30 de nov. de 2011,14:58
SEXAGÉSIMA TERCEIRA LEVA



Espelho
Desenho: Suzi Carvalho

 

 

CICERONEANDO


Até que ponto a arte como um todo seria um instrumento efetivo de transformação da realidade? Há quem discorde de qualquer possibilidade nesse sentido, alegando ser algo que se presta muito mais a um viés de representatividade do mundo e seus elementos. Sem o condão da interferência, as manifestações criativas seriam apenas meras reprodutoras cênicas de um universo de signos que se deseja externar. À primeira vista, o conceito de intervenção no nível do real poderia remontar a uma noção um tanto equivocada de experimentar as criações como se delas fosse fundamental extrair algum tipo de resultado meramente emocional, espécie de catarse a povoar e até mesmo influenciar comportamentos. Quem estará com a razão? Talvez jamais saibamos ao certo, mas o fato é que enquanto existir alguém que pense no processo como algo que efetivamente sirva como importante fonte de leitura do mundo em que vivemos, sem dúvida alguma, um papel mais vigoroso e substancial será conferido ao esforço criativo. Ler o mundo é, sobretudo, ler a si próprio e ao outro, experiência que pode nos remeter também a uma sensação de transcendência, substituindo visões aborrecidas pelo tempo por renovações necessárias do olhar. Por estas e outras tantas razões, é revelador penetrarmos nas veredas líricas de gente como Ângela Castelo Branco, Graça Pires, Germano Xavier, Martha Galrão, Jorge Otinta, Eunice Boreal, Neuza Pinheiro e Wilton Cardoso. Entre as palavras de então, as cores e formas impregnadas na arte de Suzi Carvalho conferem significados outros à odisseia dos homens. A prosa de agora é dominada pelos arremates densos e precisos de Márcia Barbieri, Larissa Mendes e Carolina Caetano. Para falar um pouco sobre seu mais novo romance, Libido aos Pedaços, e outros afins literários, o escritor Carlos Trigueiro responde a uma pequena sabatina. No Aperitivo da Palavra, W. J. Solha nos aponta razões para a leitura do mais novo livro de Esdras do Nascimento. Por aqui, ainda há olhares para a musicalidade de Criolo e a mais nova produção de Pedro Almodóvar. Seja bem-vindo (a) aos nossos mais recentes caminhos!




*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.  



 

JANELA POÉTICA (I)

Ângela Castelo Branco



Sim, há um diálogo. Mas não ouso separar-me dele. Já não  
se escuta mais a pausa ou quem diz. Seremos todas. Até

Saber o tamanho de um pássaro disponível
andar sob a linha de pesca
deitar os olhos nas larvas que se enrolam
e o que se tem

Adequar o vestido para a ocasião de nascer
nascer agora, sob uma espécie de ventania
empurrando os mortos para os muros, murmúrios.

Estudo as horas que se cercam de círculos
ando com o pó de flor cingindo as ruas
e sei como duas orelhas se tocam no amor

Era por minha conta: raspar os restos de uma
fome real e devolver no cio qualquer prato
de abelha quente




(Ângela Castelo Branco mora em São Paulo, é poeta e educadora. Publicou livros os independentes: “Orações” (2008), “Oferenda” (2008) e “O que digo, O que me diz” (2009), com incentivo do ProAC - Artes Visuais. Atualmente participa da Bolsa de Criação Literária da Funarte 2010. Foi contemplada pelo Proac 2011 de Publicação de Livros pela Secretaria Estadual de Cultura. Escreve regularmente no  seu blog e no portal literário Cronópios)







Domingo
Desenho: Suzi Carvalho






VIA-LÁCTEA

Márcia Barbieri

“Toda badalada nos fere, a última nos mata”
Provérbio latino-americano



Morrer é como pisar um rio pela primeira vez, nunca sabemos ao certo o que há no fundo.

Rua Aurora. Os jovens riem dos velhos, achando serem imunes à velhice, pensando que a adolescência jamais arrumará as malas e partirá sem recados, abrupta, como um mochileiro irresponsável. Eles falam em códigos e contam piadas até o amanhecer e para eles as noites são estreladas e não lembram em nada os suicídios e os ciprestes de Van Gogh e passam rápidas e o sol e o gozo nasce quente novamente todos os dias. Também acreditei nisso, bebi dessa fonte enganosa da eterna juventude. Hoje as moedas que joguei alimentam os desajustados.

Meus olhos eram flutuantes e verdes... Tão verdes e impressionantes como as lagartas antes das asas. Envelhecer era ter mais de dezoito. Os cavalos passam sempre a galopes... Famintos. Como não percebi antes? Ah, a eterna adolescência de Leminski...Aos quinze também era poeta, mas as palavras foram morrendo aos poucos, sufocadas por sondas e cateteres, algumas engolidas, outras despejadas em conchas azuis, na esperança tola de virarem pérolas, as coisas apodrecem mais rápido do que imaginamos. Olho a beleza furtiva no breve e absurdo afogamento dos corais. Comungo com a perversidade dos espelhos e com os labirintos em braille de Borges. Apenas suspeito da ingenuidade dos caracóis sempre envoltos em cascas duras, vendo a vida passar lambendo o chão e a merda de todo homem. O mundo visto pelo buraco omisso da fechadura. Regurgito: e a vida pode ser mais cruel que a morte. Afiem as facas!!!! Ela nos desossa como um açougueiro louco, contaminado pela frieza do ofício.

Rua Brinco de Princesa. Passo as mãos trêmulas pelos cabelos ralos. Olho através da janela, trespasso gerações. O moço de cabelos compridos e anarquista, agora anda de terno, com ares de pai, é gerente de uma multinacional. A moça, outrora sorridente, passa contando os rejuntes dos pisos, tão cúmplice da tortura do tempo, eu não fui o único a ser trapaceado... Sua mãe que desfilava distraidamente sem blusa com as cortinas abertas, agora guarda com vergonha os seios flácidos, e apenas seus decotes são vermelhos e vivos. E apenas eu sou seu voyeur e todas as janelas lembram o suspense de Hitchcock. Seu rosto tem o cheiro e as manchas próprias das frutas amadurecidas à força. O tempo é um cão cego e sem faro a nos guiar.

Rua das Ilusões. Vejo o mundo e posso ver a pena através dos seus vitrais embaçados. De tudo o que me restou a piedade é o sentimento maior de todos, Camille Claudel me entenderia, apesar da sua loucura e devassidão. Ninguém fica pra semente, escuto um coro rouco gritando. Espero sinceramente que não, porque a morte se instalou entre meus ossos e minha pele, ela é agora minha nova e digníssima carne.

Rua sem saída. Aqui, agora, percebo o relógio se arrastando num compasso tão diferente do meu, eu diria inversamente proporcional. Os relógios de bolso e os pêndulos não mais existem. Percebo o quanto envelheci, meu corpo já não responde aos meus comandos, já não posso correr disso tudo. E o moço me diz gravemente: “Você jamais teve minha idade!”. Sou escravo dessa visão parcial da minha janela. Jamais poderei sentir novamente o corpo de uma mulher estremecendo sobre meu peso. Sou leve como o pensamento, estou tão próximo do mundo pervertido das idéias. Estou tão debilitado que durante toda essa conversa, apenas passei do corredor para a tristeza úmida do quarto.

