( O programa Empoeirado, de Ed Motta, está disponível através do site do cantor, que é: www.edmotta.com . É uma boa dica para quem gosta de percorrer os caminhos vastos do universo musical)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
por Fabrício Brandão
Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi) Itália. 1976.
O diretor Ettore Scola nos lança rumo aos impulsos naturalistas que atravessam esta magnífica obra. Fazendo uso destes recursos, o filme traz à tona uma das formas de manifestação da miséria humana, apoiada nos apelos daquilo que pode ser qualificado como uma guerra de instintos travada pelos personagens em foco. Giacinto, personagem interpretado por Nino Manfredi, vive com a esposa, seus dez filhos e vários agregados numa favela dos arredores de Roma. Durante a trama, os moradores, que se aglomeram num minúsculo barraco, vivem às voltas com as tentativas de roubar o dinheiro do seguro que o patriarca(Giacinto) recebeu quando ficou cego de um olho. Como se não bastasse, o chefe dessa prole ainda resolve levar outra mulher para dentro de casa. A partir daí, vamos observando os meandros que acentuam a crítica social contida nesta ácida comédia. Scola exalta a condição humana num caldeirão que mistura sentimentos familiares distorcidos, decadência de valores morais, sexo, infidelidade, mesquinharias e uma profunda miséria social. Curioso é notar que, mesmo com toda a repulsa presente na convivência desta numerosa prole, ainda sim, parece haver o algo que os mantêm juntos: a provável loucura peculiar do ser humano.
Santo Forte. Brasil. 1999.
Considero Eduardo Coutinho o maior documentarista brasileiro da atualidade e o filme Santo Forte reforça bem esta qualificação. Aqui, não se trata apenas de um documentário sobre diferentes manifestações religiosas tendo como palco uma favela carioca, mas sim a delineação de novas perspectivas de representação daquilo que se pretende registrar. O forte de Coutinho reside na forma como privilegia os relatos de seus entrevistados num verdadeiro exercício de ouvir o que o outro tem a dizer, estabelecendo um pacto de aderir equilibradamente à causa alheia sem tecer julgamentos. Em Santo Forte, o diretor constrói o que considero um verdadeiro trunfo de representação do real: o reforço a certos depoimentos fidelizados através do recurso do vazio. Quando se trata de demonstrar, em imagens, aparições espirituais narradas por alguns de seus depoentes, Coutinho soluciona, o que para a linguagem documental tradicional poderia ser um grande dilema, através da filmagem dos ambientes vazios. Tais cenas, por si só, conseguem cobrir um lapso que, acredito, não pode ser composto pelo agora, pelo registro do instante imediato, justamente por conta do tempo decorrido nas ações contadas pelos personagens. Em lugar de ocupar os relatos com imagens reinventadas, o perceptivo diretor prefere dar vazão à retratação de uma lacuna que fala por si, ainda mais se tratando de um tema complexo como é o da espiritualidade. O espectador deste filme é bem servido e, por assim dizer, respeitado quando pode fazer uso dos recursos da sugestão e, desse modo, ser parte integrante das conversas. Em Eduardo Coutinho, vejo uma ruptura de paradigmas, uma nova perspectiva de discussão da velha e eterna questão do limiar da realidade no cinema documental. Para este grande realizador, o que existe, antes de tudo, é a palavra e é através dela que surge a vontade da imagem. Bravo!
