintans nasceu em 1955 e vive em Lisboa. Em 2008 publicou o livro “Apoplexia da Ideia”. Em 2009 fez parte da equipe de criação da revista de artes INÚTIL, na qual é diretora editorial. Em 2010 participou na Antologia Poética “O Prisma das Muitas Cores” – Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira. Em 2011 publicou o livro “Chama-me Constança”)







APERITIVO DA PALAVRA


DE UMA LEVEZA QUE SE QUER INTEIRA

Por Maria João Cantinho


Casimiro de Brito, Amar a vida inteira, ed. Roma, Lisboa, 2011.






(…)Não sei que horas são, sei apenas
que já me pesa a densa luz, a casa
desafinada. E eu
que só queria dançar.


Poeta de obra vastíssima e duradoura, traduzido em muitas línguas, várias vezes premiado - pela APE, pelo PEN clube, pelo Prémio Internacional Versília, de Viareggio, pelo Prémio de Poesia Leopold Sédar Senghor, 2002, pelo Prémio Internacional POETEKA (Albânia), entre outros, tendo sido, ainda, agraciado pela Presidência da República com a Ordem do Infante D. Henrique - Casimiro de Brito continua a surpreender-nos com uma obra poética de inesperado fulgor. E, ainda que seja internacionalmente reconhecido como uma das vozes poéticas portuguesas mais fortes, o seu reconhecimento em Portugal não tem sido consensual, o que talvez seja explicável por algumas escolhas que nunca foram bem aceites na nossa poesia, como a poesia japonesa, que durante muito tempo cultivou.

A inflexão poética da sua última fase dá-se a partir do dia 11 de Maio de 1996, data do nascimento da sua filha Diana, como ele o explica no final deste livro, que constitui o terceiro volume do Livro das Quedas. É verdade, reconheçamos, como o pensa o poeta, que o homem é um animal em queda permanente. A fragilidade é-lhe intrínseca, como o são a finitude e a morte, mas elas são também condições de acesso a uma outra vida, que se situa para lá da morte. Àquele que ouve o rumor do tempo cabe-lhe também o poder da metamorfose, da criação, essas sim, condições que o elevam à condição daquele que dança, como o terá dito Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra: "O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo". E é nesse espaço precário e perigoso que ele se supera a si mesmo, pela leveza da criação, pela dança do espírito.

O mote deste livro abre-se a partir da sua epígrafe, uma citação de Sófocles, da tragédia Antígona. Lembra Sófocles a maravilha prodigiosa que é o homem, mas irreversivelmente marcado pelo destino pela morte. E é esse "estar em queda" permanente que o poeta toma como ponto de abertura à poesia. As dicotomias decorrentes dessa tensão alegórica desdobram-se, tomando a matéria frágil como seu objecto. O corpo, a carne são marcados pelo tempo, pela dor, que o rasgam, esfacelam, mas essa é também a via de acesso à leveza. Tome-se o poema da página 13:

Só quem sofreu durante muito tempo/poderá escrever um poema de amor./Chega o dia em que o som do vento/ e a febre das folhas que vão caindo/já não trazem desgraça, apenas o sussurro,/a perdição amável de quem vive/ a sombra e o Verão. Assim viajo/até ao voo derradeiro/ para dentro da pedra - um ovo! /E voar de novo, "à barca, à barca (…) oh, que maré/ tão de prata!" - e cantar de novo,/de pedra em pedra, de ovo em ovo./Faça-se então/o ofício da dor. Talvez me seja dado/um poema de amor.

A barca, elemento de uma simbologia transversal a tantas culturas, remete-nos inevitavelmente para a barca grega do Letes, o rio do esquecimento (da morte), ou para a barca dos egípcios que se consubstancia, no Livro dos Mortos, como a travessia da alma do morto para o mundo do Além. Casimiro de Brito move-se numa intertextualidade ancestral, devorando os mitos e a simbologia pré-cristã, numa celebração luminosa e inactual. Convoca os Antigos e integra-os numa litania do corpo, que lhes era totalmente alheia. Ao mesmo tempo bebe profundamente a poesia erótico-amorosa, no livro de Salomão Cântico dos Cânticos, na poesia trovadoresca, entre múltiplas fontes.

Na sua obra - e a minha análise é extensiva a anteriores obras do poeta - a glorificação do amor dá-se em toda a sua plenitude, tanto espiritual como carnal, sendo que a carne é (sempre) via para o espírito. Por vezes, a linguagem é crua, as imagens fortíssimas e ousadas, numa clara consciência de que toda a linguagem é poética porque poético são o amor e a sexualidade que o manifestam. As próprias palavras, o dizer poético, impregna-se de carnalidade e vice-versa. Casimiro de Brito sabe que as palavras não são meros signos, mas têm um corpo, como no poema "17", da página 28: "As nossas sílabas ajustaram-se/à saliva ao desejo como se o corpo/fosse apenas sexo e as palavras/apenas corpo. (…)". E se o amor é luminoso, tal deve-se, não apenas ao desejo e ao prazer que o acompanham, às palavras/sílabas que o nomeiam. Certas palavras que retomam, incessantes, o deslumbramento amoroso, a fusão dos corpos, a identificação dos amantes.

Se a litania do corpo e da sexualidade é uma componente essencial desta obra, não deixa de ser uma constante a irrupção da natureza, associando Casimiro de Brito o erotismo a uma homenagem à natureza, em toda a sua variedade e pujança. A rítmica que convém ao acto amoroso é a dos rios e do canto, das múltiplas águas. Se o amante se perde no corpo da amante, essa vertigem assinala em simultâneo a vertigem daquele que mergulha e corre o perigo de se afogar: "Cumpres o teu destino/ de ser mar: o meu é mergulhar./Água onde me afogo e ardo e viajo/na morte mais pura - esta/de que regresso com a boca saudosa da tua água (…)". Mergulhar e perder-se, retornar à luz e salvar-se, eis o que são os perigos daquele que vive o amor em toda a sua extensão. Mas o amor é também escrita, poesia e palavra, grafia, como lembra o poeta, na página 41: "Estarei perdido do meu olfacto/se toda a vegetação me lembra o cheiro, a grafia da tua pele?(…)". Dir-se-ia que o poeta sabe que a única coisa que salva o amor de ser um gesto efémero é o gesto poético, como o escreve, na pag. 79:

Abandonei as coisas efémeras/para me dedicar ao nosso amor/e todas as coisas são efémeras/comparadas com o nosso amor,/Apenas a poesia não trairei,/não posso abandoná-la  - ela não é uma coisa, é um dom/enraízado no chão da fala./Só a morte nos pode separar,/Mas a morte não existe, é passagem,/abre implacável o mar desta viagem/lembrando que tudo é pó ou nada./Abandonei a relva do caminho/e às duas entrego o meu destino.