O tempo me fisga com seu membro de aço ejaculando um esperma gosmento, branco e estéril. A velhice é como amanhecer e anoitecer sob o giro alucinante do sol do Alaska.

Na placa do carro preto 8888. Revivo o invento das bombas de napalm da Segunda Guerra. Afundo meus pés, não creio nos submarinos dos sonhadores... Escafandros emergem de repente... Sigo e escuto os galopes... Finalmente avisto os cavalos de Tróia.



(Marcia Barbieri é paulista. Tem textos publicados nas Revistas Literárias Coyote, Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas e Meio Tom. Tem três livros publicados, dois de contos e um romance. É colunista da Revista Literária O BULE)





Encontro de Alma
Desenho: Suzi Carvalho





JANELA POÉTICA (II)


MONUMENTOS DA DOENÇA

Germano Xavier


E nem o brusco movimento articulado de suas largas
compressões endurecidas

pelas linhas cartográficas
cegas, largadas ao deserto, mentiria nossa ira afiada
por esta estrada de túneis e de amarras ao nada.

Giram em forças que desatam laços os densos lençóis de aço das águas,
ou as léguas da língua,
pegadas da pedra fundamental do destino e dos partos.

A mirada espelhar das vestes da lembrança
tortura.

E se não se fartar em tanto, feriremo-nos dentro do que não há
porque na secura nosso peso envergaria mais que o suportável
do corpo,

(eis o complexo do todo)

mais do que nossa comum e avessa mandíbula humana
aguentaria. Porque não somos homens imortais,
assim
de restrito retrato
ou memórias manchadas a sangue.

Dos nossos restos um composto de matéria pode imperar.
De nossas galáxias um dejeto ou uma idéia.
(E quando blindamos os nossos fantasmas?)

E quando no nada o nada em que nos transformamos
vira ânsia ao redor do nada que não concentramos?

Não iremos embarcar numa teia de aventuras,
tampouco cairemos céticos no exótico limite das correntes?
A calda remanescente das lamas esporais

tende – não é certo -,
a afundar os monstros de qualquer esgoto.
Ademais é abandono.



(Germano Viana Xavier é natural da Chapada Diamantina, graduado em Jornalismo e Letras, autor do livro de poemas Clube de Carteado (2006/Franciscana) e do livro-reportagem Iraquara - Em memória de Nós, ainda não publicado. É colaborador dos sites Página Cultural e Entrementes. Está preparando seu primeiro livro de contos para lançamento no início de 2012)





OUVIDOS ABERTOS

Por Larissa Mendes
 

CRIOLO – NÓ NA ORELHA




“O meu berço é o rap, mas não existem fronteiras para a minha poesia”.
(Criolo)


Num país onde ser chamado de crioulo é xingamento e rap é tratado como subgênero musical, o paulistano Kleber Cavalcante Gomes parece ter adotado o codinome MC Criolo Doido (subtraído para apenas Criolo) para louvar e provocar: honrar as raízes africanas do pai e subverter a candura cearense da mãe. Aliás, é impossível discorrer sobre Nó na Orelha sem abordar a história do menino pobre e rimador que quase abandonou a música, em menos de um mês, dividiu os vocais com Caetano Veloso e viu-se homenageado por Chico Buarque. Vencedor do prêmio da Revista Bravo como melhor show do ano e grande nome do VMB da MTV, onde conquistou as estatuetas – desta vez concedidas por júri especializado – nas categorias melhor canção (para a belíssima Não Existe Amor em SP), melhor disco e artista-revelação, Criolo é tudo, exceto um principiante. Com 36 anos – mais de 20 deles dedicados à música –, o rapper é um dos fundadores da Rinha dos MCs (tradicional festa de hip hop voltada às batalhas de improvisações de rimas, conhecidas como freestyle), já atuou nos filmes Profissão: MC (2009) e Luz nas Trevas – A Revolta de Luz Vermelha (2010) e é um ativo agitador cultural no Grajaú – periferia da zona sul de São Paulo –, onde vive até hoje.

Nó na Orelha (2011), seu segundo álbum, lançado de forma independente (em cd e vinil) no primeiro semestre, sob a primorosa direção musical de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral – que também integram a banda do cantor – continua reverberando como um dos mais surpreendentes discos do ano. Trata-se do registro de letras de até uma década atrás, onde o jovem Criolo Doido dedicava-se ao rap tradicional em Ainda Há Tempo (2006), enquanto engavetava canções que flertavam com o samba. A caixa de Pandora às avessas – ou a gaveta do Grajaú – aberta por Ganjaman e Cabral revelou-se numa miscelânea de canções autorais, nas quais Criolo utiliza o conceito temático do rap para experimentar as mais diversas sonoridades.

Enquanto Manuel Bandeira vai embora para Pasárgada, em meio a metais e percussão, Criolo propõe uma viagem afrobeat à Bogotá e narra, assim, o roteiro do tráfico. A faixa seguinte, Subirusdoistiozin, com um pé no jazz, faz mais uma crítica social (repleta de gírias que, a propósito, ele detesta explicar) à sorte e revés dos perrecos. Em Mariô (única parceria do disco, ao lado de Kiko Dinucci), com sua batida de candomblé (aliás, mariô é o nome da folha do dendezeiro, utilizada em rituais de terreiro) e refrão-mantra, figuram de Sabotage à Mãe Dináh, avisando: ‘quem se julga a nata, cuidado pra não coalhar’. Há espaço, ainda, para o bolero deliciosamente teatral de Freguês da Meia-Noite e para a balada soul Não Existe Amor em SP. Em Lion Man, o rapper dá seu recado que ‘MC bom é mais que photoshop e refrão’ e lança uma questão categórica: ‘Pátria amada, o que oferece aos teus filhos sofridos? Dignidade ou jazigos?’. Grajauex (e suas rimas que vão de triplex à marmitex, de Jontex à Protex) e Sucrilhos – talvez as canções que mais se aproximam da genuidade sonora do hip hop – declaram o amor do artista por sua comunidade e pelo rap. Samba Sambei, apesar do que sugere o nome, trata-se de um reggae que lembra os áureos tempos de Cidade Negra. Samba mesmo é Linha de Frente, canção de cunho político que fecha o álbum prestando uma singela homenagem a Maurício de Souza e sua ‘Turma da Mônica do asfalto’, e de onde vem o verso que intitula o trabalho (o nó da tua orelha ainda dói em mim). E assim, na poesia de suas letras, com sua voz doce e beleza étnica (‘índio-caboclo-cafuzo-crioulo, sou brasileiro’, já diz em uma de suas canções), entre dores e delícias, o músico transita pela crueza periférica pessoal e universal. Ainda há tempo: sejamos todos atingidos por um Criolo-Sansão.



Abra SUAS ORELHAS e faça aqui o download do álbum



(Larissa Mendes, branquela ainda doidinha, tem orelhas que abanam por um único status: o happy!)





União
Desenho: Suzi Carvalho





JANELA POÉTICA (III)


Martha Galrão


IV

Estremeci quando ela disse:
‘Cuide bem de seu abismo’.
Pensava estar sob um véu
e descubro que arrasto (in)visível
meu precipício.

Faço cipó de letras
e desço.
Teço corda de texto
e retorno.
No despenhadeiro
marcas de unha
e memória.




