CICERONEANDO
Não é possível crer na inexistência absoluta de novos e outros objetos de transformação de nossas vidas. Por isso mesmo, as ações culturais servem de exemplo para ampliar horizontes e repertórios de mundo. O desengavetar de palavras e expressões concorre para denotar algo que vai muito além de meras questões de indignação ou contemplação. Nas veias de nossa Décima Terceira Leva, escorre o sangue inconformado com zonas de conforto. Prova disso, está no percurso artístico de Nelson Magalhães Filho, cuja arte explicita certas imagens imperfeitas de nossos espelhos cotidianos. Os versos de gente como Romério Rômulo e Lita Passos marcam a intensidade da poesia que habita cantos da alma. E é justamente a poética, com seus desdobramentos e tendências atuais, que se coloca no centro de nossa conversa com a escritora Vera Americano. A prosa corre solta nas linhas de Sérgio Luyz Rocha, Petria Chaves, Affonso Romano de Sant’Anna e Tato Zonzini. Música, Cinema e Fotografia completam nosso cardápio de falas. Sejam bem-vindos a outras palavras!
*Comentários podem ser feitos através do link EXPRESSARAM AFINIDADES no final da Leva.
JANELA POÉTICA (I)
O QUE ESPERAM DO POETA?*
(para Laura Gomes)
Neuzamaria Kerner
A partir
deste momento
está determinado
o banimento
da palavra pecado.
Proscrita também
será a palavra
culpa
por ser ela causadora
de infindável angústia.
O poeta
livre da abstinência
do que chamam pecado
dirá que sonhar
não é sua invenção.
E então terá a certeza
de que o que dele esperam
é apenas a sinceridade
até na mentira.
*Poema integrante do livro Eu Bebi a Lua
Sérgio Luyz Rocha
Ouço outros tempos; ouço claramente um sax e algumas vozes domésticas. Ouço uma lágrima e um aceno, um escorregão e uma nota em falsete, um anúncio e um segredo (o segredo é um cochicho que é uma sensação agradável no ouvido, uma comichão que não pode ser nada além, pois, avós e irmãos e, quando muito, amigos e um barco pouco preciso, sem rumo, que não suporta sexo a bordo). É possível, se nos agacharmos, ouvir-se o escuro, suas formas imprecisas e intactas, paredes fugidias e janelas caladas, mas espere um pouco, ouça, há um outro sentimento que escapa como seqüência de um arranjo improvisado, há um movimento que inspira cuidado, uma queda surda que finalmente mutila e resguarda o caos. Ouço um acorde, mas let it be, é um acorde que precipita uma porta fechada e passos apressados buscando a rua, um acorde que não acode, mas let it be, alguém sempre chega destes tempos. Tempos caudalosos que se derramam mesmo quando ausentes; tempos densos e afetuosos como um abraço. Ouço vozes que trazem notícias, boas antigas novas que dão conta de um mexerico qualquer ou uma esperança vindoura. Alertam sobre conquistas pífias e desaparecimentos contumazes – os meus desaparecidos, percebo, mantêm-se vigilantes e parecem espiar pelas frestas, as mesmas que fazem a poeira espiralar numa dança solar. Tento (quase sempre em vão) uma ponte que me livre do fosso e da possibilidade de uma arremetida pouco eficiente e, quem sabe, suicida. Tento uma conversa e o tempo tenta tentos a todo instante; tento uma paixão que machuque e que devolva a dor, que roube do inferno a dúvida de deus, que estabeleça a incontinência e a ferocidade. Ouço a mesma dor que sentencia o náufrago e absolve o poeta, e, quando a ouço, resolvo que não sou uma poça, mas o mar. Ouço outros tempos; ouço os olhos aflitos que pestanejam borboletas num campo de um outro tempo ainda mais distante, olhos que lacrimejam as águas de um fim contido na execração do corpo. Ouço mãos que pedem não um perdão, mas excomunhão, não carinho, mas um porto; âncoras lançadas – corpo, escuridão, afazeres, sons, redenção. Outros tempos que ouço como um feto, uma carícia na pele, uma vontade de ficar e chamá-la para dançar; um cordão que prende ao módulo negando à alma a órbita. Há uma árvore que vê e um homem que chora; há uma santa impregnada de substâncias pouco cristãs e muitas horas sem pressa; há crianças e tarefas; sonhos e livros; corredores que transportam mortos; há velhos e banhos de rio; palhaços e presépios e um desejo comum de olhar a lua. Ouço a outra banda escura e pressinto as fuças de um dragão pouco acostumado à dor de um súbito clarão.
