31 de ago. de 2009,14:30
TRIGÉSIMA SEXTA LEVA




A Mão Esquerda de Mamãe
Pintura: W. J. Solha







CICERONEANDO



O que somos afinal, pós-modernos ou crentes de um mundo absurdamente sem nexo ou qualquer tentativa plausível de explicação? Muitos tentam definir o instante em que vivemos, seja ordenando um novo ciclo de coisas ou simplesmente atribuindo a tudo um estado de crise preocupante. De fato, não faltam análises a esse respeito e frequentemente atribui-se ao alvoroço um status de paradoxo reinante. Conflitos à parte, talvez uma falsa sensação de liberdade artística mexa com as nossas cabeças a ponto de acreditarmo-nos verdadeiramente isentos das amarras. Somos reféns de estruturas tradicionalistas ou transformadores daquilo que digerimos através de todos os poros possíveis? É salutar ter nas inquietudes um instigante elemento de provocação criativa. O resultado? Este vem em forma de epifanias pessoais, cada uma delas caminhando para, nalgum momento, convergir em pontos que nos tornam seres derivados da mesma substância. Nessa perspectiva, a Leva de agora expõe um pouco dessa reflexão tanto nas telas quanto nas falas do autor e multimídia W. J. Solha. Habita as nossas entrelinhas a tênue matéria da delicadeza nos poemas de Adriana Antunes, Carolina Barreto, Elizabeth Hazin, Inês Lourenço e Prisca Agustoni. Em meio às nossas neuroses e miopias da alma, traduzimo-nos em prosa por Maurício de Almeida e Leonardo Villa-Forte. A lúcida crônica de Celso Serpa nos incita a olhares menos ingênuos em torno da figura controvertida de Wilson Simonal. Nos recantos cinéfilos percorridos por Marcos Pasche, um convite às imagens de Se nada mais der certo, filme de José Eduardo Belmonte. Ofertamos música pelos ouvidos de Larissa Mendes, bem como outros tantos signos que por aqui passeiam. Eis a Trigésima Sexta Leva!




*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.





JANELA POÉTICA (I)



PRINCÍPIO DO FIM


Elizabeth Hazin



Por que nada permanece inteiriço
em sua casca,
protegido?
um dia racha
e pela fenda
passam peixes e navios
fantasmas que na noite ganham vulto:
fogo, chama, fumaça


nada permanece inteiro
tudo se esgarça
assim é o intervalado texto do destino,
forrando a mesa


por que não se estende eterno,
se é tão fino?


por que não dura a inteireza?



(Elizabeth Hazin (Recife-PE, 1951). Publicou Poesias (1974), Verso e reverso (1980), Casa de vidro (1982), Arco-íris (1983), Espelho meu (1985), Martu (1987) e O arqueiro e a lua (1994). Em 2006, a Vieira & Lent reeditou uma segunda edição — revista e ampliada — de Martu, livro vencedor do Prêmio Rio de Literatura (1986). No prelo (7Letras), seu mais novo livro, escrito a quatro mãos com Davino Sena: Lêgo & Davinovich. Já ensinou nas universidades federais de Pernambuco e Bahia. Atualmente, é professora de Literatura Brasileira na UnB - Universidade de Brasília)










Ei!