(Martha Galrão nasceu em Salvador, é professora e poeta. Participou de algumas antologias e este ano lançou ‘A Chuva de Maria’, seu primeiro livro individual. Seu maior sonho é "um dia ser índia, viver pelada, pintada de verde, num eterno domingo")







Eu
Desenho: Suzi Carvalho






DO QUE PODE A POUCA IDADE I

Carolina Caetano


Um fato absoluto: o trinco grande de trancar o portão. O trinco absoluto: ergue-se a alça, move-se o trinco para o lado esquerdo, baixa-se a alça. “Tem que ser feito com barulho, se não, não tranca”, não assemelha que trancou. Fez mais duas ou três vezes pra assemelhar que trancou. Fez mais oito ou nove por causa do barulho “tem que ser seco, bravo, não alto, nem baixo, se não, não é trinco”, não assemelha que trancou. “Daqui do portão praí, hoje, o caminho dá prum livro!”, socou o cadeado de uma única vez, Papaiz, “agora vê se não é trinco”.

Dali do portão praqui, hoje, o caminho era essa estadia. “Não pi-se na gra-ma. E se ela gosta? Tem mulher que gosta!”, ela devia não envelhecer, “o chão é que precisa gostar, coitado! Eu, não. Vê se tenho cara de chão!”, uma elegia absoluta: o chão deveria envelhecer sem ela, antes, menos ela devia conter tempo, o resto que corra esmorecendo, a parede encostada nela, menos o tempo devia contê-la. “o cadeado deixa a idade entrar?”. Papaiz. O cadeado que o resista.

Dali do portão praqui, hoje, o tudo já havia acontecido, perdera-se notícia, já se havia a vida passado. Quando chegou aqui perto, fez-me abaixar, era ainda uma coisa pequena, alcancei-a com o ouvido “agora o senhor vai lá e vê se não é um trinco”.

Fora da cabeça, tudo era pequenino. Tudo não terminava.




(Carolina Suriani Caetano, nascida em Uberaba, Minas Gerais, 1989. Além do seu blog, escreve nos sites das Escritoras Suicidas e As Tormentas)





 

Sala
Desenho: Suzi Carvalho








JANELA POÉTICA (IV)


SAFO DESTERRITORIALIZADA


Eunice Boreal



Meus passos são largos
Transpiro a quimera
Danço com Deuses, homens e mitos
Não nasci para os confins dessa terra.
Minha única semelhança é a distância.

Para as faces, hora sou
Mendiga, hora sou Infanta.
Mas no sussurro da vida
E na delicadeza que arde
Sou a verdade entre os disfarces
Das Classes.

Minha herança é filha da história
E o meu mérito, pai do infinito.
Além de qualquer ilha
Sou a sólida cria flutuante
Trago comigo
Os mistérios de Sírius
No embalo dos prazeres da quântica.

Nasci pelas individualidades metamorfoses
Que celebram as nuances e estranham os uniformes.
Meu verso existe pelo átomo
E por isso declamo o universo.
Sou o vendaval que tem
Como mãe a temperança.
E hoje venho trazer a primavera
Que grita pela sede Atlântica.




(Eunice Boreal é poeta. Trabalha com a poesia em diversas mídias. Cursa o bacharelado em filosofia na UFPB e Música Clássica na EMAN. Tem publicações no Livro da Tribo, no Portal Cronópios, Correio das Artes e em micro-filmes)




 


Calor
Desenho: Suzi Carvalho







PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão



Talvez seja muito difícil precisar quando um autor se aproxima daquilo que podemos atribuir de maturidade literária. Talvez ela propriamente nem exista e estamos aqui a divagar sobre algo assemelhado ao que poderia ser uma espécie de Olimpo da criação, objeto supremo e quiçá inatingível. Insistindo no tema, melhor seria crermos num grande escritor como sendo um porta-voz de nossa míope condição de mortais. Alguém que nos mostrasse a cada compasso de palavras as incomensuráveis artimanhas do ser. Tudo isso fica mais palpável quando o elo entre criador e leitor acontece no tácito jogo das interpretações, ainda mais reconhecendo que a perfeição, definitivamente, não combina com os humanos.  Sensação semelhante pode ser percebida no contato com a obra do escritor amazonense Carlos Trigueiro.  Seu olhar pungente sobre a natureza  dos homens desmistifica toda e qualquer tentativa de entendermo-nos como seres dotados de excelência.

Como bom ficcionista que é, Trigueiro já nos ofertou, em obras como O Clube dos Feios & Outras Histórias Extraordinárias (Artes & Contos), O Livro dos Desmandamentos (Bertrand Brasil) e Confissões de um Anjo da Guarda (Bertrand Brasil), indícios de que o mundo em que vivemos é passível de adequadas doses de estranhamento. Mesmo com um viés crítico da realidade, muitas vezes fio condutor de seus escritos, não busquemos no autor o discurso de uma supremacia da racionalidade humana. Diante do seu mais novo rebento, Libido aos Pedaços (Record), a temática do desejo subverte algumas noções a que estamos acostumados. Permeando as vias da psicanálise, o livro ocupa um lugar especial pela capacidade de confrontar os discursos masculino e feminino, cabendo ao leitor tecer suas próprias conclusões sobre os reais efeitos de tais oposições do pensamento. O fato é que Carlos Trigueiro surge agora com um romance moderno e vigoroso, cujo domínio da linguagem, e a precisa construção textual pautada num tom confessional conferem à obra um lugar de destaque, quiçá leitura imprescindível face à chamada pós-modernidade. Para falar um pouco sobre todas estas coisas, eis aqui o autor novamente a dialogar com a Diversos Afins.




Carlos Trigueiro
Foto: arquivo pessoal


DA - Libido aos Pedaços ousa tocar de modo bem incisivo no labirinto dos desejos humanos, tendo como pano de fundo os desvarios de nossa pós-modernidade. Sob a ótica dos sentimentos, acredita estarmos vivendo uma era algo perturbadora?

CARLOS TRIGUEIRO - Acho que sob qualquer ótica o processo evolutivo do homem sempre teve algo de perturbador. Imagine o espanto que causaram a descoberta do fogo por atrito, e os inventos da roda, do anzol, da  escrita, da vela de navegação, da pólvora. Mas entre o fogo e a pólvora decorreram milênios. Enquanto isso, o cérebro humano pôde adaptar-se a novas demandas. A grande perturbação da era que vivemos é gerada pela velocidade das mudanças tecnológicas que impactam o comportamento psicossocial. Pesquisadores sociais dizem que  já estamos falando (e namorando) pelos dedos, e que relacionamentos amorosos terminam pela web ou pelo celular. Clica-se "Enviar" e pronto: o amor que era doce se acabou. Vivemos sob a tirania da pressa, do automatismo, do controle remoto, do mundo virtual. Isso, claro, enseja superficialidade, imprecisão, frustração. Qualquer pessoa constata que coisas banais como somar parcelas ou decorar números telefônicos já estamos transferindo para os chips dos celulares, dos smart-phones e calculadoras. Ainda não sabemos as implicações dessas mudanças de comportamento em nossas configurações e reações neuronais no futuro.