Se a sombra nos é prometida, como o sabe o poeta, cabe-nos ainda o ofício da luz, mesmo que nada nos seja garantido. Em nome da leveza e da dança.



(Maria João Cantinho nasceu em Lisboa.. Estudou na Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em filosofia. Escritora, jornalista e poeta, tem colaborado em vários jornais e revistas, portugueses e brasileiros. Tem várias obras publicadas, repartidas entre a poesia, ficção e ensaio. Publicou, em 2001, o livro de contos A Garça, em 2003, o ensaio O Anjo Melancólico; ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin, em 2005 o livro de poesia Sílabas de Água, em 2007 o livro de contos Caligrafia da Solidão, (Ed. Escrituras) e que foi nomeado para o Prêmio Telecom desse mesmo ano. Em 2011 publicou O Traço do Anjo (poesia))






Pintura: Staëll Di Lukka








JANELA POÉTICA (IV)


O RAPTO DO PORVIR

Luciano Fraga


Norte, Sul, Leste, Oeste:
Todas as encruzilhadas levam ao inferno...”
N. de Oliveira



O que sobrou para mim
foi um trago amargo
no vinho dos condenados,
o rasgo vespertino
das algemas,
a pantomima
rasa do jogo interminável
a cicatriz do pássaro
que transcende,
as seringas, a overdose,
a morfina;
o calor dos corpos cavernosos,
a velocidade da vida
que ejacula hospícios...



(Eu não me pertenço, assim, acredito na existência de três faces da necessidade transformadora: a do Poeta, a da Poesia e a do homem que sou, soa e escuta... O homem transporta as enfermidades e o dia adia para que o poeta a transforme em poesia. O homem/poeta é o misto quente, agente, fio condutor de energia desta poesia que em si mesma já existia, há tempos... É preciso ficar atento a este atanazamento, esta profecia, à manifestação de santo pelo avesso da alegria, que vem lá de dentro. Como disse Pessoa: “Eu sou nada...” Mas minha alma quer revoltar...)









Pintura: Staëll Di Lukka







PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Fabrício Brandão


É tarde da noite em meio ao silêncio apenas cortado pela paixão futebolística nacional. Nos instantes derradeiros do dia que se esvai intenso, travar, ao telefone, um diálogo renovador com o ser humano João Luiz de Sousa desloca as coisas todas para um lugar que remonta ao amplo conceito de tempo da delicadeza. Meu interlocutor de então é um alguém que profere palavras de paixão pela literatura, com a propriedade de quem declama amor maior ainda ao significado de reconhecer-se vivo e consciente do seu semear. Seu batismo de engajamento cultural incorpora o signo valioso de uma missão: ser o João do Corujão, homem cuja obstinação maior aponta para o sentido da libertação de livros.

Capitaneando o Corujão da Poesia, projeto de extensão ligado à Universidade Salgado de Oliveira, João e seus parceiros atravessam madrugadas cariocas dando voz e vez a uma manifestação democrática do ato de dizer poemas. Através da figura do microfone aberto, o púlpito é livre para quem desejar chegar, recitar e, com isso, imprimir sua marca perante as percepções humanas ali presentes. Não há dúvida de que a catarse se instala em ambientes transformados pelo poder sedutor das palavras. Tal como se deu desde os primórdios de sua trajetória pessoal, João hoje parece flutuar quando o assunto é multiplicar ações em prol da expansão das letras. E a recompensadora conversa que tivemos fala por si só, diz, sobretudo, da renovação do olhar através duma perspectiva valiosa de transformação pela leitura. Ideal e real parecem abraçar-se vigorosamente nas ações promovidas pelo Corujão. Um João Luiz de Sousa fala de sua vida e de seu incansável ativismo cultural com o diferencial do encantamento não só por palavras, mas também por seus agentes manipuladores, os homens. A seara noturna que serve como de pano fundo à entrevista provoca desafios, deseja que, tal qual a efervescência do amor pelo futebol alegoriza uma efusão do mundo circundante, poderemos crer também num país potencialmente amante de livros.



João Luiz de Sousa
Foto:Vitor Vogel



DA - As razões que movem um projeto como o Corujão da Poesia estão muito ligadas a uma noção de crença no ser humano. Antes de tudo, está o homem João Luiz de Sousa. Quem é este homem e como nasceu essa íntima relação com as palavras?

JOÃO LUIZ DE SOUSA – A íntima relação com as palavras nasceu já na infância. Eu tive uma madrinha fantástica, que era uma pessoa que mandava livros, desde os três, quatro anos de idade, quando fui alfabetizado, e um pai e mãe que estimularam muito a leitura e entenderam um pouco que eu era uma criança diferente: não era um menino muito afeito aos jogos, às brincadeiras, às coisas que as pessoas fazem normalmente na infância. Era o tipo de criança meio preguiçosa, meio contemplativa e, acima de tudo, insone, que permanecia muitas horas, durante a noite, acordado. E isso era uma preocupação familiar. Com a chegada da alfabetização e dos livros, eu deixei de dar problemas à noite porque passei a ler. Isso foi fundamental na minha formação, mesmo sendo filho de uma família humilde. Minha mãe trabalhou até casar e, quando casou, parou de trabalhar. Meu pai era funcionário da rede ferroviária federal. Nós tínhamos uma vida muito digna, uma casa decente, alimentação, tudo certinho. Mas os livros e a leitura tinham um espaço sagrado na minha vida e aquela família, mesmo sendo de trabalhadores, de gente humilde, entendia perfeitamente que os livros eram meu mundo à parte, talvez um mundo que tivesse inventando ou reinventando. Eles não liam, eram pessoas que não tinham tempo para ler, tamanha era a intensidade do trabalho. Mas eu lia e foram deixando eu colocar os livros no espaço.  Por isso que eu sempre digo que onde há livros há possibilidade de surgirem leitores. Agora, você tem que ter o livro lá, mesmo que aparentemente. Tem que colocar livro em todo lugar: igreja, hospital, presídio, associação de moradores, sala de espera de médico, sala de espera de dentista, sala de espera de fisioterapeuta, clube, todo lugar porque o livro atrai, como me atraiu em vários momentos.