(Sérgio Luyz Rocha é paulistano dos Altos de Santana. Escreve porque as palavras assim o querem; ele mesmo não tem querer algum. Mora em Aracaju há dez anos e descobriu que a beleza é sempre passageira de um tempo que passa às pressas; ficam impressões, sonhos e poesia, por isso mesmo há sempre uma beleza pra se olhar. Filósofo, ganha algum trocado como consultor educacional e nada com suas oficinas literárias. Não crê em deus, mas suspeita de sua existência – o que não fará a mínima diferença)
JANELA POÉTICA (II)
VENTANIA
Fabrício Brandão
Erguer poeiras com os olhos
e depois acontecer na manhã do dia
Uma tez curtida em brasa
Agora é o idioma do tempo,
Companheiro ativo dos sopros
Nunca precisei de velas acesas
Para orientar o que sei de cor
A luz ainda balança as horas
Desse dia que nunca se despede
E eu, pequenino,
Danço em torno do vento
Para o Rosa.
Valéria Freitas
“empine sua sina que o olhar vai ganhando soltura e foge alto. libere o alazão e cumpra-se assim, a viagem.”
o cotidiano não me entristece. não me atordoa a rotina que pode ter as horas, os homens, todas as coisas. minha pasmaceira absoluta é um caso de cansaço que não encontra descanso. e então se escreve.
já tentei ver melhor o mundo por janelas.também espiei por vigias. e olhe, o mundo pode mesmo parecer estreito, mas que há fronteiras, há. e há um destino também. e tem também o outro gosto, que é esse de ir além de onde se está. de ir buscar o coração onde ele nunca esteve antes, compreende? depois, é seguir viagem. manter assim um olhar espalhado, sabe como?
não acho que uma alma às escuras seja cega, não. falte a ela talvez, o barulho de sapatos com alguma direção nos pés. eu sempre guardo um e outro pecado que é pra o caso de o céu não existir. daí invento afetos. os braços da poltrona preferida, a janela se confessando pra rua enquanto não olho. sou sujeito de poucos murmúrios, de fala miúda e um certo olhar avarandado. me perdoe achar graça bem no meio da frase, mas é que tenho um lírio branco muito pálido, que ora por mim todo dia, todo santo dia, até meu olhar confessar a quem quiser ver, que eu não me absolvo é nunca. eu já vi de perto o medo, sim. e ele vinha sempre acompanhado de gente. agora, por essa altura da idade, olhando assim, bem esticado, posso alcançar pra muito mais longe, sabe? e sim, o céu existe, mas não na nossa coloração, não. e eu compreendo meio tardemente quase tudo que é mistério. até o que envolve amor. e o quanto tudo disso ainda me comove.
(Valéria Freitas é colaboradora ativa do Diversos Afins)
Romério Rômulo
quando do poema, esfarelado no corpo
advém pedras, cabe-nos dizer cada palavra.
por vezes duro, solto, absorvente, o poema
joga-nos, de vez, sobre a pessoa
e da boca, solta e múltipla, lançamos divindades.
flecha e raio, nossa palavra, macia e branda
turbilhona sentidos.
o outro, impregnado, desfalece.
por vezes lânguido, hercúleo, estatelado o
poema,
roçamos, de vez, pela pessoa.
dos olhos, líquidos estilhaços, dardejamos sexos.
no ato
cada cotovelo de pedras faz sentido.
*Poema integrante do livro Matéria Bruta.
(Romério Rômulo nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e é professor de economia política da Universidade Federal de Ouro Preto.“Matéria Bruta”(Editora Altana, SP, 2006) foi seu último livro de poesias publicado. Gosta de se apresentar por um breve poema, escrito já não se lembra quando:
“de alguma forma
morrer um dia:
de luta armada,
de mulher ou de poesia”)
AMPULHETA
Petria Chaves
Se os dias forem estranhos, toma tua forma de céu e transcreva aqueles versos que ainda ninguém leu. Vira a criança que semana passada você criou. Chora, tira a roupa. Deita aqui. De tangente soslaio como os seus olhos fazem quando não acreditam em mim.