Em "Libido aos Pedaços", Otávio, o personagem narrador, que é biólogo e observador, fala disso em várias passagens. Por exemplo, na pg. 28: "Ninguém quer ou já não sabe esperar. Refletir? Nem pensar! Todo mundo quer as coisas acontecendo logo, já e já, agora mesmo, se possível no controle remoto..." E adiante critica psicanalistas e sexólogos legitimando o sexo casual: "Vapt-vupt, pronto, ficamos, acabou, numa boa, limpa aqui, legal, quer carona? Tudo bem, tchau, me liga...." E  na pg. 43 um contraponto, "... urdiduras de natureza sentimental precisam de condições e agentes exclusivos: tempo certo no espaço apropriado e vento favorável às carências substituíveis." Sob a ótica dos sentimentos, segundo os traços literários em Libido aos Pedaços, apesar de todos esses desvarios da pós-modernidade, acho que ainda haverá (algum) tempo e espaço para o meio-termo entre o cinismo de Otávio  na pg. 15, "Enfim, transar por transar ainda é humano" e a eloquência da sua psicanalista, Dra. Larissa, ao afirmar (pg. 27) que o amor (entre cunhados) não aceita aspas que o dissimulem, não cabe entre parênteses explicativos e dura o tempo mais-que-imperfeito.


DA - Chama atenção no livro uma verdadeira incursão pelo complexo universo da psicanálise. De que forma esse viés impactou seu impulso criativo?


CARLOS TRIGUEIRO - Talvez ao constatar que  na chamada pós-modernidade o homem tornou-se prisioneiro de suas próprias conquistas:  invenções tecnológicas, novos padrões socioeconômicos  e os ilusórios  artificialismos dos mega-aglomerados urbanos. Não é à-toa que, em "Libido aos Pedaços", Otávio lê o aviso "Entrada proibida a pessoas com os pés no chão" na porta do consultório da psicanalista - Dra. Larissa Pontes. Em tese, o aviso significa que as pessoas, em sua maioria, são ou estão desequilibradas e já não têm  os pés no chão, pois o homem pós-moderno dos grandes aglomerados urbanos -- sujeito ao trânsito infernal,  às enormes distâncias para cobrir  no cotidiano, à violência contra o ser humano e o patrimônio, à competição no trabalho, à concorrência empresarial, às imposições institucionais do Estado, dentre outras formas de pressão -- acaba adoecendo pelos efeitos das suas próprias conquistas e invenções.  De outra parte, tsunamis de marketing o impelem ao consumismo no beber, comer, digerir, dirigir, usar, calçar, vestir, dormir, voar, navegar, fumar, filmar, fotografar, telefonar, etc. Sabemos que essas novas circunstâncias artificiais vão lhe afetar o sono, o humor, o aprendizado, o desempenho, os relacionamentos afetivos, sociais e de trabalho. Enfim, esse novo ser humano, modificado artificialmente para vencer, conquistar,  concorrer e, sobretudo, comprar e consumir muitas vezes o que não precisa, acaba nos labirintos dos hospitais ou nos consultórios de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas. Numa obra como "Libido aos Pedaços" em que psicanalista e paciente dialogam em sessões, ora patéticas, ora bem-humoradas, o impulso criativo tem nuances bem variadas. Gosto muito da resposta sarcástica de Otávio ao psicanalista quando este lhe pergunta qual o ramo de negócio da sua família que o tornou tão rico, e Otávio responde na bucha: "Um ramo imbatível. Lojas de inutilidades para presente." Há outros impactos sob esse viés como, por exemplo, quando Otávio diz que há suspeitas de que o próprio Freud, Pai da Psicanálise, tinha um caso secreto com a sua cunhada Minna Bernays.


DA - Na estruturação narrativa de Libido aos Pedaços, há um trunfo: a contraposição dos discursos de Otávio e Larissa arrematando constatações decisivas ao entendimento do leitor. Podemos dizer que há ali uma necessária desconstrução do discurso masculino?


CARLOS TRIGUEIRO - No contexto da história, Larissa e Otávio são muito preparados. Otávio, biólogo e autodidata, tem um discurso, digamos, naturalista, apesar do "machismo" que deixa escapar aqui e ali no seu texto confessional, como na pg. 17, quando diz  "a tendência feminina à traição vem codificada ao acaso no genoma de alguns espécimes". Já Larissa, médica, com doutorado, psicanalista e autora do "best-seller" internacional "Amor em família", expõe sua visão dos relacionamentos incestuosos com base em fundamentos históricos, ambientais e socioculturais. Não houve intenção do autor em desconstruir o discurso masculino, mas deixar a critério do leitor, segundo as informações das duas fontes, quem diz a verdade. Larissa é contundente quando cita o antropólogo Georges Bataille: "A confissão é a tentação do culpado". Mas Otávio, numa sessão com o seu terapeuta, Dr. Guilherme Pessoa, também é contundente ao dizer que aprecia na peça teatral “Fedra”, de Racine, a  frase "Je respire à la fois l'inceste et l'imposture".


DA - Como se deu o processo de construção do "eu" feminino?


CARLOS TRIGUEIRO - Não foi nada fácil. Experientes dramaturgos, cineastas e escritores do sexo masculino podem escorregar na construção do "eu" feminino. De fato, envolveu pesquisas, deu trabalho e levou muito tempo elaborar textos e diálogos segundo a natureza do pensamento feminino que, em geral, é muito mais versátil, volúvel e sagaz do que o pensamento masculino - esse mais focado e lento. Teorias antropológicas supõem que essa diferença remonte aos tempos pré-históricos, quando o homem saía a caçar para alimentar o grupo familiar e precisava de tempo, concentração e precisão para abater os enormes animais. Enquanto isso, as mulheres se sentavam à volta das fogueiras, preparavam alimentos, vestuário, cuidavam dos filhos e conversavam simultaneamente diversos assuntos. Em "Libido aos Pedaços", o "eu" feminino explícito toma apenas 1/4 da narrativa, mas, em verdade, permeia, de forma subliminar, os diálogos entre Otávio e Larissa, e entre outros personagens femininos, bem como suas opiniões, ações, reações e atitudes, quase todo o livro. Sem parecer machista, talvez por isso mesmo, o "eu" feminino de "Libido aos Pedaços" teve várias versões, vários arranjos e ordenamentos durante oito anos até ficar bem delineado. A frase da contracapa do livro diz tudo: "O homem ao despir a mulher pela primeira vez, tem vaga chance de saber quem ela é. Nenhuma depois que a conhece."


DA - Otávio é um personagem emblemático porque carrega em sua sina algo que parece um verdadeiro jogo de traição dos sentidos. O que dizer dessa sensação frequente de sucumbirmos aos desmandos irracionais dos desejos?


CARLOS TRIGUEIRO - Acho que o próprio Otávio, na pg. 39, responde isso muito bem, como biólogo/escritor: "... somos humanos, instintivos, imperfeitos, viscerais e diferenciados entre nossos semelhantes pela genética e pela variedade de combinações neuronais que cada um carrega no crânio - um cassino cerebral." Ou ainda, de modo cínico, na pg. 41: “Então infidelidade não é mero pluralismo sentimental?"

 


Foto: Roberta Giglio


DA - A utilização dos diálogos é aspecto marcante em Libido aos Pedaços, algo que confere ritmo necessário à narrativa e consolida recursos cênicos. Pensaste objetivamente numa aproximação com a vertente teatral?