Já na infância, os meus vizinhos eram atraídos pelos livros que eu lia. Isso foi me acompanhando a vida inteira e me deu forças, inclusive, na adolescência, momento difícil da minha vida porque eu não era um garoto tradicional, não ficava paquerando as meninas, pois tinha uma orientação sexual que descobri ser diferenciada. E uma das fontes onde encontrei força e energia para enfrentar a sociedade conservadora dos anos 70 foi exatamente na literatura e na poesia. Como eu não era o garoto do futebol, da corrida, do patinete, eu era o garoto da leitura, que sobressaía na escola pela minha performance intelectual. Então, fui ganhando respeito por um outro viés e enfrentando o preconceito racial, o preconceito contra a orientação sexual, sem me dar conta de que estes dois preconceitos, sérios no Brasil, eu enfrentei com a literatura, com a poesia, encontrando forças nesse mundo das palavras. Mundo esse que me deu conteúdo para que eu me entendesse negro, afro-brasileiro, de orientação sexual diferente porque é plural. Na poesia e na literatura sempre foi assim. Os poetas, os escritores já eram parecidos comigo e eu não sabia. Fui descobrindo, tendo referências. Na televisão, por exemplo, não tinha negros nem gays. Então, qual era meu espelhamento? Era na literatura. Quando li, por exemplo, O Ateneu, vi que tinha um homoerotismo, vi que tinha uma personagem meio parecida comigo. E fui me tornando um ser absolutamente literário e apaixonado pela literatura. Mesmo quando eu vivi o meu drama de saúde, já na idade adulta, quando tive um problema grave de abdômen, fruto do consumo de álcool, e não sabia que era dependente químico, foi um período que eu lia muito pouco, pois ia muito a bares para conversar – era uma moda dos anos oitenta – era o tempo que gastava com a leitura. Só que nos anos noventa eu levei aquele baque e, quando estava no período de recuperação, dava 6, 7 horas da tarde e, em vez de ir para o bar, resgatei os livros novamente. Daí já se vai mais de uma década que não ponho álcool na boca e hoje passo a noite viajando, tendo ondas literárias, ondas poéticas, ondas que as palavras me propiciam.

As palavras que aquele menino começou a ler na infância foram as que me permitiram tornar-me um ativista contra o racismo, contra a homofobia, e um ativista da minha própria superação no momento em que me descobri dependente químico do álcool.


DA - E o interessante em tudo o que você contou é perceber na literatura um poder de redenção, não apenas no plano da fantasia, mas o poder da libertação pela palavra, não é?

JLS – Sim, claro que a palavra liberta. A palavra efetivamente funda algo. Por exemplo, quando eu nasci, alguém perguntou: qual vai ser o nome dele? E alguém disse: João Luiz de Sousa. E, a partir daí, eu me faço João Luiz. A palavra não só liberta como ela cria você, inaugura você no mundo. Você ama alguém, mas precisa dizer eu te amo. Esse outro precisa ouvir. E você, depois, precisa ouvir de volta eu te amo para que se estabeleça a relação amorosa. Então, a palavra é transformadora. Eu creio que a leitura pode não ser uma ferramenta para a transformação de todos os problemas do mundo, evidentemente, mas ela é uma alternativa muito viável na sensibilização e abertura dos canais de percepção de cada ser humano. Esses seres humanos somados podem modificar algumas realidades. Não tenho a visão missionária de que a literatura vai salvar o mundo. Não é isso. Muitos outros ramos, como a ciência, a química, astronomia, todos podem estar colaborando para melhorar este mundo. Os fármacos também, na medida em que curam nossas mazelas físicas. Mas acho que a literatura e a poesia podem contribuir para que um ser humano, tendo acesso a elas, possa ter um relâmpago de sensibilização e compreender a sua condição absolutamente humana e a sua possibilidade de ser mais inventivo, mais solidário, mais sensível, mais compromissado com a vida e com o próximo. Isso eu creio, como creio em outras alternativas que se colocam ao lado da literatura para fazer um mundo melhor, estabelecer a paz. Até mesmo o cientista que, neste momento, está pesquisando a cura do câncer e da AIDS pode ler um poema e esse poema inspirá-lo ainda mais na busca dessa cura.


DA - Quando você falava das coisas que viveu na infância e toda a dificuldade ali contida, talvez não imaginasse que poderia chegar onde chegou. Isso tudo remonta à ideia de que há um desinteresse pela leitura por parte de muita gente. Nesse sentido, acredita que as pessoas são subestimadas?

JLS – Subestimamos pessoas, sim. No mundo literário, subestimamos pessoas por outras razões. E não me excluo das pessoas que excluem outras por diferentes razões. Tenho, por exemplo, muita dificuldade em lidar com pessoas que não amam livros. Mas estou aprendendo a exercitar generosidade e paciência. Paciência e serenidade. Acreditar que aquela outra pessoa pode transformar-se, e entender o que é o livro e a leitura na medida em que ela observa a minha vida e ouve meu testemunho. É por isso que dou essa entrevista. Como diz Antonio Cícero, é por isso que a gente fala, publica, não guarda em cofre. É por isso que a gente prefere o pássaro voando ao pássaro na gaiola. Não fico preocupado mais com esse tipo de coisa. Quem é dos livros, e faz parte desse mundo de escrever, ler, de recolhimento, sabe que tem um preço a pagar e precisa dessa vida diferenciada, e tem que continuar seu caminho. As outras pessoas estão observando. Podem um dia valorizar. Somos seres mutantes. Não existe nenhum caso perdido. Então, não vejo nisso uma preocupação, e sim um desafio: fazer com que as pessoas que não leem possam descobrir que a leitura é um prazer, pode trazer alegria, contentamento, gerar uma angústia reflexiva. Não vejo nisso um problema, e sim mais uma razão para que a gente possa enfrentar esse cotidiano diferenciado.