Quando os dias forem estranhos, desafia a morte. Sonha que o paraíso comprou mais terreno e te deu. Meu corpo cresceu. Acorda e vem disputar nossa última batalha. Já posso viajar sozinha. Espera pela pergunta antes da minha resposta mesquinha. Não olha pra trás. O destino passou.
Toma um gole do que é meu. Lembra que eu vi as mentiras bonitas. Pensei e fiquei com nojo e parei de respirar. Falei pouco e não quis escutar. Nem discutir. E na terceira pessoa tudo parecia mesmo esquisito. Contrário, diferente daquele que proclamava tratados. Todos falsos. E o mentiroso ficou com nariz de palhaço e não caiu por um triz. Mas a máscara derreteu. E ficou só o corpo amorfo e descomunal, que pena a decadência, mas continua ali.
Não deixa os dias ficarem estranhos assim. Faz velocidade do meu amanhecer. Olha o relativismo que compõe as meninas de mim. Ana, Joana, Viridiana, Catarina. Que rimavam enquanto pulavam a amarelinha pintada no chão. Não esqueça meu cigarro e minha xícara de chá. Toda a minha freqüente alucinação. Me proteja da agressão. Do palhaço, do mago, do infeliz. Da dor de garganta, da minha pretensão.
(Petria Chaves é paulista. Tem 25 anos. É jornalista. Hoje, repórter da rádio CBN em São Paulo. Escreve contos e crônicas por diversão há oito anos. É uma apaixonada por cidades, sentimentos e sorrisos)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
JUNIO BARRETO – JUNIO BARRETO
O disco de estréia desse pernambucano de Caruaru revela uma outra forma de se trabalhar o samba, acoplando elementos diversos, dentre eles, batidas de candomblé, rock, bossa nova, soul, maracatu e outros, além de alguns suaves percursos eletrônicos que emprestam vigor ao seu trabalho. Junio Barreto opta por letras que se despem de maiores rigores, tratando de temas cotidianos revelados em gestos simples e populares. A faixa Qualé Mago é de cara uma das presenças fortes desse disco. Uma vibrante percussão incrementa os arranjos de Se vê que vai cair deita de vez, banhada ao ritmo do candomblé. Outro momento destacado do álbum é a instrumental Passeio, com uma pegada bossanovista precisa. Ao contrário de alguns discos que estão por aí afora, Junio Barreto consegue preservar a raiz essencial desse tipo de música, o samba, utilizando-se dos recursos eletrônicos apenas como um equilibrado pano de fundo. Pelo visto, a estrada é longa para o artista, que já tem sido reconhecido por nomes importantes de nossa MPB.
JANELA POÉTICA (IV)
REENCARNAÇÕES
Héber Sales
a natureza cuida muito bem
das coisas abandonados pelo homem
: cuida muito e de um jeito
que só os vermes sabem
na sua devoção pelos restos
: um ser piedoso pode ser a luz do mundo
mas esses impenitentes
convidam a noite e um novo dia
para tudo em que há vida.
(Héber Sales é colaborador ativo do Diversos Afins)
Por Valéria Freitas
A escritora Vera Americano nasceu em Minas Gerais. De família goiana, residiu entre Goiás e Rio de Janeiro e, mais tarde, em Brasília. Estudou Letras na Universidade de Brasília (UnB) e fez mestrado em Literatura Brasileira na PUC, do Rio de Janeiro. Foi professora de teoria da literatura na Universidade Santa Úrsula, também no Rio. Em Brasília, trabalhou no Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Atualmente, trabalha na Consultoria Legislativa do Senado Federal, na área de cultura e patrimônio histórico. Dona de uma poética sensível e afeita às nuances existenciais, a autora guarda em seus feitos publicações como A Hora Maior (União Brasileira de Escritores, 1970) e Arremesso Livre (Editora Relume Dumará, 2004), além de ensaios e participações em antologias, suplementos e revistas literárias. Extremamente simpática e atenciosa, Vera recebeu a Diversos Afins para uma conversa afinada em torno do fazer poético, exalando lucidez ao expressar seu ponto de vista sobre os atuais caminhos da palavra.
DA - Esqueçamos a pergunta que todos fazem: “o que é poesia”. O que mais há a dizer sobre poesia?