Pintura: W. J. Solha










MONÓLOGO A DOIS


Leonardo Villa-Forte



Ele começou me dizendo que estava tudo interligado: o potro, a terra, a saia, o morango e tal; porque tinha sido tudo muito bem pensado, a relação das cores, as roupas, a separação dos cômodos e inclusive o jeito que o cara coçava a orelha, uma pequena homenagem à sua ex-mulher que, apesar de distante, estava inegavelmente presente em tudo que o cercava; e então, pelo fato de estarem todos os elementos unidos ali, havia um caráter de urgência no ar e a congruência das coisas provocava uma rajada de poesia inescapável à percepção de qualquer um que fosse, censurando todo o cuidado técnico que poderia haver ali e deixando apenas o odor de atmosfera sagrada que faria com que um segundo de desatenção se tornasse a mais condenável das heresias, o que fazia de mim uma terrível pecadora já que por vezes não consegui me concentrar, mas não mencionei isso na conversa, mais por não querer cortar o fluxo da sua verborragia que parecia lhe fazer tão bem do que por temer uma exaltação da minha insensibilidade ou ignorância que, caso realmente se manifestassem, eu preferia guardar pra mim; e aí continuei ouvindo sobre a displicência da namorada do cara ao deixar sua bolsa em cima da mesa de madeira e como isso era uma oposição à notável obsessão dele, mas que o modo falsamente ocasional como ela passava o batom em sua boca escancarava o quanto ela queria que ele fingisse, e fingisse bem, para que ela quase acreditasse cegamente que ele não dava a mínima para o que ela fizesse ou dissesse, que sua única ocupação ali era manter a ótima performance na cama e nada mais que isso, e era por isso que enquanto ela passava o batom, ele não olhava, e fingia que aquilo não lhe importava, e que se ele virasse o olhar ela talvez fosse capaz de acertar um tapa na cara dele por interromper tão perfeito seguimento de minuciosa e imprescindível cadência nos atos de sedução, e então ele disse que sim!, que isso seria perfeito porque só mesmo um tapa na cara para retomar todas as possibilidades anteriormente presentes, eventualmente desviadas por uma disritmia inesperada, e eu tive que pedir alguns segundos para pensar no que ele queria dizer com isso, mas antes que pudesse encadear quaisquer pistas de compreensão na minha cabeça ele voltou a vomitar que o desespero do cara em sair correndo atrás do potro que entra no mato e que volta carregado em seus braços sujos de terra vermelha estava ali somente para ser comparado à reação forçadamente complacente do mesmo quando a mulher ameaça também fingidamente um adeus para sempre, e que isso mostrava como o homem tem que domar seus impulsos e tornar suas atitudes mais respeitáveis frente a uma política comum quando se relaciona com outras pessoas, mas que quando se relaciona com a natureza sem dissimulações do mundo animal, entrega-se sem o menor sinal de reprimenda interior a ponto de chafurdar na lama mais negra e grudenta, o que nos remetia à beleza primitiva dos atos impensados e de puro reflexo, sejam eles nascidos das honras e hábitos ou do simples instinto, mas que no final das contas, hoje em dia, todos se confundiam como irmãos gêmeos que usam a mesma roupa e penteado, pois a ele já incomodava o modo como as pessoas atualmente competem entre em si em qualquer esfera da vida, seja na família, no trabalho, na amizade ou nos relacionamentos, como se isso fosse a mais natural das posturas, incluindo aí, como fator ainda mais irritante, as bases supostamente científicas de teorias relativamente influentes de nossa época, que sustentam a atitude competitiva como básica e fundamental da raça humana, dada sua inegável descendência dos macacos e chimpanzés, entre outros selvagens que brigam entre si tanto pelas fêmeas do grupo como pela extensão de seu poder sobre determinada região; e foi aí que eu me perdi, porque quando ele falou macacos e chimpanzés, as imagens desses animais me vieram tão nitidamente na cabeça que eu fiquei bastante confusa e não consegui mais atinar para qual era a relação disso tudo com as intenções humildes e puramente simpáticas da minha pergunta inicial, o que me fez, comprovando a minha captação mental de algo que ele havia dito, meter-lhe um tapa na cara, na esperança de que a ocasião tomasse rumos mais amenos após lembrar-lhe: eu apenas perguntei o que você achou do filme.




(Leonardo Villa-Forte descobriu o Brasil. Mentira, ele só descobriu que gosta de escrever, mas adoraria descobrir um novo país! Até agora se formou em psicologia pela UFRJ e estudou literatura espanhola na cidade de Salamanca. Trabalha com edição de livros, escreve contos e roteiros, tendo recebido Menção Honrosa no Prêmio Off-Flip 2009 pelo seu conto "Monólogo a dois". Nascido em 1985, mora no Rio de Janeiro)










Lady Macbeth

Pintura: W. J. Solha










JANELA POÉTICA (II)



ANTROPOFAGIA


Carolina Barreto



A ansiedade

consome

e a matéria

não permanece

intacta.


O Intangível

afeta o sólido

Xxx e o sólido corrompe-se

Xxx no próprio.


E disso nada

resta. Há apenas

uma

hipocrisia

disfarçada de

medo.




(Carolina Barreto lançou, em parceria com André de Freitas Sobrinho, o livro de poesias Dois (Não Pares). Nasceu em 1985 em Juiz de Fora e lá reside. É mestranda do PPG- Letras Estudos Literários. E-mail: carolb.ufjf@gmail.com)







OUVIDOS ABERTOS (I)


Por Fabrício Brandão



MARCELA BELLAS – SERÁ QUE CAETANO VAI GOSTAR?





É preciso respirar, pois, para poder deter tudo aquilo que a existência insistentemente entrega ao nosso deleite. No movimentar dos instantes, resiste o prazer da descoberta, daquilo que pode ser escrito de modo peculiar nas páginas nossas de cada dia. É preciso reiterar, infinitas vezes, coisas que já apregoamos por aí, mas nem por isso o anúncio de novos tons perde a sua importância.


Existe uma Bahia de todos os Santos. Melhor ainda, existe uma Bahia de todos os Sons, misto de credos e cantos que norteiam escutas para todos os rostos. Em meio a essa profusão de manifestos tão típicos da pluralidade das terras de Caymmi, a moça da vez desfila suavidade e modernidade em seu canto de estreia. Marcela Bellas surge assim como um desembrulhar de sentidos guardados sob os cuidados valiosos da boa música. Dona de uma voz carregada de personalidade, a baiana dá as caras num disco completo, seja pela qualidade das composições, seja pelas sonoridades que pontuam o repertório.


Será Que Caetano Vai Gostar? num primeiro momento poderia até soar como uma espécie de provocação ao gênio inconteste do aclamado compositor baiano. No entanto, a força com que as coisas acontecem no disco afasta os “achismos” de plantão e nos arrebata ao sincero caminho cuja tez abraça o corpo da metáfora embutida no batismo da obra. Há uma oferenda compartilhada em cada faixa do álbum, certeza de que, para cada sopro vivido, o encontro com a delicadeza se faz mister. A substância cultivada pelos quatro cantos do cd ganha força em canções como Me Leve, na lúdica Mamãe Sereia, em Defeito, no suingue de Esse Samba, Por Outro Lado e nos signos derradeiros de Por Favor. Chama atenção a belíssima interpretação de Bloco do Prazer, antológica e carnavalesca composição de Moraes Moreira, onde Marcela despeja todo o vigor sensível de sua expressão. Os arranjos dialogam com gêneros como o pop e o samba de roda do Recôncavo Baiano, dentre outros, demarcando a qualidade da produção musical. Se Caetano vai gostar, eis uma vaga questão. A melhor resposta vem com o desenho que cada um faz de suas mais misteriosas e íntimas leituras.