BAÚ DA PALAVRA
TUDO GIRA E NÃO CABE EM SI
por Fabrício Brandão
Lá pelos idos do final dos anos oitenta, me vem a recordação de um tempo que parece ter ficado impresso em mim. Era a época de uma certa despreocupação provisória com grandes e, por assim dizer, complexas questões da vida. A corrente de amizades tinha se tornado algo estupendamente fascinante, sobretudo pelo viés da descoberta de um terreno novo e sempre muito atraente: a troca com outras pessoas. Eu e mais alguns poucos éramos uma espécie de confraria. Andávamos sempre em bando fazendo pinturas divertidas sobre o tudo que nos cercava. Todos viviam na casa de todos, jogávamos futebol religiosamente aos feriados e fins de semana, conversávamos até bem tarde da noite nas casas e portas dos nossos anfitriões ocasionais, fazíamos projeções para o futuro, assistíamos muitos filmes e ouvíamos bastante música. Quão intenso então fora viver daquela forma e, agora, posso imaginar alguns trechos, sejam eles objetos ou sensações, que vez por outra servem de estopim das lembranças fortes. Mas aonde quero chegar com toda a força desse saudosismo?
Não quero me reportar exatamente a um lugar, mas sim a um tempo. E isso foi possível quando pude assistir há alguns dias ao filme Cazuza, O Tempo Não Pára, dirigido por Sandra Werneck(Pequeno Dicionário Amoroso) e pelo talentoso Walter Carvalho(também diretor de fotografia de pérolas como o fantástico Janela da Alma e Abril Despedaçado, dentre vários outros). O filme me acendeu algumas reminiscências bacanas, sendo que a principal delas era a existência do LP que registrava o último show de Cazuza (também intitulado O Tempo Não Pára), o qual fazia parte do acervo de um dos amigos daquela minha antiga trupe. É, com certeza, um disco emocionante e marcou uma parte da minha caminhada pela vida. O mais curioso de tudo era o fato de o dono do disco ser bastante religioso, um protestante da Primeira Igreja Batista da minha cidade natal. No entanto, ao que pudesse parecer, aquele amigo poderia sofrer algum tipo de conflito, desses bem típicos aos religiosos mais ferrenhos, principalmente dos que se deixam respirar pelo equívoco da culpa. Mas não. Nada disso ocorreu e aquele apanhado de músicas veio como um presente para a nossa diversão juntamente com uma frase do tipo “Olha o que eu comprei!”. O envolvimento foi tão grande que tínhamos até gravado em vídeo o show do referido disco, então transmitido pela já extinta TV Manchete. A força das canções de Cazuza estava em voga naquela época. Tratava-se da fase terminal de sua fatal doença e, talvez por esse motivo, notávamos que havia uma outra atmosfera muito mais voltada para o sentido existencial das composições do que a qualquer espécie de ressentimento sobre a constatação do derradeiro iminente.
Sinceramente nunca percebi em Cazuza qualquer indício de que a música produzida nos períodos mais difíceis de sua carreira viesse a representar uma revolta injustificada perante o mundo. Havia sim uma crítica ácida às instituições formais, aos chamados caretas de plantão, tão preconizada em canções como Burguesia, Ideologia, Brasil e pela belíssima Blues da Piedade. Mesmo a contumaz Boas Novas, cuja atmosfera traduzia a percepção de um artista consciente do fim, não deixou de significar a inquietude projetada num porvir.
Cazuza, O Tempo Não Pára, consegue agradar sem forçar a barra, sem pieguices que possam exprimir qualquer ambiente gratuito de melodrama. Trata-se de um filme objetivo, bem conduzido, cujo roteiro é entrecortado por pontos fundamentais da trajetória do tão irreverente poeta do rock brasileiro. Agenor Miranda de Araújo Neto - esse era o verdadeiro nome de Cazuza – veio às telas através da atuação do jovem global Daniel de Oliveira que, conforme o produtor e também global Daniel Filho, entregou-se com muita disposição e alegria ao papel. Chega a ser impressionante os cuidados do filme com relação aos trejeitos pessoais de Cazuza, tais como a sua dicção, seus gestos e, para quem se lembra, a sua presença de palco. A direção de arte foi bastante feliz no que se refere à reprodução do cenário do Rio de Janeiro dos anos oitenta, incluindo o figurino e alguns outros detalhes importantes de cena. Vale a pena também ressaltar a presença do Circo Voador, um grande celeiro de formação dos artistas cariocas de época e onde Cazuza teria embalado as suas primeiras aparições em público.