VERA AMERICANO - Muito. A pergunta não esconde uma certa inflexão de que tudo já foi dito. Mas, entendo que, sobre poesia, a mais remota e continuada expressão literária da humanidade, haverá sempre muito a se dizer, ainda mais agora, a partir do caminho aberto pelas novas mídias. Aliás, com tudo o que anda acontecendo, a questão recorrente sobre a “necessidade” da poesia fica completamente desgastada. Senão, como explicar a multiplicação da poesia a partir de novos suportes e veículos? É só abrir três ou quatro janelas na web e a poesia toma conta do seu dia. É por aí que os teóricos e críticos já começam a trabalhar. É por aí, também, que os poetas, mesmo os mais apegados ao papel, passam a investir.
DA - E a poesia brasileira, ela vai mesmo muito bem, obrigado?
VERA AMERICANO - Vai, sim. Como toda expressão artística, a poesia reflete as mudanças, cada vez mais velozes, do nosso tempo. Eu diria que, atualmente, não há plataformas prontas. Assumida a herança das gerações antecedentes, vive-se, hoje, uma época em que a pluralidade de vozes é a marca dominante.
DA - Quem é poeta?
VERA AMERICANO - Para responder a uma pergunta dessa natureza, é normal que se recorra à clássica distinção entre os gêneros literários, basicamente a que compartimentaliza, de um lado, a prosa, do outro, a poesia. A meu ver, essa segmentação, se não está superada, encontra-se, ao menos, bastante abalada. Isso porque a poesia anda um pouco por todo lado e, com muita freqüência, ali está ela em uma certa prosa. No entanto, para não fugir da definição, o poeta é aquele que, recorrendo à sedução do ritmo, traz à superfície, por intermédio da emoção e do exercício de lapidação da palavra, o que é soterrado pelo cotidiano.
DA - Correntes literárias ou “novas escolas”, etc. Elas existem? Onde? Quando? Quem?
VERA AMERICANO - Nunca se viu tanta liberdade. Em meio a essa saudável multiplicação de expressões, não seria sensato falar em escolas. “Correntes”, quem sabe? Prefiro “olhares”. Certas épocas, como a atual, são marcadas pela “renomeação”, pela reclassificação das “tribos”, movimento que faz andar a série literária. Penso que ainda precisamos de um certo distanciamento para definir o que acontece hoje. Há bastante trabalho à espera dos especialistas.
DA - Na sua opinião, se houvesse mesmo uma, qual seria a medida certa para um poema perfeito?
VERA AMERICANO - Primeiro, não acredito em perfeição, essa espécie de “terra prometida” perseguida pelo fazer artístico. Poderíamos listar juntos uma relação razoavelmente interminável de, vá lá, “poemas perfeitos”. E ao fazê-la, iríamos nos deparar com infindáveis “medidas”, a emoção encabeçando a lista. A meu ver, a emoção, sim, associada ao ritmo, é uma das marcas dominantes da expressão poética.
DA - Com a internet, publicar deixou de ser, para uns, apenas um sonho. A cada dia, surge um novo espaço virtual onde surge um novo poeta, um novo escritor...Como você vê esse movimento em torno da literatura nos meios eletrônicos?
VERA AMERICANO - Vejo com bastante entusiasmo e um certo espanto. O vigor desse novo veículo e as possibilidades abertas por ele são, realmente, ilimitadas. Quando já se tornara árduo o caminho que leva um poeta até o prelo de uma editora, surge esse veio que mal começa a ser explorado e já anda provocando o maior reboliço. É claro que as “facilidades” abrem caminho para a gratuidade de certas expressões. No entanto, há uma significativa produção de qualidade. Nesse cenário, as revistas literárias eletrônicas, como a Diversos Afins, têm um papel importantíssimo. É por seu intermédio que o espaço democrático da web ganha contorno e qualidade, veiculando uma produção cuja permanência ainda está por ser conferida.
DA - Escrever não é simples. Na poesia de agora, você concorda que há mais transpiração por parte do seu criador, e que talvez, de fato, nunca se tenha feito poesia apenas por conta da lendária inspiração?