CARLOS TRIGUEIRO - Somente depois do livro pronto, esse viés dramatúrgico se tornou evidente. Durante a construção do Romance, não houve uma proposta deliberada de aproximação à forma de expressão teatral. Porém, é inegável que a natureza da obra, o tema, o enredo, a trama, diálogos em profusão, e a forma da narrativa contribuíram para dar essa impressão. A frase  "Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o amor", de Nelson Rodrigues, que é a epígrafe anunciadora do Romance já dá o tom teatral da obra. Por outro lado, "Libido aos Pedaços” é um romance confessional, ou seja, uma confissão. Indo ao dicionário, veremos que "Confissão" é o "Ato" de confessar-se. E  o que é o teatro senão "Atos" e "Cenas"? E qual é a medula do teatro? Diálogos, claro. Pois bem, há capítulos inteiros (O XIV e XVI, por exemplo) sem narração ou descrição, só diálogos. Também aparecem no processo narrativo dissimuladas rubricas (como no Teatro) antecipando cenas, e, obviamente, mais diálogos. Sobressai ainda no texto do romance a sequência direta dos diálogos, sempre em itálico, dispensando os verbos explicativos (verbos dicendi) para indicar quem está falando. Sem presunção, creio que esse modo (ou técnica) de narrar  só foi possível graças ao apurado delineamento na construção dos personagens. Por fim, como há mais de uma confissão ("Ato") na obra, talvez a expressão teatral aqui e ali sobrepuje a força narrativa da Literatura.  


DA - Em matéria de criação literária, o que você considera ser o grande desafio de nosso tempo?

CARLOS TRIGUEIRO - Essa é uma pergunta devastadora.  Vivemos uma época de rápidas e constantes transformações ditadas pelas tecnologias e pela cupidez dos chamados mercados que, aliados, aceleram o desmoronamento de costumes, valores culturais, morais e éticos construídos com lições de sofrimento através dos milênios. Goethe dizia que as fronteiras do homem são as coisas. As tecnologias e os mercados estão tentando eliminar esses confins e coisificar o homem. Vivemos sob o signo do "comprar é preciso"! Fala-se hoje que dentro em pouco viveremos em média 150 anos! Não importa se com chips, placas e aplicativos no lugar de ossos, cartilagens e neurônios. Esse pesadelo antecipa reflexões de Sábato, pois, nós, humanos,  resultamos de estranha dualidade: "fome desmedida de eternidade em um corpo miserável e mortal.". Em termos de criação literária, acho que o grande desafio do nosso tempo é dar expressão artística a uma realidade atormentada por fantasmas eletrônicos, vírus virtuais, medos transmitidos à distância, sem a proteção dos sonhos e misticismos que "asseguravam nossa harmonia com o Cosmos" (como também dizia Sábato). Enfim, nossa infelicidade metafísica, nossa consciência das vicissitudes, fraquezas e finitude humanas  - argamassa da expressão artística e literária - estão sendo substituídas pela  inconsciência dos cartões de crédito, códigos de barras, senhas bancárias e embalagens para presente.


DA - Diante do que abordamos anteriormente, podemos crer na Literatura um instrumento de transformação do homem?

CARLOS TRIGUEIRO - Literatura não transforma nada. É somente uma terra encantada, precedida do aviso "É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir". Citação que mencionei na 27ª Leva, extraída do livro "As aventuras de João Sem Medo", do notável escritor e poeta português José Gomes Ferreira (1900/1985). Literatura não transforma nada. É só mais uma indignação como nesses versos do mesmo autor: "Porque é que este sonho absurdo a que chamam realidade não me obedece como os outros que trago na cabeça?" Literatura não transforma nada. É somente um mergulho nos abismos da alma, como nos versos de Camões: "Ouçam a longa história de meus males, e curem sua dor com minha dor, que grandes mágoas podem curar mágoas". Literatura não transforma nada, e bem o disse Roland Barthes: "Literatura é a pergunta menos a resposta." Aliás, o personagem Otávio em “Libido aos pedaços” diz que os escritores, ao constatarem que eram de mentira os seus elos com a imortalidade, entram em desespero, e procuram na alquimia das palavras uma sopa orgânica que os regenere e, ao mesmo tempo, uma fórmula mágica que os imortalize. Literatura não transforma nada.


DA - Acredita que o Brasil é um país de leitores subestimados?

CARLOS TRIGUEIRO - "Para os milhares de brasileiros que podem alcançar os livros, e para os milhões que ainda vão poder" é a frase otimista e ilusória que abre o meu "O Clube dos feios e outras histórias extraordinárias" (1994). Mas o Brasil continua o mesmo continente monumental a transpirar cheiros, multicores, sons, rítmos, recursos e belezas naturais, sensualidade, e a confirmar a expressão (atualizada) de Pero Vaz de Caminha no Ano de 1500: "A terra é boa, em se plantando tudo dá". E do ponto de vista cultural, continuamos Colônia, não mais da Coroa Portuguesa, mas  de uma classe política arcaica, imbatível às direitas, no centro ou às esquerdas, montada num sistema feudal que confunde, a bel-prazer, o patrimônio público com o privado. Assim, como já abordei na minha alegoria "O Livro dos Desmandamentos" (2004), o Brasil não é um país de leitores subestimados, mas de cidadãos vacinados pelos astutos políticos contra "ideias e maus pensamentos", ou seja, educação plena e Livros.


DA - Depois de percorrer tantos caminhos da criação, através de suas obras e outras andanças, quem é, hoje, Carlos Trigueiro?

CARLOS TRIGUEIRO - Depois de perambular mundo afora e alma adentro, de sobreviver a pesadelos e impulsos secretos, de verter no papel as visões infernais de quem escreve com dilaceramento, gostaria de exaurir as ansiedades coletivas do meu tempo, mas, hoje, sou apenas menestrel das minhas  inquietações, imperfeições e fraquezas.






Vento
Desenho: Suzi Carvalho







JANELA POÉTICA (V)



N’NA*


Jorge Otinta



gostaria
que me preenchesse no vazio
e me faltasse no cheio
para que minh’alma
caminhe pela ribalta

das ondas verdes do mar
verdes ondas africanas de varela
ergo ao teu maciço corpo um altar.

dê-me tua mão
(de paixão indelével)


* Termo kriol guineense, que significa literalmente mãe, contudo é usado  fundamentalmente como sendo sinônimo de mãezinha; mas também pode ser metáfora de amorzinho, no sentido materno do carinho que a amada deve ter para com o amado


(Jorge Otinta, tradutor (formação) e escritor singelamente deslizante feito cobra na mata por entre as folhas serenas da língua portuguesa. Nascido na língua de África, Bissau (Guiné-Bissau), cheia de mistérios. Tem textos publicados em revistas, mas ainda não publicou em formato de livro-saber)







Bike
Desenho: Suzi Carvalho







APERITIVO DA PALAVRA


O GIUOCO PIANO DE ESDRAS

Por W. J. Solha






Página 307 de A Rainha do Calçadão, Opus 14, de Esdras do Nascimento (Global, 2011, 421 páginas):

O romancista Roberto de Aquino brinca com as peças de xadrez. Peão quatro rei. Peão quatro rei. Cavalo três bispo rei. Cavalo três bispo dama. Bispo quatro bispo. Abertura Giuoco Piano. A preferida de seu amigo recém-falecido, o pintor Assuero. Mencionada num manuscrito de 1490 e analisada por Damiano em 1512, giuoco piano que dizer jogo tranquilo, mas no entanto leva a um embate violentíssimo.