Quem leu Só As Mães São Felizes, organizado pela escritora e jornalista Regina Echeverria e que é, na verdade, uma reunião de depoimentos da mãe de Cazuza, Lucinha Araújo, sobre a vida do filho, consegue situar-se melhor em meio ao contexto do filme. O livro traz minúcias da vida pessoal e da obra do compositor, antes desconhecidos do grande público. Existe na obra uma reflexão de Lucinha sobre o seu papel de mãe, suas virtudes e suas falhas, sobretudo em lidar com o gênio junkie, explosivo e inquieto do filho.
A atriz Marieta Severo, que protagonizou a mãe do cantor no filme, conta que o próprio Cazuza quando a encontrava, achava ambas muito parecidas. A própria Lucinha Araújo aparece integrando a platéia na cena do show do disco O Tempo Não Pára, onde flores brancas marcam a atmosfera do ambiente. Em outra passagem, o produtor, parceiro musical e grande amigo de Cazuza, Ezequiel Neves, também faz uma pontinha em meio ao público de uma das apresentações do Barão Vermelho.
O envolvimento de Cazuza com as drogas e a sua condição bissexual aparecem fortemente pontuados no filme. No cinema onde assisti à película, pude perceber a presença maciça de adolescentes que pareciam vibrar com aquelas cenas. No entanto, mesmo com a aparição freqüente das drogas, por exemplo, não vejo nesta produção a tentativa de velar uma apologia a tal comportamento. Seria por demais hipócrita repetir o vazio discurso de que mostrar o proibido acaba incitando uma suposta adesão. Nada disso vale como desculpa e, nestes tempos de desacordo, intolerância e excesso de informações, subestimar a inteligência das mentes jovens seria um grave equívoco. A principal mensagem da obra não está no furor atraente da personalidade de Cazuza, mas sim na demonstração de sua sensibilidade criativa.
O nosso poeta do rock, segundo nos conta Lucinha Araújo numa das passagens de Só as Mães São Felizes, era um alguém extremamente devotado ao cultivo das palavras, tanto que chegava simultaneamente a ler três ou mais livros. O filme ressalta essa veia literária do artista quando nos oferece cenas de um Cazuza a recitar poemas em meio a amantes e amigos. Mas, o que poderia destacar como sendo um momento acertado de Cazuza, O Tempo Não Pára é a cena na qual o ensaio do Barão é interrompido por uma espécie de falta de concentração da banda e, então, é aí que Cazuza começa a cantarolar a tão maravilhosa canção de Cartola, O Mundo é um moinho, na tentativa de fazer com que um repertório mais eclético fizesse parte do grupo. Para além de um simples capricho particular ao artista, aquela atitude significava a amplitude de sua percepção do universo musical, uma das razões que o levaria, mais tarde, a alçar vôos próprios.
É realmente curioso como as coisas se comportam. Muitos daqueles que estavam ali naquela mesma sala de projeção que eu, talvez não tivessem nem sequer nascido para testemunharem um pouco da trajetória de Cazuza. No entanto, após o término da sessão, todos se mantiveram simplesmente petrificados em função da avalanche de emoções que acabara de ser descarregada. Procurei, então, identificar naqueles rostos diversos o desenho mais aparente possível de suas impressões. Tudo parece que ficou misturado juntamente com a força das canções marcantes, do findar de um aparato cênico, da sucessão de imagens intimistas do poeta registradas em Super 8. A sala compartimentada de um cinema parece roubar-nos a noção exata da explosão de um mundo real. Enquanto ali estamos, pouco percebemos do que gira de verdade lá fora e a tela nos sugere interpretações e vivências paralelas. Mas, aos poucos, tudo são instantes que convergem e se distanciam, lembranças, coisas que, se não ficam, continuam sendo empurradas para frente.