Guernica

Pintura: W. J. Solha









JANELA POÉTICA (III)



Coloridos registros


Adriana Antunes



A agulha perfura

poros-pontos

agudo nascer

da flor

de um metal

e agora

como ela

preciso mais do que água para sobreviver.




(Adriana Antunes é graduada em jornalismo, especializada em Literatura Infanto-juvenil, mestre em Literatura e doutoranda em Letras. É autora do livro de poesias visuais “http://temporario”. Tem 31 anos, é ruiva, olhos verdes, sardenta e canceriana, infelizmente, não passa de 1,55 de altura e 47 quilos)










Mulheres

Pintura: W. J. Solha









SIMONAL, O ENGODO


Por Celso Serpa



Movido por curiosidade histórica, fui assistir, no Espaço Unibanco, em Salvador, o documentário “Ninguém sabe o duro que eu dei”, sobre a vida do cantor Wilson Simonal.

Tendo como um dos diretores Cláudio Manoel (do Casseta e Planeta) e produção da Globo Filmes, o filme apresenta-se como o resultado de 3 anos de pesquisa, entrevistas e montagem.

O produto final, de boa qualidade, sobressai no gênero documentário, gênero este que graças a Deus tem tido uma excelente produção quantitativa e qualitativa no Brasil. Isso é ótimo num país sem memória (principalmente política) e onde uma grande quantidade de beócios vive alardeando o dito “eu nem lembro o que comi no café da manhã”, como se o interesse pelo registro, memória e história fosse uma qualidade e não uma séria falha de caráter.

Já tinha lido anteriormente uma entrevista do diretor Cláudio Manoel, na Folha de São Paulo, onde o mesmo dizia que tinha sido atraído pela “lenda urbana” sobre Simonal, um cantor extremamente popular no Brasil na década de 60 e que, a partir de uma denúncia de vinculação ao sistema repressor da Ditadura Militar (no caso o DOPS, na qualidade de informante) passa a ser considerado um “morto vivo”, situação que vai perdurar até a sua morte por alcoolismo em junho de 2000, meses depois de fazer uma apresentação melancólica para uns vinte pinguços, no Pelourinho, em Salvador.

Até
entrar na sala de exibição, não tinha lido nenhuma crítica ou resenha do filme, mas tinha ouvido comentários elogiosos de alguns amigos cinéfilos de que o filme havia procurado e conseguido uma total isenção de julgamento e que cabia a cada expectador formular o veredicto : culpado ou inocente?


É interessante esclarecer (e isso é mostrado no filme) que a acusação de Simonal ser um dedo-duro partiu do próprio porão da Ditadura (o DOPS), onde trabalhava um segurança do cantor e outros amigos, todos envolvidos no episódio do seqüestro, espancamento e tortura do contador de Simonal, a mando do mesmo.

Posteriormente à denúncia, declarações de Simonal elogiando os militares, a ditadura e alardeando um suposto “complô esquerdista” contra a sua carreira e pessoa, iniciaram um processo de isolamento do mesmo com a mídia, o público e a classe artística que o filme mostra em toda crueza.

Aí começa o babado (como diria a Imoderada e Imorredoura Moderadora dessa lista): em nome de produzir informações mais acessíveis para o público, o documentário não detalha nem explica esse processo. Onde estavam no momento da denúncia Pelé, Miele, Chico Anísio e outros que fazem a defesa de Simonal no filme, quando os fatos aconteceram? Exceto o músico Paulo Moura, ninguém menciona as palavras covardia e omissão. Através de hábil manipulação de relatos e mensagens, o filme busca impor um consenso fácil ao espectador sobre a injustiça da situação (até aí, tudo bem) feita por intelectuais e artistas (êpa!!!) a um cantor negro de origem pobre. Uma suposta neutralidade precisa ser mostrada (e o espectador deve ser convencido da mesma) para que o produto “isento de impurezas” possa ser melhor absorvido. Com isso, a verdade, pilar da compreensão para o espectador, fica comprometida pelo conceito de “verdade” preconizada pelo diretor.




Foto: Divulgação




Sobre a história de Wilson Simonal, existem alguns trabalhos recentes na área acadêmica. O primeiro deles chama-se “Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga” (nome de um disco de Simonal) e é a dissertação de mestrado do Prof. Gustavo Ferreira. Nesse texto, o autor defende que a Pilantragem (conceito indefinido entre a música e a postura pessoal de Simonal) “foi um movimento estético concorrente do tropicalismo” (p.218) e que “direitas e esquerdas se uniram contra o bode expiatório perfeito” (p. 209). Ou seja, Simonal teria feito uma série de bobagens que teriam levado as gravadoras, os produtores, o público e os artistas a concluírem pela sua culpa e o condenarem ao silêncio.