VERA AMERICANO - Não desdenho as musas, mas sou partidária do indispensável trabalho sobre o texto literário, da lapidação das palavras, especialmente na poesia. Acredito no vigor insubstituível da palavra em sua essência, em sua raiz. A minha opção pessoal pela economia, pelos versos curtos, vem dessa certeza.
DA - Quantos arremessos são necessários até a publicação de um primeiro livro de poesia?
VERA AMERICANO - Hoje em dia, muitos, principalmente se o alvo for uma editora de penetração nacional. Curiosamente (e quase paradoxalmente), há uma reconhecida intensificação do movimento editorial. A poesia, entretanto, continua passando ao largo do mercado, se espremendo em espaços reduzidíssimos, o que recoloca a importância do meio eletrônico como veículo do momento. No meu caso, o primeiro livro, A Hora Maior, resultou de prêmio da União Brasileira de Escritores. Depois (muito depois...), o “Arremesso livre”, foi editado pela Relume Dumará. Não tenho dúvida que, em relação ao próximo livro, em vias de tomar forma, terei que partir para a luta, como quase todo mundo. Mas tudo a seu tempo. Ou melhor, a “meu” tempo.
DA - Quais são suas dicas, conselhos, pistas, para quem deseja escrever até escrever?
VERA AMERICANO - Você mesma está dizendo: escrever até escrever, atento ao mundo em volta e aos próprios abismos. Nesse processo, a paciência e a persistência são indispensáveis. E muita convivência com o poema pronto, sem precipitação. Ele costuma ser ardiloso, pois, quase sempre, esconde a sua melhor feição. É preciso buscá-la sob a primeira camada de palavras. Ela brilha, quando se chega até lá.
Vera Americano
Postar-se
no desvão
entre dois argumentos,
por dois segundos.
Respirar
economicamente
entre duas palavras,
duas ondas
muito crespas.
Decidir
em sânscrita ilusão:
viver
ou deixar para mais tarde.
JANELA POÉTICA (V)
RAÍZES
Leila Lopes
Por uma mão que busca espaço
Revelo o gesto pertinente dos bons
O desespero seduz o tempo estreito
E a vida desatina em misérias
Uma corda de desilusões
Teima em desafiar cotidianos
Mas as sementes alimentam o corpo
Através de brancas raízes atemporais
(Leila Lopes é colaboradora ativa do Diversos Afins)
E LA NAVE VA
Affonso Romano de Sant’Anna
Achei que estava no Titanic, não só pela dimensão do navio com cerca de duas mil pessoas a bordo, mas porque mal nos instalamos em nosso quarto, fomos convocados, todos, para irmos ao convés, vestidos com os coletes salva-vidas, e fazermos um treinamento, caso houvesse um naufrágio.
Ríamos, achando certa graça. Mas a voz e as instruções do comandante ao microfone eram bem severas. Eu olhava aquela multidão, sobretudo de americanos, vestidos de coletes amarelos, perfilados diante do crepúsculo no porto de Copenhague. Estamos todos no mesmo barco. Só que no mar da história atual, Bush é que está no (des)comando. Portanto, é melhor agarrar-se ao colete salva-vidas dentro e fora deste barco.
Durante os próximos 12 dias, percorrendo portos e cidades da Dinamarca, Estônia, Rússia, Finlândia, Suécia e Alemanha verei esses senhores e senhoras americanos devorando salsichas, ovos e bacon no café da manhã. Alguns andam de cadeira de rodas, outros de bengala. Jovens e crianças neste navio, são minoria. E esses idosos que vieram de Utah, São Francisco, Dallas ou Middlebury, eram jovens quando eu jovem era nos anos 60 e vivia na Califórnia.
Tento imaginá-los no campus universitário daquela época, nas “pijama parties”, nos rituais de “love-in” nos parques, nas demonstrações contra a guerra no Vietnam. De lá para cá, seus filhos e seus netos tiveram que ir a novas guerras, que o complexo militar-industrial americano sempre providencia. Passa por mim um homem, um ex-GI, com perna mecânica. E à noite, no teatro onde sempre há show com mágicos e cantores, alguém vai cantar não só as músicas da Broadway, mas a utópica “Age of Aquarius” da peça “Hair”.
É nisto que deu a prometida “idade de aquários”: em vez do paraíso, o precipício do apocalipse pós-moderno. Olho esses velhinhos. Me olho neles. Acho que fracassamos.