Eu não trabalho o tempo todo com poesia e literatura. Faço trabalhos burocráticos. Sou assessor de cultura da Universidade Salgado de Oliveira, instituição que está em seis estados do Brasil. Daí, é necessário produzir documentos, relatórios e pesquisas. Isso que a UNIVERSO me pede é trabalho e paga o meu salário no final do mês. Não impede que eu continue um leitor porque, como já disse, o meu principal ofício na vida é ser um leitor. Meu tempo livre dedico, em sua maioria, aos livros e à leitura. E, no meu trabalho, o que pude fazer para incluir a literatura e a poesia eu fiz, tanto que o Corujão da Poesia e da Música Universo da Leitura é um projeto de extensão da Universidade Salgado de Oliveira e foi fruto exatamente dessa necessidade premente de inclusão da leitura, da literatura e da poesia no meu trabalho. Fico feliz porque a instituição aceitou e me permitiu fazer o que faço com esse nome há quase seis anos, pois antes era Dizer Poesia Universo da Leitura. Só na UNIVERSO, onde estou, há onze anos faço saraus. Fruto da minha necessidade individual, apresentei à universidade um projeto, com metas, objetivos, o qual foi submetido à reitora. Isso tudo é que, às vezes, algumas pessoas do mundo literário não têm paciência para fazer. Eu adquiri essa paciência. Quando sentei com a reitora e defendi o projeto, fui com paixão e ela aprovou. Acho que temos que ter a ousadia. Quem trabalha com livro, literatura, de repente, numa fábrica, no escritório de advocacia, no serviço público, tem que propor às chefias algumas alternativas, como, por exemplo, a de criar uma biblioteca, fazer saraus, grupos de leitura. Temos que ter essa ousadia. O chefe irá ouvir e poderá aceitar a ideia.  Então, a gente vai colocar mais prazer e alegria em nosso trabalho e vai provocar um pouco mais de valorização à atividade de quem escreve e lê. É preciso ousadia, paciência, serenidade, e compreender que ninguém vira de uma hora para outra um apaixonado pela leitura. Isso requer um trabalho nosso. Como dizia Moacyr Scliar, o escritor e o leitor têm de sair vacinando as pessoas contra o não desejo de ler.




Foto: Vitor Vogel



DA - Essa verdadeira militância promovida pelo Corujão da Poesia já é capaz de posicionar o projeto como algo muito especial do ponto de vista da abertura de fronteiras para a formação de leitores. Neste sentido, quais têm sido os maiores desafios dessa complexa missão?

JLS – Os desafios foram muitos, no início, e continuam porque temos de fazer os eventos toda semana. O Corujão da Poesia Universo da Leitura não tem roteiro prévio. Não sei quem vai nunca, a não ser quando alguém me avisa: eu estou indo para o Rio de Janeiro, vou lançar um livro, um cd, quero ir lá passar um curta-metragem. Aí acontece. Os eventos do Corujão da Poesia ocorrem em Niterói, na Barra da Tijuca ou em Ipanema, onde estamos agora no Conversa Fiada. Ficamos durante cinco anos no Leblon e, depois, a livraria que abrigava o projeto lamentavelmente fechou. O Conversa Fiada entrará em reforma e tenho que encontrar outro lugar, o que já é um desafio. Terei de escolher o mais adequado. Olha só como o imprevisto é desafiador! Enquanto não encontramos lugar, fizemos a céu aberto no Mirante do Leblon, foi um sucesso absoluto. Esse sucesso não foi previsível, foi um sucesso do inusitado, da necessidade, pois não tínhamos mesmo onde fazer.

É uma tarefa e tanto arrecadar livros e selecioná-los a fim de enviar para os lugares. É desafiador trabalhar com esse conceito de libertação dos livros porque antes a gente selecionava e os entregava. Hoje, nós estamos sugerindo que cada pessoa escolha seus livros e os liberte. Hoje, o Corujão já não trabalha mais com esse substantivo doação, e sim com o conceito de libertação de livros, que, aliás, é uma expressão que não é minha, mas do Pedro Markun, de São Paulo. Ele me iluminou quando falou isso. Quando disse essa expressão, eu pensei: Meu Deus, chegou a hora de eu comprometer ainda mais as pessoas com a questão da formação de leitores. Você passa a ser um libertador de livros, e sai com sua bolsa com dois ou três deles, pega o transporte público, e dá um à pessoa que se senta ao seu lado, ao seu colega de trabalho, ao segurança ou ao policial. Hoje o desafio é fazer com que as pessoas que amam os livros e a leitura possam libertar seus livros diretamente. É fazer com que você, que está me entrevistando, saia amanhã com dois, três livros em sua bolsa e os liberte. O desafio é que a pessoa que vá ler essa entrevista liberte livros. E a gente vai gerar aí uma rede nacional de libertação de livros.


DA - Sem dúvida alguma, um dos pontos marcantes do Corujão é o fomento à criação das Bibliotecas Solidárias. De que forma você avalia o impacto dessas ações nas comunidades contempladas?