O segundo trabalho possui o igualmente curioso título de “A pérola negra no ventre da ostra”, e constitui também uma dissertação de mestrado, de autoria de Adriane Hartwig. Nesse trabalho, ao contrário do anterior, a autora desconstrói a ideia da Pilantragem como projeto estético, mostrando Simonal e a Pilantragem “como representações da memória de um certo tempo, tanto para o público, quanto para a mídia e as gravadoras”. Este trabalho está centrado na ideia de Simonal e suas relações com a chamada Indústria Cultural, e prova que o declínio do mesmo como artista (queda de vendagem dos discos, perda de contratos etc) é anterior à denúncia do mesmo como informante.

Mas onde eu quero chegar com tudo isso? O que eu quero dizer é o seguinte: não obstante a qualidade técnica do filme (Rede Globo), boa direção de imagens etc o filme é um engodo, uma fraude, pois a questão de Simonal ter sido ou não um informante não mais existe ou persiste. E não existe por um motivo muito simples: com a abertura dos arquivos do DOPS, foi localizado um documento, datado de 24.08.71 e intitulado “Termo De Declarações Que Presta Wilson Simonal de Castro”, onde o próprio Simonal declara, dentre outras coisas, “cooperar com informações que levam essa Seção (o DOPS) a desbaratar movimentos subversivos no meio artístico”. Esse documento está citado na dissertação do Prof. Ferreira na página 175 e transcrito nos anexos do seu trabalho. Como o seu tema não versa sobre a culpa ou inocência do cantor, o autor não se detém na análise e discussão do mesmo.

Em suma: mais uma vez, um grupo de mentecaptos midiáticos tenta impingir a um público inocente a existência de dilemas ou questões absolutamente falsas e criar polêmicas bizantinas. A verdadeira questão é: por qual motivo Simonal, de livre vontade e declaração, lavrou aquele Termo? Por que se apresentar espontaneamente como delator numa época que isso poderia significar cadeia, tortura e morte para os delatados? O documentário não trata dessa questão e insiste no golpe midiático.

Wilson Simonal definia a Pilantragem como “um descompromisso com a inteligência”. A sua história, (narrada com riqueza de detalhes nos referidos trabalhos) mostra que ele foi coerente com esse conceito na vida e na morte, não obstante o seu talento como cantor. Ao seu enterro estiveram presentes menos de trinta pessoas. Lá não estiveram os que o defendem no filme: Miele (ex-empresário), Pelé (amigo e companheiro de farras), Chico Anísio (ex-escritor de textos humorísticos) e Tony Tornado. Um único artista compareceu: Jair Rodrigues, o mesmo que, quando da morte de Elis, será o primeiro a afirmar que a mesma morreu de overdose de cocaína e que ameaçará divulgar uma lista com os nomes dos artistas que “cheiram”, iniciando assim uma carreira (sem ironias) de delator. Faltará coragem a Jair Rodrigues para divulgar a tal lista e assim interromper sua promissora carreira de dedo-duro. Mas isso é outra estória...




(Celso Serpa vive em Salvador, Bahia. Aquariano típico, acredita que todas as expressões artísticas, em especial o cinema, a literatura e a poesia, são instrumentos efetivos de transformação e de expressão da verdade e da justiça)








Carnavalização da Vida Cotidiana

Pintura: W. J. Solha









JANELA POÉTICA (IV)



AOS INTENSOS*


Inês Lourenço



Eles despovoam as superfícies e inventam

a geometria dos espaços, confundem

a pele com o Cosmos, nos jogos de água

do fogo e da madeira.


Desistiram de acreditar no fim

e no princípio

porque o tempo é eterno, e a pulsação

é teia de luas contínuas

e cegueiras vivas de encarar o sol.


Nativos da partida, gastam os passos

até o próximo éden,

onde eva, adão e a serpente

serão provavelmente desconhecidos.



*Poema integrante do livro Um Quarto com Cidades ao Fundo




(A poeta portuguesa Inês Lourenço nasceu no Porto. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Universidade do Porto). Entre os livros de sua autoria, estão: A Enganosa Respiração da Manhã (Asa editores, Porto, 2002) e Logros Consentidos (&etc, Lisboa, 2005).









Prisão

Pintura: W. J. Solha









PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Fabrício Brandão



Em boa medida, talvez o usufruto da inquietude combinada às observações atentas ao mundo circundante consolide-se como sendo a amálgama perfeita, substância formadora da essência de um artista. Até que seja expelida a criatura em si, muitos desertos foram cruzados, outros tantos assoladores combates foram travados no seio corrosivo das tentações humanas. É então que, depois das tempestades cerebrais dos sertões da criação, surge a convivência inevitável com o resultado do ser brotado. E tal produto talvez persiga consciências como se cobrasse melhores formas. Noutras situações, vem a ser o regozijo pela descoberta de algo que nem mesmo se imaginava. Assomado pelo exercício perene da autocrítica, um criador evolui na medida em que a patrulha pessoal de seus feitos caminha na ordem direta do diálogo de suas obras com muito daquilo que vagueia pelo mundo dos sentidos.