Curioso que, ao nos entregar o que parece a chave de seu novo romance, Esdras – apesar de sua indubitável (indubitável mesmo) competência - de repente deixa escapar um erro de digitação: giuoco piano QUE dizer jogo tranquilo, seguido do que seria - para ele mesmo, como leitor - inadmissível: as adversativas juntas MAS NO ENTANTO.

Um analista diria que ele vacilou no momento de decidir se nos entregava ou não a síntese de seu livro: jogo tranquilo, que leva a um embate violentíssimo.


A REVIRAVOLTA:

A Rainha do Calçadão segue a regra clássica (da Divina Proporção, ou Seção Áurea) que foi utilizada no Pártenon, na Última Ceia de Da Vinci, no Hamlet, no Couraçado Potenkin:

implicitamente dividido em duas partes, o livro tem a segunda repetindo a primeira, mas em sentido contrário. E o turning point acontece no capítulo 53 (o romance tem 102), exatamente quando o nome Ana Madalena - o da rainha – diz a que veio: a bela ninfomaníaca se arrepende. Ciente de que para seus pecados não há perdão, flagela-se com o próprio terço, martiriza-se terrivelmente, torce os mamilos que quase sangram, grita Senhor, tende piedade de nós. Mas, assim como o Príncipe da Dinamarca – apesar de ter ocasião para isso - não mata, na metade da peça, o rei Cláudio, assassino de seu pai e amante de sua mãe, Esdras adia a solução final, sabendo, tanto quanto o Bardo, que se não fizer isso, acaba com “o espetáculo”: Ana Madalena, a Rainha do Calçadão, aos poucos vai se excitando com a dor, liga pra Roberto de Aquino, dá com a voz gravada da secretária eletrônica dele, ajoelha-se, põe a mão entre as pernas, e se acaricia, com fúria: Perdoai-me, Senhor.


JOGO TRANQUILO:

Esdras não seria o seguro romancista que é, se o seu Opus 14 terminasse no teórico final da primeira metade. Não só pelo que sua trama ainda lhe poderia render. Mas porque o livro soaria falso. Houve um momento em que sua leitura me fez lembrar um dia, no final dos anos 40, começo dos 50, quando – por volta dos dez anos de idade e doido por histórias em quadrinhos - vi uma coleção de revistas românticas de minhas irmãs, Grande Hotel, da Editora Vecchi, com tantos rapazes e moças belíssimos - olhos verdes, azuis e até lilases, como os, raríssimos, de Liz Taylor –– e perguntei:

- Wilma, Wandyr: existe algum lugar em que todo mundo seja bonito assim?

- Tem: lá em Hollywood.

Pois convido o leitor a dar uma olhada nos tipos dA Rainha do Calçadão, primeira parte:

A filha chegou com um rapaz alto, moreno, olhos verdes, camiseta apertada, braços musculosos (pág. 17). Mamãe ainda é jovem, atraente, bonita, está cheia de admiradores (35). Ana Madalena tem rosto bonito, olhos verdes, grandões, lábios grossos, sorriso maroto (...), o pescoço e os ombros são lindos (38). Olhou pra os seios de Lana. Era o que mais gostava no corpo da namorada. (...) nem grandes nem pequenos. Na medida exata. (...) O bumbum também era lindo. (...) Um cara alto, louro, bonitão, de mais de dois metros de altura, de terno e gravata (51). Gregory (...) moreno alto, bonitão (63). Quarenta e poucos anos, corpo de atleta (170). Morena magrinha, de olhos verdes e cabelos compridos, uma fulana como essas que malham diariamente nas academias (....) Corpo maravilhoso, uma bundinha de nada, mas duríssima, e peitos pequenininhos, bem firmes. (178).

Hoje minhas irmãs diriam:

- Se esse tipos existem? Na novela das oito!


PREOCUPAÇÕES ESSENCIAIS: SEXO E GRANA

Pág. 38: Vai a todos os lugares grã-finos, está sempre bem acompanhada, gente de grana (...). O certo é que Ana Madalena levou um bom dinheiro, ficou com o apartamento da rua Redentor, arrumou emprego público, desses em que a pessoa não precisa ir, ganha um brutal salário. 129: Com o salário do diário da zona sul, Otávio não poderia mesmo ficar pagando aqueles jantares, havia certo constrangimento e, como ela recebia boa mesada dos pais e tinha algum dinheiro na poupança, era natural que pagasse a sua parte. 26: No Brasil tem dois milhões e seiscentas mil mulheres a mais do que homens. (...) Aqui no Rio estão sobrando 362.020 mulheres. 17: Renato decidira sair de casa no fim do mês, tão logo recebesse da Companhia o salário e algumas comissões atrasadas. 27: Que boca bonita tem esse cara! Estou toda arrepiada. Santo Deus! 21: É um dos chefões da Companhia, mas não tem grana. No início eu pensei que ele queria se encostar na mamãe. Tua mãe é rica? Ela tem doutorado, ganha direitinho como professora na Unibarra, meu pai dá uma boa mesada, o apartamento é nosso, não temos grandes problemas 34: Às vezes eu penso que o jogo é simples, mas as mulheres gostam de complicar. Você me dá sexo, eu lhe dou um pouco de carinho e tomo conta de você. 26: Meio velhote, 42 anos de idade, divorciado, sem filhos, belo apartamento na Lagoa, casarão em Angra, automóvel importado. 37: Aconteceu. Eu estava nervosa, sempre é assim na primeira vez, numa certa hora, entusiasmada, deixei de cerimônia e me soltei. Eu mesma fiquei espantada com meus gritos. Biguá! Meu macho, meu amor. Vai, Biguá! Vai! Vai! Não para! 33: Enquanto ela, coitada, vive do salário da Seguradora e de ajudas eventuais da mãe e do pai. 43: Qual é o problema de transar com um amigo e depois com um amigo desse amigo? 37: Daqui a pouco sai o contrato com a tevê, eu não vou correr esse risco. 50: Você leu o romance do Roberto de Aquino? Tem uma ricaça (...) que quando chega o orgasmo grita enlouquecida: Tegucigalpa! Tegucigalpa!


SÍNTESE:

127, Raquel:

A vida de uma mulher é bem mais simples. Quando tem quinze, dezesseis anos, seus problemas se resumem em como e com quem perderá a virgindade; e, depois, como arranjar dinheiro para ir viver sozinha num apartamento longe dos pais.

Pág. 149:

Estaria ficando apaixonada pelo Renato? Ana Madalena sabia que ele há muito tempo tinha caso com Luciana, mulher do Maurício.


A MISÉRIA MORA LONGE:

Pág. 222:

As crianças moribundas da Somália, que milhões de espectadores olhavam avidamente na televisão, não estão mais morrendo? O que foi feito delas? (...) A Somália ainda existe? Será que existiu mesmo, algum dia? Não seria apenas o nome de uma miragem?