JLS – Agora você me fez uma pergunta difícil porque muitos livros são pedidos. Algumas bibliotecas são mais problemáticas. Descobri que existem pessoas que gostam de tomar conta das coisas, trancar portas, burocratizar a relação de empréstimos de livros. Por outro lado, outras são maravilhosas, saem com carrinhos cheios de livros e percorrem a comunidade, oferecendo. Há coisas lindas. Hoje, não chamo mais de Bibliotecas Solidárias, e sim Pontos de Libertação de Livros. Enviamos muitos livros de acordo com o lugar e a demanda. E a ideia é que a pessoa, de forma desburocratizada, possa pegar o livro e, se gostar dele, ficar ou devolver. O conceito de solidariedade permanece. É um ponto de libertação de livro solidário. Só deixei de usar a palavra biblioteca porque tem um peso muito grande ainda em nossa sociedade. Falou biblioteca, as pessoas começam a burocratizar lamentavelmente. Vamos ter que fazer um movimento para ressignificar o conceito de biblioteca como um lugar vivo, dinâmico, alegre, aonde as pessoas vão, pegam livros, devolvem ou não.

Hoje, prefiro dizer que nós temos 162 Pontos de Libertação de Livros oficiais e uma rede de pessoas muito compromissadas com essa ideia de saírem de suas casas sempre com um livro na bolsa para ser libertado. Sei que isso vem provocando a adesão de muita gente. Recebo e-mails, mensagens. Essas outras pessoas que libertam livros também recebem retornos fantásticos. Acho que se eu tivesse que fazer uma avaliação para a Diversos Afins, diria que esta é extremamente positiva. Nós começamos algo que não sabíamos exatamente o que era, continuamos a fazer algo que não sabemos exatamente o que é, mas sabemos que este algo vem provocando na alma e no pensamento das pessoas uma mudança de percepção de mundo.


DA - Uma das missões da literatura seria a busca pela compreensão do outro através da renovação do olhar?

JLS – É isso. Criar essa possibilidade de engajamento das pessoas porque nós somos coletivos. Isso nos exige muita solidariedade, ter menos ego, sermos mais cooperativos. Acho que estamos todos juntos, na mesma canoa. Os rios podem ser diferentes, mas as canoas são as mesmas, que são as palavras. Livro é livro. Não importa se digital ou papel. Interessa que o texto alcance alguém. Se este vai alcançar pelas vias da internet, pelo telefone, por uma carta enviada pelo correio ou através da libertação de um livro por alguém. É sempre assim. Esse mistério que é um ser humano lendo um texto, seja qual for a mídia, é insondável, o qual você só vai perceber depois na atitude pós leitura. Tem muita gente com dificuldade de entender isso. A coisa da leitura como algo a ser vivenciado para ter um tempo de maturação e gerar resultados. Aí, sim, acho que as pessoas são muito apressadas, querem logo que a biblioteca do presídio dê resultado, que os presos virem logo pessoas educadíssimas. Tudo é um processo, como foi na minha vida. Só fui perceber que era um ser combativo contra o racismo em função de tudo o que li, quando me vi diante de uma situação de racismo. Daí, tudo o que li me deu sustentação interior para enfrentar a questão. Eu não sabia, até então, que os livros lidos contribuiriam para que eu fosse lutar contra o problema. Então, isso é insondável, mas é mensurável. Chegará o dia em que você poderá dizer: isso é fruto do que eu li.

Quando alguém tem um domínio de cinco ou dez mil palavras na língua portuguesa, em nosso país, está preparado para conquistar espaços de trabalho, de poder. Por trás dessa questão do acesso ao significado das palavras, entra, inclusive, a questão política, que muita gente, no meio literário, não gosta de falar. Se você é um alguém que leu bastante, tem um domínio sobre um universo vocabular de dez mil palavras, e se vê diante de uma prova de concurso, você já entra ali passeando e sabe o que os enunciados estão dizendo ao te perguntar algo. Se alguém é um bom leitor, na hora de ser vendedor ele sabe falar do produto. Se você for uma manicure, mas uma manicure leitora, enquanto está fazendo as unhas dos clientes, pode estar conversando coisas fantásticas e interessantes. Daí, você se torna a manicure mais desejada do salão porque tem o que dizer. Neste momento, a literatura é palpável. O mundo das palavras se faz, se concretiza, reifica, pois o outro fica atento a você. Todos nós somos pessoas, ainda hoje, seduzidas pela palavra.  O que as palavras podem fazer pelas pessoas ainda não sabemos, mas vamos descobrir. Pacientemente, nós vamos saber onde estamos indo.


DA - A ideia do microfone aberto nos eventos do Corujão passa uma noção de como a obra de cada autor atravessa os instantes, ganha um status de dinamismo e pode ser, digamos assim, manipulada no íntimo de quem escuta. Qual o maior sentido que você vê nessa forma de manifestação?

JLS – Não sei responder. O microfone é livre. Eu não problematizo. Não tenho esse sentimento que você citou. É um microfone livre. Nasci no governo João Goulart. A minha geração, que hoje tem 50 anos, tem muito amor e paixão pela palavra livre, pelo microfone aberto, pelo palco aberto porque nós fomos censurados durante muito tempo. O que está ali é isso. Um pouco do reflexo da negação da ditadura. Só. É política. Não é literatura aquilo ali. Aquele microfone aberto é político. É a ágora, a democracia, a praça, o comício. Quem vai lá pode até não dizer poesia, mas falar algo que está incomodando a alma. Então, o microfone aberto quer dizer democracia.


DA - Além de poetas consagrados, o projeto também abre espaço para os novos. Para você, que está em contato com tais manifestações, é possível atestar que a poesia contemporânea reflete uma significativa qualidade?

JLS - 80% de quem vai falar poesia são pessoas novas, não digo em idade apenas, mas sim pessoas não consagradas. Isso até em função do horário. Nossos poetas consagrados, em sua maioria absoluta, têm uma idade já avançada. Eu diria que no Corujão não exercito, embora minha formação seja Português/Literatura, nenhum juízo de valor. Como havia dito, ele é um palco democrático. E estamos falando sobre o Corujão da Poesia.