O que foi dito acima se assemelha muito ao que é perceptível nos modos de um alguém como W. J. Solha. Aqui, estamos diante de um obstinado multimídia, não por um somatório frenético de ações no vasto campo cultural, e sim pela lúcida missão de empreender significado coerente às suas realizações. Com vida e obra marcadas pela atuação nas frentes do cinema, da literatura, do teatro e das artes plásticas, esse paulista, muito mais paraibano, traz em si a marca pungente de não se privar à grande ceia ofertada pelo mundo. O marco dessa constatação está na abordagem não apartada da alteridade, característica trazida à tona pelo fato de que o mundo não está em ninguém mais do que nós mesmos. Dessa comunhão de signos, surgem as pinturas com as quais Solha nos oferta seus contundentes olhares. É também dessa partilha de sentidos que temos na literatura dele as observações vivas de nossa coexistência face aos desígnios da denominada pós-modernidade.


Com o seu recém-lançado Relato de Prócula (A Girafa Editora, 2009), Solha nos conduz pelas teias vigorosas de sua prosa. Trata-se de um romance completo em todos os sentidos, certamente uma obra que surge para se firmar como uma das maiores realizações de nossa literatura. Em seu mais novo feito, o autor parece arrematar a construção de toda uma vida, mais do que nunca a sua própria, eivada de recortes que se prestam ao testemunho dos dias tão nossos. Este e outros temas envolvendo o ofício de artista aliado ao seu tempo fazem parte da troca de ideias que por ora aqui se apresenta.





W. J. Solha
Foto: Andréia Solha





DA - Você nasceu em berço paulista, mas podemos dizer que estamos diante de um homem de alma genuinamente nordestina. De que modo essa sua “reinserção territorial” foi determinante para mudar seus destinos?


W. J. SOLHA A paixão pelo Nordeste foi total e à primeira vista, mudando tudo na minha vida. Devem ter pesado muito a favor disso o fato de que eu tinha vinte e um anos e, pela primeira vez, – ingressando no Banco do Brasil e muito longe de meus pais – me via totalmente livre, não só do engessamento da família quanto do orçamento. Quando, depois de chegar à noite em João Pessoa, após um voo de doze horas, tomei na madrugada seguinte um ônibus para o sertão, senti um deslumbramento: como se tivesse passado para outro país e outro tempo, outra dimensão. Na realidade, partia para uma fase bem diferente de minha vida, e sabia disso. Mas não esperava tanto. Deixara de estudar pintura em Sorocaba - de onde vinha -, por me considerar medíocre, e não imaginava mais nada para mim em termos de arte. Isso sem nenhum dano aparente. Mas, além do fascínio dos vaqueiros encourados que vi logo na estrada, no meio da poeira levantada pelo ônibus; além dos banhos de rio que passei a tomar diariamente, após os expedientes do BB; além da visão – nova, para mim – da caatinga (seca num dia, verde no dia seguinte); surpreenderam-me e me cativaram de imediato as tantas pessoas cultas que conheci em Pombal, incrivelmente disponíveis. A pequena agência do BB (que começou com gerente, subgerente, eu e mais dois colegas) recebia tantos vendedores de coleções de livros, que um dos administradores botou um aviso em cima do balcão, avisando-os de que não poderiam mais ser atendidos ali. À noite havia grandes rodas de bate-papo nas calçadas e descobri que entrara no seio de uma sociedade – ao contrário da minha - que lia muito. Por esse tempo, conheci a riquíssima literatura de cordel. Pombal era a terra de Leandro Gomes de Barros, o maior cordelista, o verdadeiro príncipe dos poetas brasileiros, de acordo com Drummond. E conheci os versos de Zé Limeira, o poeta do absurdo, que iria influenciar os compositores paraibanos Zé Ramalho e Vital Farias... e, no futuro, influenciar-me também. Um dia comecei a ter uma série do que Jung certamente chamaria de Grandes Sonhos, todos envolvendo a figura de Cristo. Particularmente impressionado por um deles, escrevi-o quando acordei. José Bezerra Filho viu naquilo um conto, que foi parar numa antologia, em João Pessoa – ainda no tempo dos mimeógrafos – e, de repente, eu me via publicado junto de Manuel Bandeira, Graciliano e Carlos Drummond. É quando chega mais um novato no Banco – Ariosvaldo Coqueijo – pedindo-me que escrevesse uma peça sobre a morte do estudante Edson Luís, no Rio, acontecida um mês antes. Escrevi o texto numa noite, acabei criando para o espetáculo, mesmo sem saber música, um samba e vários hinos, e terminei por subir ao palco pela primeira vez, fazendo o papel de um líder estudantil, daí a barba que uso até hoje. Montamos um festival de teatro, na cidade. No ano seguinte produzimos, com o povo da cidade, o primeiro longa-metragem da Paraíba – O Salário da Morte, a partir do romance do Bezerra – dirigido por Linduarte Noronha (autor de Aruanda, célebre documentário que dera partida ao Cinema Novo) e, de repente, me vi produtor e ator cinematográfico. Quando me mudei para João Pessoa, em 70, financeiramente quebrado (pelo prejuízo com o filme) escrevi meu primeiro romance – Israel Rêmora – baseado no que vivera no sertão – e ganhei, com ele, o Prêmio Fernando Chinaglia 74, que incluía uma edição pela editora Record. Foi tudo meio delirante, não?


DA - Com incursões pelo teatro, cinema, literatura e artes plásticas, você se revela um agente expressivo no que se refere às epifanias do pensamento. No geral, essas múltiplas aptidões convivem harmoniosamente ou você trava dolorosos combates em termos de criação?