DESCRIÇÕES E DIÁLOGOS:

Lembro-me de uma grande lição de Lukács, em que – servindo-se de decisiva corrida de cavalos, que marca tanto Madame Bovary como Ana Karenina – mostra-nos que Flaubert, não muito feliz, nisso, descreve o hipódromo, depois narra o drama, enquanto Tolstói, magistralmente, descreve-o enquanto narra. Esdras abre seu romance aprimorando o autor russo, nesse sentido, fazendo – de cara - com que Luciana entre na própria cozinha, que ele não nos diz – explicitamente - como é, adiantando-nos, apenas, que a personagem fica sabendo, por um bilhete da filha, pendurado na porta da geladeira, que a moça acabara de deixar o apartamento pra viver só, com o que as pernas dela tremem... e ela vai pegar uma garrafa de uísque.

É incrível como ele consegue nos pôr um cenário em frente, sem se referir a ele. Na página 318 temos outro exemplo:

Cheio, o Papa Hemingway. Rapazes com jeito de intelectuais, professores de faculdade, meninas fazendo pose de gênios ainda não reconhecidos, quarentonas com roupas estranhas, simulando descontração, velhotes bem conservados, alguns estrangeiros e muitas, muitas garotas de programa.

Raramente Esdras faz uma descrição de fato. E, quando a faz, sua intenção é evidente. Dedica metade da página 53 para nos mostrar o apartamento de Amaro, que dá à Paula a impressão de estar entrando no cenário de um filme de ficção científica, mas que faz a mãe dizer, na página 241: nunca vi nada mais cafona.


NOVELA DAS OITO:

O sujeito mais bem sucedido, no livro de Esdras do Nascimento (que é doido por xadrez, Bach e tênis) é o romancista Roberto de Aquino (doido por Bach, tênis e xadrez). O atestado máximo disso é que a nova novela das oito é adaptação de uma de suas estórias.

Pág. 245:

Novela das oito. Lana não perde um só capítulo. Adora. Bobagem pura. A grande vantagem é que pode passar dias sem ver. Quando volta a assistir, é como se não tivesse havido interrupção. O desenvolvimento das tramas é lento, repetitivo, primário, feito de maneira idiota. Mesmo assim...

286:

Raquel gosta de assistir às novelas. Por mais bobas que sejam, são sempre benfeitas, lindos os cenários, maravilhosas as mulheres, tesudíssimos os homens. E não precisam ser vistas todas as noites. Se alguém não puder assistir a três, quatro capítulos, não perde nada. As ações se desenvolvem tão lentamente, que é impossível perder o fio da narrativa. Daí, talvez, o seu sucesso.

Exatamente assim é a “primeira parte” do romance de Esdras. O desenvolvimento das tramas é lento, repetitivo, primário – só não digo que feito de maneira idiota. Pelo contrário. Repetindo: as ações, aí, se desenvolvem tão lentamente que é impossível perder o fio da narrativa, mesmo que pulemos algumas páginas dela. Daí as opções cortazarianas oferecidas na abertura do volume: Sete maneiras de ler o romance. Aliás: oito.

Quando, no entanto, eu me perguntava É possível tanta superficialidade? Esdras vira a mesa. E cresce, fazendo crescer, também, a parte já conhecida, por lhe dar sentido. Ou seja: ele faz como El Greco no Enterro do Conde de Orgaz, em que a metade inferior é nitidamente Ticiano, a de cima, Tintoretto. Embora a relação, no caso, esteja menos terra-céu do que – igual ao jogo da amarelinha – céu-inferno. É como se ele, depois de nos mostrar a clara Holanda setecentista de Vermeer, nos exibisse a tenebrista, de Rembrandt. Ou sucedesse a Rússia vista por Tolstói pela de Dostoiévski. Porém, tudo com situações que tornam Rembrandt e Dostoiévski ingênuos, vide cena de Raquel com seu vibrador (pág 235), o suicídio de Valdice (238), o de Chico (irmão de Lana) por causa do casamento do amante dele, o Narigudo (349), o fim de caso das lésbicas Laura e Luciana, esta mãe de Lana (295), o fim do caso de Lana com Otávio (Não aguento mais essa tua sacanagem de viver se encontrando com outras mulheres e me fazer de pateta) (298), a cena em que Flávio diz pra Raquel que a mulher dele já sabe de tudo (Teve um ataque de raiva, quebrou a televisão, os lustres da sala, derrubou as cadeiras, fez um estrago daqueles no apartamento, pegou as crianças, foi pra Florianópolis) (309). A cena dura e crua em Luciana conta tudo pro Renato. (Ele: Você bebeu, meu amor? Não bebi porra nenhuma! A Laura é minha amante, seu idiota, seu hipócrita.)  (323). A cena em que Ingrid se assume puta e que com isso está se dando muito bem. (Seria tolice se deixar levar pela soberba). (329). A sequência em que a mesma Ingrid vê seu cliente Lustosa ter o carro trancado e uma loura meter-lhe cinco tiros (Minha vida virou um inferno) (338).

E passamos a crer que estamos, realmente, lendo um romance carioca.

Imagine o que Esdras faz com a Rainha do Calçadão!

Escatologia pura. E ele põe aí Nelson Rodrigues no bolso.

E tira sua conclusões.

Na página 317, Paula diz:

- Nas quadras de tênis não há muitos lugares onde as bolas possam se perder, mas sempre desaparecem. É a vida delas. Vivem querendo se perder. São como as mulheres.

Roberto de Aquino, 346:

- É por isso que eu escrevo: para tirar meu rabo da reta, para sobreviver neste asilo de doidos que é a cidade do Rio de Janeiro.

Lana, 349:

- E Deus, hein? Como entrava nessa história? Seria Deus, em essência, uma entidade sádica?


CLOACA MÁXIMA:

Há uma longa e detalhada descrição de Esdras, na pág. 395, uma reportagem lida sobre a obra que o belga Wim Delvoye (personagem verídico) expõe no New Museum of Contemporary Art, Nova York: Cloaca nova e aperfeiçoada, máquina de onze metros de extensão, dois de altura, 76 cm de largura, que transforma comida em fezes, que são vendidas em jarros, mil dólares a unidade.

421:

Todos nós devemos parecer ridículos do ponto de vista de um observador imparcial. E nós todos, inclusive o observador imparcial, devemos parecer ridículos quando observados pelas montanhas. Ou pelas nuvens. Ou pelo gato que ronrona no nosso colo.

Romance doloroso, esse, do Esdras.



(W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal. Recentemente, publicou seu mais novo romance, Arkáditch, pela Ideia Editora)






Carnaval
Desenho: Suzi Carvalho






 
JANELA POÉTICA (VI)

Graça Pires


A lua quase cheia acentua o ladrar dos cães
em pátios onde crescem desordenadamente as giestas.
Um duplo estremecimento lateja nos espelhos
como sombras insinuadas no eixo da luz,
a mesma luz que adivinhamos nas searas,
nas estrelas, nos girassóis de Van Gogh,
no post-it colado na mesa a dizer amo-te,
no risco incontornado dos relâmpagos.
Há um espesso ouro despenhado sobre as árvores
porque o outono se detém na inclinação dos dias
e a colheita nos devassa a intimidade dos frutos.