O projeto tem Jorge Benjor como curador e padrinho. Ele quem me diz uma série de coisas. Quando homenageamos alguém, ele que escolhe. Benjor é a autoridade máxima no que diz respeito a muitos assuntos do Corujão. Ele foi convidado por nós e vestiu a camisa. Por onde ele passa, no Brasil e no mundo, fala do Corujão. Então, ele é esse espírito democrático, representado na letra e música que faz, e que o Corujão tem. Agora, eu, particularmente, com relação à poesia contemporânea no Brasil, tenho uma posição muito angustiada. Tenho muita vontade de ler o que escrevem fora do eixo Rio - São Paulo. É isso o que quero ler. Quando recebo os poemas de poetas do Sul, Nordeste e Centro-Oeste, vejo um certo frescor de produção poética, de tensão criativa. Mas no Rio e em São Paulo, excetuando-se alguns poetas, acho tudo muito parecido. Isso me angustia. Ao mesmo tempo, sou um ser poético, leitor, absolutamente entusiasmado com o que hoje vem sendo produzido naquilo que se chama periferia das grandes cidades. As vozes poéticas dessas periferias são hoje grandes expressões, que precisam ser lidas e ouvidas. Prova disso foi um livro que li recentemente do Marcos Faustini, chamado Guia Afetivo da Periferia do Rio de Janeiro, e que compro dezenas de vezes e dou às pessoas, pois acho que todo mundo tem que ler. É mais ou menos nisto que estou percebendo que existe uma força emergindo e provocando uma fricção entre as palavras. É algo que a gente ainda não sabe dizer o que é.  Estamos vivendo esse tempo. Tem o fenômeno do rap, o funk. Existe o funk poético, que as pessoas negam, mas existe. Há a literatura produzida e que não chega às editoras, e que a gente precisa ler. Estou torcendo para as pessoas começarem a colocar essas histórias todas na internet.

Existe um quadro de pasmaceira e um quadro vigoroso tentando emergir, colocar-se na parede, na tela de um monitor, nas páginas de um livro, mas as dificuldades são muito grandes. Eu prefiro crer nessas pessoas a crer nas pessoas da moda. As pessoas da moda são as pessoas da moda. Tem sempre uns eleitos pelos críticos e cadernos de literatura. Fico curioso por aqueles que não estão eleitos. Fico curioso por aqueles que chegam às vezes lá naquele palco e, inesperadamente, me congelam, como ocorre no Corujão da Poesia e outros lugares aonde vou. Prefiro isso. É como diz Arnaldo Antunes, nós somos inclassificáveis, e o que escrevemos também é inclassificável. Então, quero ler aquilo que os inclassificáveis escrevem. Com relação aos consagrados, tenho meu panteão: Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Solano Trindade, Pablo Neruda. Destes, eu não canso.

Hoje, se eu tiver que entrar e escolher algo para ler, escolherei as vozes silenciadas, que ainda não estão no vaivém da moda, nos holofotes dos aplausos momentâneos. Quero muito saber da poesia que se faz em Ilhéus, Rio Grande, no Recôncavo Baiano, que é maravilhoso, o Sertão Mineiro, a poesia que é feita na Zona da Mata Pernambucana, no Amazonas. Onde estão as vozes do Amazonas? Todo mundo se sente no direito de falar sobre o Amazonas, mas ninguém lê autores amazonenses. Cadê? Temos nossa preocupação com a floresta, mas ouvirmos, lermos quem está lá, ninguém lê. Só falamos de Miltom Hatoum, que é maravilhoso, mas devem existir muitos e muitos outros. A curiosidade maior, o anseio de minha alma neste momento é ouvir essas vozes desse Brasil fantástico, que está sendo reinventado por uma moeda valorizada, e onde precisamos também valorizar a cultura, a leitura e a literatura.





João e Jorge Benjor entre participantes do Corujão da Poesia
Foto: Vitor Vogel




DA - Como tem sido a repercussão do projeto no nível nacional? Há um diálogo efetivo com outros estados no sentido de expandir as ações pelo país afora?

JLS – A repercussão tem sido ótima. Já estamos com núcleo em São Paulo, outro começando em Goiânia, e negociando um em Porto Alegre. Estamos por aí, na luta. A repercussão é muito grande, superou todas as nossas expectativas. São muitas matérias em televisão, jornal. Isso, inegavelmente, gera um retorno muito grande. No entanto, prefiro ter calma, paciência e ver no que vai dar porque, como já disse, o Corujão é um projeto de extensão da UNIVERSO. Então, precisamos ser muito zelosos e criteriosos para que ele não perca a dimensão da formação de leitores e de libertação de livros. 


DA - Há alguma ideia de organizar uma coletânea em livro com os autores envolvidos?

JLS - Sim. O Antonio Campos, curador da Fliporto, está patrocinando a publicação de um livro comemorativo dos 6 anos do Corujão, com a participação de 40 poetas que se destacaram durante esse tempo. Também não estou apressado. Tudo será feito com calma, no tempo da poesia, da delicadeza.


DA - Hoje você se confessa muito mais um leitor do que um escritor.

JLS – Sou leitor, não sou um escritor. Posso escrever, escrevo, não vou mentir, mas não sou escritor. Sou leitor. E conclamo o Brasil para que seja um país de leitores. Essa mania de todo mundo querer ser escritor, e, no quinto livro que lê, já querer escrever, é uma loucura. Escrever não é uma tarefa qualquer. Ninguém opera uma pessoa se não for um médico especialista no assunto. Então, hoje, tenho dito isso, parar com a loucura porque escrever não é assim. Para ser escritor tem que ter um domínio de repertório. Vejo pessoas que se dizem escritoras e que não sabem sequer o significado de palavras básicas da língua portuguesa. Pelo amor de Deus! O Brasil tem escritores maravilhosos e não precisa de um escritor chamado João Luiz de Sousa. Precisa de um leitor chamado João Luiz de Sousa, que saia por aí fazendo o movimento pró-leitura no país, e alertando as pessoas: parem com a viagem de querer ser escritores e poetas porque não seremos um país de poetas e escritores, pois somos um país que precisa ser de leitores. Podemos cometer uns poemas, mas o fato de cometer uns poemas não significa que sejamos poetas.