W. J. SOLHA Os combates são terríveis, no que se refere à minha paixão por ensaios e por ficção, que sempre tentei juntar numa coisa só. “Relato de Prócula”, originalmente, tinha o dobro do volume. Quanto às outras atividades, elas sempre me vieram normalmente. Cada arte tem algo de que as outras carecem, e experimentá-las, todas, faz com que percebamos isso com nitidez. Passei nove meses totalmente dedicados ao painel que está no auditório da reitoria da UFPB – Homenagem a Shakespeare – e vi que varrera as palavras da minha mente, no processo criativo. Você pensa quase que totalmente em termos de cores, linhas, volumes. A literatura é mais angustiante, pois você vai fundo na essência do ser humano. Mas é a mais rica, “visualmente” das artes, além de permitir o pensamento puro ao lado da ação. Fiquei deslumbrado, também, quando me vi, pela primeira vez, com um teatro à minha disposição, concretizando minhas visões no palco. E viver outra pessoa, como ator (no teatro e no cinema), é qualquer coisa de poderoso. No filme A Canga, por exemplo (dirigido por Marcus Vilar e com roteiro de nós dois, baseado num trecho de romance meu), fiz um velho agricultor extremamente rude, o avesso do que sou... e isso me levou ao paroxismo. Ao final de uma cena filmada duas vezes, o Marcus Vilar e o Walter Carvalho – que era o diretor de fotografia – tiveram de me amparar depois da palavra “Corta!”, pois eu ia desmaiando. Fazer o papel de Pilatos diante de dez mil espectadores, sob a chuva, vendo o Cristo sangrar à minha frente, foi uma experiência inenarrável. Mas em 90 deixei o teatro, em 2004 abandonei a pintura, neste ano de 2009 recusei três pequenos papéis em filmes diferentes, decidi-me pela literatura. Estou com 68 anos e o tempo já não está tão disponível. É verdade que em dezembro estreia a primeira ópera armorial, lá no Recife, com texto meu, música de meu grande parceiro Eli-Eri Moura, mas de meu ela terá apenas o texto, pois me recusei a dirigir o espetáculo, apesar do convite tentador para fazê-lo. Caramba, a impressão, desconfortável, que estou sentindo agora é a de que estou me exibindo.


DA - Relato de Prócula exalta, sobretudo, a questão de um incômodo que atravessa nossos instantes pós-modernos: o fosso que permeia a descrença dos homens em si e nos seus semelhantes. A que tipo de alerta estamos submetidos?


W. J. SOLHA - O grande tema do romance é a desesperada busca de coerência do personagem principal – Padre Martinho - desde a infância, exaltada por essa efervescência cultural de tanta gente na sua região, fenômeno que a literatura e o cinema deixaram de lado pela busca eterna do exótico que parece ser a miséria com seu derivado principal: a ignorância. Apenas Ariano Suassuna, em A Pedra do Reino, mostrou que há e sempre houve uma intensa vida intelectual no sertão, apesar da porralouquice de Quaderna e de seus amigos e suas ideias de fundar uma Academia de Letras no sertão. O exemplo a ser citado agora deveria ter sido o próprio Ariano, fruto de Taperoá, nas brenhas da Paraíba. Ou o maestro José Siqueira, de Conceição do Piancó, que fundaria a Orquestra Sinfônica Brasileira. Ou Assis Chateaubriand, de Umbuzeiro, que acabaria fundando o Museu de Arte de São Paulo, os Diários Associados e a televisão brasileira. Quixote, perto desses três, é pinto. Pois bem: Martinho, padre, é fruto dessa região. A angústia pelo sofrimento alheio e o grande carisma desse personagem, levam-no a partir para curas aparentemente milagrosas, de que acaba, arrasadoramente, desacreditando, mas já nessas alturas seminarista em Cajazeiras – lá no final da Paraíba, fronteira com Ceará. A Igreja vive, então, uma época rica, a da Teologia da Libertação, e isso o faz esquecer as dificuldades de seu intelecto poderoso em aceitar totalmente a fé, pois vive sob ídolos como Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, e Dom Hélder Câmara, de Pernambuco. Mas chega João Paulo II e, com a eminência parda do futuro Bento XVI, aposenta esses líderes, varre Leonardo Boff do mapa, acaba com a opção da Igreja pelos pobres, e Martinho se vê só, ele e a fé. Fiz por três anos o papel de Pilatos, no Auto de Deus, de Everaldo Vasconcelos - um grande espetáculo ao ar livre -, pesquisei muito sobre meu pequeno mas importantíssimo papel e, de repente, tive o insight que transferi para meu personagem. Martinho, então, vive o momento de palco que vivi e tem, em sonhos e delírios, um meio de experimentar a real presença de Cristo, através do ator com quem contracena. E se desespera ao sentir a “armação” que – ao que tudo lhe indica – acontecera em Roma e Jerusalém, a partir do momento em que – ele crê - surge um rumo certo para a vaga Fuga do Egito na infância do menino judeu: Alexandria, onde pontuava – entre tantos sábios de Israel - o filósofo Filon, hebreu mas cidadão romano. Você me pergunta a que alerta meu romance submete o leitor. A este: de que tem de abrir os olhos até para o que considera mais santo. Por que o Sinédrio odiaria tanto o homem de Nazaré que se dizia o Messias? Porque, em seu país ocupado, o veem pregar que devemos amar nossos inimigos e dar a César o que é de César, e que não devemos resistir ao mal. Sabedoria divina? Não: platônica. Produto do trabalho de Filon – cidadão romano, lembro – que tentou conciliar a Torah ao pensamento grego, criando, inclusive, aquela ideia do Verbo, o Logos, que aparecerá no primeiro versículo de João. É claro que meu personagem, Padre, tenta se matar ao chegar a essas conclusões.