(Graça Pires nasceu numa cidade litoral portuguesa – a Figueira da Foz – onde aprendeu a amar o mar e os barcos e com eles as palavras envoltas na emoção de viver. É poeta e sabe que só a poesia pode absolvê-la de todas as fragilidades)

  





Momento
Desenho: Suzi Carvalho




 


CICLO CURTO

Larissa Mendes


Sabão de côco para minha doçura [você pedra, eu só o pó], alvejante para sua altivez [será mesmo que algo Resolv?]. Quem dera se você me amasse ante(s), agora e depois. Os sentimentos suspensos, pendurados num varal. O prendedor denuncia as marcas que você deixou: nada de amor à queima-roupa, apenas o protagonista de uma quase-história desbotada e encolhida.

Minha primeira lembrança é de você flutuando no hall de um teatro, em busca de seu personagem blasé. Decoro as falas, mas sempre erro o (con)texto. Depois de uma breve conversa de laboratório, nossa carona. Você me sugeriu o banco de trás. Suas pernas eram longas demais para viagens curtas. O rádio sintonizava nossa falta de frequência. No restaurante, sem querer, sujo o vestido de molho de tomate; apático, em sua deixa, você fala em política [penso: minha gula e seu jejum, seu partido e meu coração].

Da última vez que nos vimos você disse que visto daqui, o céu é mais bonito, de um azul-anil-marinho-royal-bic.

Centrifugo a solidão quarando as últimas mágoas. Um vento forte e negro seca minhas lágrimas. Mero pretexto: nunca chegamos a lavar nossa roupa suja.



(Larissa Mendes não é assim uma Brastemp: desconfortável no papel de dona de casa, gosta de ciclos enxutos, é contra a homofobia e busca uma palavra brilhante ou um verbo fofo para defini-la)







Retrato de alguém
Desenho: Suzi Carvalho







JANELA POÉTICA (VII)



CELLO-INFERNO
 

Neuza Pinheiro


Posso pousar meus olhos nesta folha em branco
e assim permanecer
indefinidamente

posso roçar meus dedos
a palma em movimento
va-ga-ro-sa-mente
e isto me lembra o mar

Posso correr as unhas pela folha em branco

e por estar sobre outras tantas
- dez, calculo –
metade apoiada sobre um livro
metade  sobre o cobertor
a me aquecer as pernas

e quem sabe
pela velocidade crescente do gesto
ou pela umidade da chuva

me lembra um tigre,
o   correr   de   unhas  pela   folha   em   branco

um tigre acuado
que ex
mURRA



(A paranaense Neuza Pinheiro é cantora, compositora e poeta. Participou da chamada Vanguarda Paulista, com Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, em festivais e em trabalhos como o cd “A saga de Clara Crocodilo” e “Beleléu, Leléu, eu” (Caixa Preta). Em 2007 lançou o cd autoral OLODANGO. Pele&Osso, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura poeta Lúcio Lins (FUNJOPE-João Pessoa-2008), é seu primeiro livro impresso. É socióloga, educadora e vive em Santo André-SP)





DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Fabrício Brandão

  
A Pele que Habito (La piel que habito). Espanha. 2011.






Qual a pele que, de fato, nos serve de morada? Eis uma indagação, no mínimo, complexa de responder, como também complexo é o universo através do qual Pedro Almodóvar lança as bases de sua mais recente produção. Se a solução para tal questão parece muito pouco plausível de acontecer na vida real, nem de longe surge pronta na película recém-lançada. Pois então, esqueçamos temporariamente a profusão de cores quentes tão característica da cinematografia do diretor espanhol e passemos a mergulhar num ambiente cênico, no qual certas hesitações da condição humana reviram recantos secretos de nossos incômodos. 

A natureza sombria das coisas, inclusive do desejo, toma conta de toda a trama centrada em A Pele que Habito. Na verdade, Almodóvar subverte o seu modus operandi e aposta com ousadia numa narrativa que junta os cacos daquilo que também podemos ser. Aos poucos, uma horda de segredos familiares desponta intensa e misteriosa perante a trajetória do protagonista, o cirurgião plástico Robert Ledgard, muito bem interpretado por Antonio Banderas. Robert, além de ser médico, é um renomado pesquisador especializado em reconstituições de pele. E é justamente tal condição que o atira rumo ao avanço obsessivo dos seus experimentos, buscando ressuscitar um passado destroçado por tragédias íntimas. No meio disso tudo, um sentimento frio impulsiona os ímpetos profissionais do cientista: ir até as últimas consequências para vingar o abuso sexual sofrido por sua filha.

Não há dúvida de que estamos diante de um thriller cujo eixo central está na revelação maior do filme, ou seja, descobrirmos o que está por trás da mente de um personagem profundamente atormentado pela carga de seu conturbado universo familiar. A perspectiva do “cientista louco” tida em Robert é apenas um subterfúgio para o esclarecimento crucial da trama, mostrando-nos, ao final, um emaranhado de razões que se explicam pela conduta míope dos personagens centrais da obra.

A Pele que Habito não é apenas um filme feito de revelações pungentes. Ao seu modo, Almodóvar nos propicia um intrigante painel de assuntos que vão desde a abordagem sobre a questão dos gêneros até certos arremates advindos da psicanálise.  Mesmo com um viés mais obscuro, quiçá noir, o diretor arranja tempo para revestir a obra com um comedido toque de erotismo, conferindo à sexualidade uma perspectiva menos usual ao que costuma nos apresentar em sua filmografia. Por tamanha ousadia na proposta do roteiro, é possível considerar a película como um marco na carreira do espanhol.

Não seria precipitado afirmar que estamos diante de uma obra de difícil digestão. A capacidade que há ali de desafiar as percepções mais imediatas e transformar tudo num cenário envolto em mistérios e limitações da condição humana é algo marcante. Durante o filme, não existe um só instante em que não sejamos provocados. Importa avaliar que tipo de personagem encarna nossos dias de então.  Certamente, a pele que nos cabe vem transmutada de seus múltiplos caracteres. Se projeção, sublimação ou pura transferência, o tempo talvez possa dar pista do que inscreveu em nós, seres inconfessavelmente duais. 




 
  


 


JANELA POÉTICA (VIII)


FOGO FURIOSO

Wilton Cardoso


a juventude
todas as carnes tesas
todas as peles lisas
toda desejo e impulso
tudo pulsa e amanhece
em luz e frescor
a juventude é bela
como nenhum deus foi
e como é feia a velha
pele descamada de um corpo
quase morto
mas
como é bela a feia
pele povoada por profundos
sulcos e barbas grisalhas
não pelos pelos nem pela
pele em si mas pelas marcas
da fúria do movimento
imperceptível de um corpo
que (ainda) vive



(Wilton Cardoso mora em Goiânia-GO. É poeta e ensaísta e publica suas obras nos blogs minutos de feitiçaria e vida miúda)

 





Dança
Desenho: Suzi Carvalho






* Um ambiente onírico impera nos desenhos da paulistana Suzi Carvalho. A utilização das cores e a manipulação das formas demarcam de modo especial a sina humana, retratando seres e lugares com olhares de poesia e encantamento.  Fragmentos de corpos vêm se juntar a uma noção descontinuada do tempo e do espaço. 


Quando não está envolta na confecção de suas esculturas, Suzi confessa que, de modo paradoxal, gosta de desenho e pintura, ofícios que lhe propiciam uma sensação de catarse derivada especialmente dos sonhos. Apesar de ter se graduado em Teatro e Belas Artes, acredita ter nascido escultora, pois, desde tenra idade, já apropriava do ato de modelar as formas simples das coisas.


 
publicado por Fabrício Brandão
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