Contatos com João Luiz de Sousa: poesiaeleitura@gmail.com



Saiba mais sobre o Corujão da Poesia clicando aqui







Pintura: Staëll Di Lukka







JANELA POÉTICA (V)


VALQUÍRIA

Iracema Macedo


Tua alegria está rondando meus mistérios
Na penumbra em que estamos
Escuto teus passos docemente

Pisas sonhos escuros
Vences os fogos noturnos
E um pai te desafia com uma lança

Finjo que estou ferida, adormecida
Aguardo que ouses tocar-me e que me acordes

Para que eu possa cavalgar
Dentro da tua vida



(A poeta potiguar Iracema Macedo é professora de Filosofia do Instituto Federal Fluminense (IFF), Cabo Frio/RJ. Em 2006, lançou sua tese de doutorado em Filosofia “Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos” (Annablume, São Paulo). Publicou dois livros de poemas: Lance de dardos, Edições Estúdio 53, Rio de Janeiro (2000) e Invenção de Eurídice, Editora da palavra, Rio de Janeiro (2004))







Pintura: Staëll Di Lukka







CABEÇA DE FÓSFORO

Regina M. A. Machado


E encostavam à terra a boca e a barriga, pedindo para os corpos prazer e harmonia e para o sangue filhos sãos e machos. Cerimonial um tanto enevoado na memória da vila, por demais carregada de naufrágios, emigrações e loucos sem abrigo.
Hélia Correia, Montedemo.

Para minhas amigas gêmeas.


Fui comentar com a Laurinha que o melhor, quando a gente faz um pum, é acender um fósforo, e ela ficou toda animada. Agora estou preocupada; se ela acende um fósforo, é capaz de pôr fogo na casa. Ainda bem que do jeito que ela é cabeça tonta, daqui a cinco minutos, já esqueceu. Espero. Isso me lembrou quando eu trabalhava numa construtora e fazia traduções, um dia entraram na minha sala duas colegas, e uma delas, a portuguesinha, notou na hora:

- Hum, cheira bem, parece fogo de agulhas de pinho.

Achei tão engraçado que contei a história do fósforo e elas não quiseram acreditar. Essa portuguesa morava num daqueles três ou quatro prédios de Botafogo, muito altos e iguais, quase encostados no morro, e ela disse que às vezes ficava tão deprimida com o vento que soprava lá em cima, que se deitava no chão enrolada num cobertor, esperando passar a tristeza. Isso em pleno verão, mas parece que as janelas do prédio não abriam nunca e o ar condicionado ficava ligado e gelado o tempo todo. Com certeza para evitar suicídios.

Uma vez ela contou que, durante a revolução dos cravos, a família dela, conservadora e medrosa, mudou-se de um velho bairro de Lisboa para uma aldeia e lá ficaram por algum tempo, depois ela se casou e veio com o marido para o Brasil. Da vida dela só fiquei sabendo desse verão na aldeia, que parecia ser a lembrança mais alegre que ela tinha trazido. Contou da matança dos porcos, da partilha entre os vizinhos, das casinhas, do sol na palha dourada e nas montanhas azuis. Minha lembrança dessas histórias que ela contava ficou entre o Sítio do Pica-pau amarelo e A cidade e as serras, mas ainda hoje é uma coisa luminosa e simples, cheia de saudade, como deve ser uma história portuguesa.

Mas junto com essas, vieram outras lembranças. Essa construtora onde a gente trabalhava fez um projeto para um outro país “do terceiro mundo”, como se dizia, então, e acho que não se diz mais;  eu fui para lá durante seis meses, atraída por um bom contrato e para curar uma dor de cotovelo aguda. Uma maluquice total esse projeto de estrada de ferro, calcado num outro feito para a Serra do Mar, cheio de túneis, que os engenheiros locais nunca entenderam para que iam servir em pleno deserto. Também não sei se pagaram o projeto. Eu sei que conheci o deserto e dele me ficou uma lembrança enorme, de silêncio, de noites faiscantes como no tempo em que os homens inventaram constelações olhando os desenhos que as estrelas faziam no céu. De dia fazia calor, mas à noite caía um frio de cristal, seco, luminoso, quase sonoro.

Talvez por isso tenha ficado tão impressionada com um programa de tv em que o Nicolas Hulot encontra uma tribo nômade e o chefe da tribo explica que nunca poderia morar numa construção dura e fixa, pois, dizia ele, “casa é túmulo para os vivos”. Isso faz anos e eu ainda guardo o impacto dessa frase dita por aquele homem que todas as manhãs punha nas costas dos camelos uma casa leve, feita de bons tecidos de lã que ele montava e desmontava para seguir o rebanho de um oásis para outro, deixando poucas marcas de sua passagem, restos de fogueira, cinzas que o vento leva, pedras que a areia cobre. Meus antepassados nômades acordaram assanhados, me aspirando da minha casa de cimento, apartamento debaixo de apartamento debaixo de apartamento... só de pensar me dá falta de ar.

Meu deserto aventuroso é um pouco como a aldeia da tradutora portuguesa, um traço luminoso que só ficou como lembrança, rastro de cometa, noite empalidecendo.

Na estante, minha garrafinha de areia, comprada numa praia da Bahia, com as figuras formadas por areias de cores diferentes, não devia ter sido bem fechada e a areia se mexeu lá dentro, baralhou as figuras, que ficaram difusas e vagas. A paisagem baiana virou uma fluida aquarela de Turner, coqueiros e jegues perderam-se nas brumas geladas da Bretanha, a grande.

A chama do fósforo tenta lembrar a fogueira na noite gelada, mas só faz bruxulear, desencadeando uma longa caravana – de que? - de lembranças que não chegam a tomar corpo, nem cheiro nem arrepios na pele? Ou de viagens imaginárias, de saudade do que nunca chegou a ser? O cheiro de pinho não basta para reerguer a floresta nem o fósforo alumiar a noite no deserto.



(Regina M. A. Machado vive fora do Brasil há anos, e como todo estrangeiro sabe, a solidão é boa companhia e faz aumentar a curiosidade e revirar a lua para descobrir-lhe o lado escuro. Um dia voltou à literatura brasileira como numa foto de satélite, mergulhou no foco e, ao se descobrir parte da paisagem revista, começou a escrever como quem segue a pista de uma criminosa)








Pintura: Staëll Di Lukka








JANELA POÉTICA (VI)


UM SOPRO, UM BEIJO NO BARRO

Fabrício Clemente


A tarde
com a pele próspera de cortes,
migra
pelas minhas pupilas.