DA - Além de tratar de um tema tão complexo quanto o da fé, o livro apresenta um vasto mosaico onde se fundem, a um só tempo, visões interioranas do nordeste brasileiro e uma série de interferências do mundo moderno que acabam pondo em xeque certos arcaísmos socioculturais. Como é que você se defrontou com essa intricada perspectiva narrativa?


W. J. SOLHA – Com a alegria do romancista que percebe estar com um filão novo nas mãos. Bráulio Tavares, que é mais um brilhante produto do interior paraibano, diz que meu livro, entre outras coisas, é romance regional – urbano, contemporâneo e cosmopolita. “Algo que não está nos manuais literários, e os manuais que corram a se atualizar.” Quando eu participava do longa “Lua Cambará”, de Rosemberg Cariry, no sertão cearense, em 2002, fazendo o papel de pai de Dira Paes, encantou-me particularmente uma pequena capela, numa aldeia, com uma enorme antena parabólica no teto. Uma deformação como a do rato de laboratório com uma orelha humana no cangote, obtida em laboratório no século passado, mas poética: era a imagem da igrejinha sintonizada com Deus. Mas na verdade me pareceu um bom retrato cubista de meu Padre Martinho, um homem que tentava ouvir a palavra divina, mas devidamente instrumentalizado.




Foto: Andréia Solha





DA - Numa menção aos signos evocados pela figura do personagem do Padre Martinho, diria que nossa sociedade ainda se atropela quando o assunto é resolver a equação mediada pela culpa e pelo desejo?


W. J. SOLHA – Na verdade meu personagem não tem esse problema: Trepa adoidado e vai rezar missa sem nenhum remorso. Por que, se o respeitadíssimo vigário José Antonio, de Souza, na Paraíba, tinha quinze filhos? A reação, de Martinho, em que parece haver um conflito como você aponta, é contada por outra personagem, Maricô, que desde menina tem fantasias sexuais com ele, que é um belo homem, na verdade apaixonado pela irmã dela – Corrinha – em quem, até o final do livro, também não toca, em parte pelo imenso carinho que devota à mãe das meninas, a parteira Porcina de Donária. A verdade é que meu padre passou grande parte da vida na Igreja, mas apenas como um meio de trabalhar pelos seus conterrâneos, como vi tantos outros fazerem nos belos tempos de Dom José Maria Pires, para quem escrevi A Cantata pra Alagamar, partitura do maestro Alberto Kaplan, lançada em disco pela Marcus Pereira, de São Paulo, em 1980. Há, como eu já disse, um desespero por coerência, nele. No resto, é um homem resolvido.


DA - Conhecendo um pouco de tua escrita e das tuas questões, atrevo-me a dizer que em Relato de Prócula está também o universo pessoal do homem W. J. Solha. O quanto de autobiográfico está presente ali?


W. J. SOLHA – Tolstoi dizia que em Guerra e Paz não há uma cena sequer que ele não tenha vivido. Flaubert afirmava que Madame Bovary era ele. Não vou a tanto. Os poemas de Corrinha são alguns versos meus que eu dera como perdidos quando começava a escrever o romance. As fotomanipulações de Maricô, na verdade, são trabalhos meus feitos em acrílica sobre tela. Na verdade, fui um dos produtores do longa O Salário da Morte. Na verdade, fiz o papel de Pilatos. Na verdade, andei imaginando que tinha o poder de curar pessoas. Mas a coisa para por aí. Tanto que o narrador da história, originalmente, era eu mesmo, com todas as letras, mas o poeta gaúcho Paulo Bentancur me disse que isso tornava o romance muito autorreferente, donde transferi a história para um gaúcho de nome Rubens (o mestre do Barroco) Bentancur, em homenagem a ele. Veja só: o Padre tenta se matar e falha, exatamente como meu amigo jornalista Nathanael Alves me contou que se dera com ele, inclusive no que se refere àquela experiência de quase morte, com a vida toda repassando na mente como se fosse um filme. O Padre vai ao Programa do Jô, exatamente como outro amigo, Ivan Cineminha, daqui de João Pessoa, chegando a refrescar a memória de Anthony Quinn, também presente, a respeito de alguns filmes em que trabalhara. A cena louca em que o Padre transa com Maricô, tirei-a de um Youtube pornô, mandado por outro amigo, o ator Osvaldo Travassos. Em Pombal houve, realmente, um Padre Martinho, que era Martinho Salgado, não Lutero Libório, uma grande figura que, entre outras coisas, abrigou toda a equipe do filme O Salário da Morte no Colégio Diocesano, que dirigia. Foi para ele que realmente li um ensaio mostrando a derivação platônica dos evangelhos, no começo de minhas angústias religiosas. Mas a coisa ficou por aí. Tive, realmente, dois amigos imensos em Pombal, cultíssimos: o Doutor Atêncio Wanderley e o ator Horácio de Freitas, mas tudo que há deles no romance reduziu-se a nomes (que me pareceram insubstituíveis) e a modos de ser. Como se tivesse me servido deles como atores, num filme. Muita coisa que li de Bertrand Russell eram do Horácio, dono do Mundo Novo (fazenda que, no romance, pertence ao Padre Martinho). Muito do que li de economia e filosofia era do Dr. Atêncio, o homem mais culto que já conheci, um médico modesto, que lia De Bello Gallico no original e ouvia a BBC de Londres, na ditadura, em inglês, para inteirar-se do que por aqui não era possível. Os castelinhos, num dos quais mora Corrinha com a tia, em João Pessoa, realmente estão lá na Praça da Independência e passo sempre diante deles: num, andei estudando pintura com Flávio Tavares e Marlene de Almeida; noutro, está-se preparando um Museu do Império. Tudo, num romance, é como um tapete que se tece, como colcha de retalhos. Não se trata de História, em que se conta o que houve, mas de Poesia, em que se fala sobre o que poderia ter sido.