Mas la nave va . Isto é uma cidade flutuante deslizando sem qualquer tremor: três piscinas, quatro restaurantes, teatro, cassino, buates, butiques, cinema, salão de beleza, de ginástica, salas de internet e até uma boa biblioteca. Ter vindo a essa parte do mundo, tão oposto aos trópicos é mais uma lição de história. Cruzamos o Báltico e aportamos em Tallin. Nunca pensei em vir à Estônia e aqui estou ouvindo o jovem guia falar desse país de um milhão e meio de habitantes, que em 700 anos de história só teve 30 de independência. Ora vinham os suecos, ora vinham os russos, ora vinham os alemães. E até os facínoras chamados cruzados por aqui passaram. Entro na catedral de nome Alexandre Nevsky - príncipe russo que os expulsou daqui. Católicos e luteranos também se trucidaram nesses lugares.
O jovem guia diz que Tallin foi eleita umas da “7 cidades mais inteligentes”. Os brasileiros, deveríamos aprender alguma coisa com isto ao invés de ficarmos louvando apenas nossa natureza. E ele segue falando dos estúpidos tempos do nazismo, quando ouvir a BBC era um gesto de coragem, e do comunismo, quando ouvir “Alice Cooper”, Elvis Presley ou os Beatles, era um perigoso ato revolucionário. Usar um “jeans” era o mesmo que ser guerrilheiro.
O que a repressão ideológica faz com a gente! Como nos emburrece e avilta. Como a proibição valoriza e inventa a maçã! E isto foi ontem. Os mais jovens não sabem, mas no Brasil também havia ousadas atitudes revolucionárias deste tipo. Por exemplo: assistir, escondido e heroicamente, num cinema de terceira, em Londres ou Nova York- “Emanuelle”- aquele filme pornô com Silvia Kristel. A gente assistia sem saber se alguém do SNI estava ali para nos denunciar ou se havia outros brasileiros igualmente revolucionários que iam dar testemunho de nossa ousadia.
Ando pelas ruas da Estônia e não vejo miséria e pobreza. Nas lojinhas muitas jóias com âmbar, uma riqueza regional. Imagino que por ali haja poetas, cineastas, artistas vários tentando expressar a mesma perplexidade de artistas em Montes Claros ou Olinda. Mas o navio partirá à noite para São Petersburgo. Estaremos assistindo a espetáculos, comendo, bebendo, lendo, conversando e nos preparando para o amanhã. E la nave va.
Enquanto isto o navio avança na escuridão.
Fica mais fácil dormir talvez sonhar quando se sabe que um porto novo nos espera e que vai haver um amanhã.
(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador ativo do Diversos Afins)
DE ARTE E OUTRAS FRONTEIRAS
Por Fabrício Brandão
Cinco anos de vida e o Programa ArtEducação Bahia sedimenta suas ações nesta que é uma verdadeira tarefa de incentivo à cidadania. A iniciativa, patrocinada pelo Governo do Estado da Bahia (Programa FAZCULTURA) e pela TIM, percorre 13 municípios do estado, realizando oficinas com alunos da rede pública de ensino, voltadas para a prática do teatro, literatura, dança, artes plásticas, música e folclore. Capitaneado pelo CIACEN (Centro Internacional Avatar de Artes), através de articulações artístico-pedagógicas, o programa privilegia uma fusão entre o aprendizado e a inserção diferenciada do sujeito em seu próprio meio, fortalecendo aspectos como a produção de novos significados sócio-culturais e a valorização da diversidade.
A parceria com as prefeituras que acolhem o projeto é outro aspecto fundamental para o sucesso das ações. Para se ter uma idéia, no último ano, uma pesquisa realizada entre as Secretarias Municipais demonstrou que 88% delas reconhecem a forte influência do programa nas políticas públicas do município. Para além dos patrocinadores oficiais, as ações de visibilidade têm demonstrado um relevante interesse de seus agentes locais, conferindo uma certa autonomia para romper com velhas noções de paternalismo e assistencialismo. Segundo o coordenador geral do ArtEducação na Bahia, Paulo Atto, é importante destacar que, independentemente da gestão, o que prevalece mesmo é o fomento à política pública.