Trama
entre as torres do tato

recapitula o castelo
cravado com cuidado
no crânio do jardim.



(Fabrício Clemente nasceu em 1980 no estado de Goiás. Atualmente vive na Bahia. É apaixonado por rock, especialmente Dylan, Doors e Beatles. Adora jazz. Participa do blog Vida Miúda)






DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Larissa Mendes


O Homem ao Lado (El Hombre de al Lado). Argentina. 2009.





“Nós fazemos os nossos amigos, fazemos os nossos inimigos, mas Deus faz o nosso vizinho”.
 Guilbert Chesterton


Que empreste a primeira xícara de açúcar quem nunca teve problemas além-muro ou pavimento. Esqueça a grama mais verde, folhas secas invadindo seu quintal, música alta ou sapatos de salto às 6 da manhã. Conviver civilizadamente em um espaço limítrofe – mesmo durante um mecânico cumprimento no elevador ou na calçada – é primordial para a literal política de boa vizinhança, ainda mais quando tudo o que o vizinho em questão, ou seja, O Homem ao Lado quer, é capturar “un poquito del sol”.

Leonardo Kachanovsky (Rafael Spregelburd) é professor universitário e designer famoso internacionalmente pela concepção de uma premiada cadeira que leva seu sobrenome. Ele mora com a esposa Ana, a filha Lola e a empregada Elba na única construção na América Latina assinada pelo modernista francês Le Corbusier, em La Plata, capital da província de Buenos Aires. A famosa residência idealizada em 1948ponto turístico para estudantes e demais amantes de arquitetura representa todo um ideal de habitação funcional e esteticamente clean: grandes blocos assentados em pilotis (não à toa, o urbanista afirmava que “por lei, todos os edifícios deviam ser brancos”). Estes olhares curiosos parecem não incomodar Leonardo, contanto que admirem sua morada do outro lado da rua.

O mote da trama tem início quando o vizinho de Leo, o valentão pitoresco Victor Chubello (Daniel Aráoz, em brilhante atuação), começa a abrir um buraco em sua parede com vista frontal para a sala da mansão (visão esta que a câmera nunca registra; sempre temos a ótica de Leonardo). Enquanto o designer, inflamado pela inflexibilidade da esposa, sente-se terrivelmente invadido pelo provável voyeur, Victor usa de sua insistente simpatia para conquistar a amizade dos vizinhos, seja presenteando-os com flores, com um porco do mato marinado ou com uma escultura de rifles e arame farpado.

Talvez o distanciamento entre os vizinhos, enquanto discutem do parapeito de suas respectivas janelas, seja o mesmo que Leo tem com sua própria família. Uma relação tão suspensa quanto a porta da entrada principal da residência, que dá para o vazio e denota aqui todo o revés do personagem: sua prepotência artística, o assédio às suas alunas, a submissão velada à mulher, a indiferença da filha adolescente, e, por que não, sua insegurança e covardia perante a situação.

Se por um ângulo O Homem ao Lado tece uma crítica à burguesia emergente e à desconstrução da classe intelectual – que atinge seu clímax quando Leonardo e um amigo ouvem música clássica e exaltam as marteladas vindas do vizinho pensando ser uma ousada percussão –, por outro, presta uma homenagem à arquitetura e design moderno, visto que a história da casa projetada por Le Corbusier é verídica e personagem vital do filme, valorizada por uma meticulosa decoração e fotografia. O contraste cult x brega proposto pelo roteiro de Andrés Duprat (e dirigido com precisão por Mariano Cohn e Gastón Duprat) funciona como pano de fundo para uma divertida comédia cotidiana, repleta de diálogos sagazes e humor negro (ou seria hermano humor?), com um final no melhor estilo de um clássico Brasil x Argentina: imprevisível. Neste caso, ponto para nossos vizinhos.










(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)









Pintura: Staëll Di Lukka








JANELA POÉTICA (VII)

Romério Rômulo


os poetas catam vidros,
jogam pedras, riscam chão.
os poetas infestados
de provocação.

os poetas rasgam olhos,
limpam línguas, cospem putidão.
os poetas sinistrados
de paixão.

os poetas fuzilam pétalas,
metem balas, riscam solidão.
os poetas atacados
de revolução.

os poetas forjam amarguras,
relatam nuvens, sofrem inanição.
os poetas revelados
de podridão.



(Romério Rômulo: um poeta que, para ordenar o pensamento, tem sempre à mão os sonetos do Camões, o Augusto dos Anjos e o João Cabral. Seu mais novo lançamento é intitulado Per Augusto & Machina)









Pintura: Staëll Di Lukka








METÁFORA ÚNICA

Alice Fergo



Desdobro planos. Volto às fundações. Encontro a candura floral da polpa e, com dedos de leite, esfrego-a no corpo. Quase me supero na sofreguidão dos aromas. Quase absorvo o fluido da metáfora única, de repente mais fértil. Viagem pelos frutos dentro, aqui me tens! Aqui me entrego à substância quase divina dos dias e sou até quando.



(A  poeta portuguesa Alice Fergo é formada em História pela Universidade Clássica de Lisboa. Lançou, recentemente, “Quando junto às horas se ilumina um rio” (Labirinto, Fafe, 2009), o seu terceiro livro)










Pintura: Staëll Di Lukka






* A arte de Staëll Di Lukka revela-nos um olhar delicado e sensível ao percorrer estações, culturas e espaços imaginários de um mundo essencialmente onírico. Um complexo de cores parece nos conduzir à suavidade do espírito das coisas,  da alma feminina. Povoam suas telas povos indígenas e personagens míticos com contornos e exuberância de uma vida própria.

Natural de Jardim, Mato Grosso do Sul, a artista agrega em seu currículo participações em várias exposições coletivas e individuais dentro e fora do país. No momento, Staël dedica-se a diversos projetos, incluindo a escrita de alguns livros (romances) e a preparação de novos quadros para exposições de arte nacionais e internacionais.




 
publicado por Fabrício Brandão
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