Em seu quinto ano de atuação, o ArtEducação estabelece como temática central as relações entre identidade e diversidade. De modo efetivo, os resultados práticos têm apontado para significativas melhorias na vida dos jovens, principalmente no que se refere às expectativas de futuro profissional, às relações com a família e a escola, à inclusão social e ao despertar de novos talentos. Além da Bahia, a TIM patrocina o programa nos estados de Sergipe e Minas Gerais.
LÁGRIMA
Lita Passos
Esfinge,
investigo tua forma.
Matéria:
que te habita em cheio,
labirinto invisível de sonhos.
Abismo:
vôos inexoráveis, riscos
entre limos, sentidos e ventos,
busca entre soluços,
forma do desenho da lágrima.
Matéria e abismo
fustigo caminho vário.
Da fonte ao rio,
como um fio de liquida luz
rasgando os seios da terra,
de gota em gota.
(Lita Passos diz que sua poesia passeia livre entre as grades sensíveis da palavra. No seu texto reverbera o canto mais delicado da raiz do rosário de lembranças... Sou uma reticência fluindo em versos. Publicou: Mão Cheia (2005), Nosotros (1996), Flores de Fogo (1994), entre outros, inclusive tem publicações em Revistas Literárias)
STRANGE LITTLE GIRL
Tato Zonzini
Conseguiu ser anulada novamente, assim como já fizeram em outras vezes. Não foi a primeira e não será a última, porque ela simplesmente É, independente de qualquer estado ou posição. É que ela é relativa, convém a alguns pontos de vista; e, pela semiótica que a condena, foi capaz de provocar o que jamais despertara em homem algum, ou mulher, ou anjo: aquilo que não é uma pequena fração do que ela sentiu, comparada aos danos irreversíveis estocados aleatoriamente.
Suas habilidades a intitulam, com louvor, a autodidatazinha amigável e tímida das feiras de ciências; a mocinha que faz curtos sinais, dando passagem aos outros carros; e a convidada que não desperta olhares repressores quando, sorrindo, chega com seus minutos de atraso. Ela espera ser abordada com uma braçada de flores, mas isso só acontece nos sonhos, nos quais ainda tem em si alguma coisa que chora.
Brotou no dia e morreu na noite, como uma espécie de flora temporã, cujas raízes e veios vieram a atrelar-se em forma de rede, através de nós que não se podem desfazer. Enquanto reinou, não houve mão ou cabeça que lhe disputasse o cetro nem a coroa: se fez majestade de forma justa e a desfizeram de forma injusta. Caiu no esquecimento de pauta desnecessária, porque pensam que morreu, enquanto vive nas alucinações e suposições de realidades paralelas.
Nunca ninguém desfrutou sua presença nas salas principais, nem nas mesas onde era invocada: ora como deus, e outrora um Exú, atormentados em suas próprias lamentações. Equilibrava-se atrás de tudo que é bom e ruim, representado num sinal Yin Yang que traz consigo, além de outras marcas dolorosas que conquistou. Ela foge do afeto como o unicórnio da mão do homem, porque se perdeu no seu mundo, onde ninguém mais tem a permissão pra pousar.
(Luiz Tato Zonzini mora em São Paulo, é livreiro e tem 22 anos)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Fabrício Brandão
Saneamento Básico. Brasil. 2007.
Até que ponto vale mexer no velho ciclo vicioso que ronda a indústria cinematográfica brasileira? Provando que nunca é tarde para tratar de temáticas que estão ali bem abaixo de nossos narizes, o cineasta Jorge Furtado ataca novamente. Seu mais novo trabalho, Saneamento Básico, é dotado de uma ambivalência que atua por várias frentes. O longa narra a história de um grupo de moradores do interior gaúcho, cujos destinos se vêem unidos na luta pela construção de uma fossa sanitária, obra que irá aliviar os problemas de esgoto da região onde moram. Munidos da vontade de resolver a questão a qualquer custo, eles pedem apoio à prefeitura. A administração local sustenta que não há dinheiro para tal tipo de obra. Porém, curiosamente, nem tudo está perdido, pois existe uma verba federal, ainda intacta, destinada à produção de um vídeo para quem se interessar. Como o incentivo não pode ser utilizado de outro modo, a comissão de moradores resolve encarar o desafio de realizar o filme e, dessa forma, angariar fundos necessários para seu objetivo maior.
JANELA POÉTICA (VII)
Neuzamaria Kerner
Minhas tempestades
não são cerebrais
- são na alma.
Chega sinto
o meu corpo estremecer
todos os dias
a cada disparo do céu!
RENATA ROSA – ZUNIDO DA MATA
Ouvir Renata Rosa parece remeter a uma espécie de viagem ao imaginário popular do Nordeste brasileiro, com direito a cirandas e rodas. Munida de sua rabeca e com uma voz que se assemelha a um clamor vibrante, a cantora desfila beleza em seu canto agudo e intenso. Em Sereia, por exemplo, a sonoridade de uma cantiga recria todo um ambiente de uma canção integrante do domínio público, mesclando ritmos como o coco e batidas afro. Em outro momento, contornos de viola emprestam vida aos arranjos da faixa Me leva. Sem dúvida alguma, um dos pontos mais belos do disco está na interpretação de Lá em São Paulo, composição que utiliza o ritmo do coco para falar, com simplicidade, sobre o amor. Zunido da Mata é o primeiro álbum solo dessa paulista que, por opção, se fixou no Nordeste, de onde retirou a matéria-prima fundamental para a qualidade de sua arte.
Dos anos todos ainda não se soube o cheiro certo das coisas. As falas se espalham pela cabeça numa vontade quase ávida de se estar recolhido, revirando páginas que traduzem o alheio de si. Mexia com as letras dos outros, arquitetando projetos que ora surgiam como forma de sustento ao pequeno grande mundo todo particular. Aliás, saber dos metros quadrados uma dimensão abstrata de sua existência, era um trunfo seu guardado a sete selos. No entanto, tudo nele girava em manobras de vida, recursos freqüentes para se combater certas nostalgias que se disfarçam de amigas do hoje ressuscitado. É curioso como certos solitários convictos definem suas liturgias num caminho que quase beira ao autismo.
Colecionou alguns idiomas, todos eles frutos de suas venturas noutras terras, noutros tempos onde se misturavam paisagens urbanísticas perfeitas e a leitura compulsiva de uma infinidade de jornais. O silêncio dos dedos ao computador contrasta com lembranças setentistas, nas quais sua antiga morada se via embebida em orgias de papos, bebidas e alguns desvarios da sempre fraca carne nossa. Mas o ontem morreu numa esquina qualquer, já que não havia motivos para se remoer certas lições surdas. Durante o tempo esquecido, deitou-se com sua parca vontade de não-ser no outro. Daí em diante, milhões de cenas atravessaram minicertezas. Tantas outras caras e bocas lhe trocavam energias ocasionais e ele marcava os espaços, delimitando as regras em seu manual dos amores afastados. Melhor assim, pensava ele, pois era mais cômodo não mexer nas estantes empoeiradas das relações. Um certo hermetismo tomou-lhe de assalto para nunca mais largá-lo.
Outro dia fora encontrado numas dessas páginas de buscas virtuais. Alguém ousou chamá-lo pelos seus atributos de estudioso. O rapaz era um desses integrantes de uma geração que dissolve impulsos saudáveis em achismos virtuais. Marcaram um papo pessoalmente. Os vinte e poucos anos do moço jovem agora estavam ali, bem à sua frente e numa dessas mesas de bar abarrotadas de rodas de gente que fala alto demais. Um gosto de drinque forçado era o único motivo para se alimentar a conversa entre dois seres tão diferentes. O monástico cinquentão apenas ouvia o verbo incessante do menino com modos de aparente curiosidade estudantil. Desejava fugir dali, mas era impossível, pois o rapaz controlava as falas e o tom já era outro. Então, resolveu mergulhar em seus devaneios, arma predileta para se ofuscar os ruídos do coletivo. Deve ter passado ali uma relativa eternidade. Quando voltou à tona, reconheceu no moço algo preso no tempo. O rapaz irrompia como o produto dos anos muito bem escondidos. O passado tomara forma de gente e o homem maduro paria um filho bem ali à sua frente. A paterna idade e o silêncio cortante agora boiavam solitários nos dois copos de cerveja quente.
*A arte do baiano Nelson Magalhães Filho visita as paisagens existenciais, vivenciando uma espécie de exorcismo a certas faces humanas obscuras. O artista não acredita na pintura agradável e, em sua incisiva fala, nos diz: “Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo”.