DA - É possível perceber as variadas faces do contraditório espírito humano pairando por entre as suas telas. Nesse aspecto, considera que sua arte preconiza uma espécie de libertação?


W. J. SOLHA – Nem tanto, Fabrício. Parei de pintar em 2004, depois de ver uma exposição que fiz aqui em João Pessoa, com cerca de cem telas. Senti que aquele mundo de quadros não me levara nem me levava a nada, exatamente como quando fui montar meu terceiro espetáculo e vi que não deveria insistir naquele beco sem saída, ou como quando me chamaram agora para uma ponta no longa sobre Gregório Bezerra, em Pernambuco, e percebi que, como ator, o que tinha que dar eu já dera. Você fala em variadas faces do contraditório espírito humano pairando por entre as minhas telas. Tanto isso é verdade, que Maricô junta dezesseis de suas criações – minhas – e intitula a “instalação” resultante de “Ando muito confusa”. A Arte me parece perdida há já bastante tempo. Tenho, na estante atrás de mim, um livro do Mário pedrosa, “Mundo, Homem, Arte em Crise”, que é dos anos 80. Tenho outro, de Ortega y Gasset – “A Desumanização da Arte” -, que é de 1925. Dizem que a esterilidade – como a da velha mãe de Samuel e a da virgem Maria – um dia termina em milagre. Às vezes isso acontece. As histórias em quadrinhos, por exemplo, pareciam ter chegado ao fim, esgotadas, quando de repente ressurgiram com muito, mas muito mais força do que antes. Um dia, em 1989, eu estava pintando “A Ceia” no Sindicato dos Bancários, quando um colega me parabenizou pela cena de 3,60 m de largura, em que Marx dizia “Um de vós me trairá”, causando aquele alvoroço leonardesco em Mao, Lênin, Stálin, Trotsky, Ho Chi Minh, Allende, Guevara, Fidel e Gorbachev. “Bobagem, – eu lhe disse – o figurativismo já era, ninguém, mais, dá valor a nada disso.” No dia seguinte ele me trouxe uma Folha de São Paulo em que se dava a notícia de que quadros de Hopper ou Lucian Freud estavam provocando filas imensas no Moma, de Nova Iorque, que até então os recusara, por julgá-los “pouco modernos”. Eu não sabia, mas com “A Ceia” criava minha primeira tela pós-moderna. Esse tempo também se foi, com o paraibano José Rufino ganhando fama enorme nas bienais, com suas instalações. Não acho, portanto, que minha pintura rumava para a libertação. A imagem que me ocorre era a que eu via sempre na estação da Sorocabana, em minha cidade natal: o final das paralelas de trilho curvando-se pra cima e, a um metro e meio de altura, travadas por um dormente atravessado.


DA - Chama atenção em algumas de suas pinturas o desgaste trazido pela nossa sociedade de consumo, algo que traz à tona uma provocação ao papel do indivíduo em meio à enxurrada de informações a que está submetido. Estamos fadados a uma falsa sensação de domínio diante dessa vastidão de conteúdos?


W. J. SOLHA – Agora mesmo, enquanto escrevo um novo poema longo com pretensões totalizantes, estou lendo “A Vida modo de usar”, de Georges Perec, um grande presente do poeta e tradutor Ivo Barroso, em que a mente humana vasculha tudo, tudo, sem limitações, sem medo dessa “enxurrada – como diz você - de informações”. Meu próprio “Relato de Prócula” atropela esse medo. Por que um romance com medo de informações? Por que, se convivo com tanta gente brilhante, não incluir seus diálogos num romance? Minhas telas, sem a mesma força de meus textos, dizem o mesmo. Há um quadro meu em que há um grupo de pessoas preso por trás de uma grade composta de vinte e uma crucifixões que reproduzi – de Velázques a Gauguin, de Giotto a Cimabue -, mostrando o que entendo por “domínio”. Há outro em que a parte superior do “Enterro do Conde de Orgaz”, do El Greco, a que mostra a entrada da alma do finado no céu, eu a substitui pelo lançamento de uma nave espacial. Falo só contra a religião? Não: noutro quadro meu, ante uma gigantesca estação orbital, Dali vê, aterrorizado, seus pincéis “broxarem” como seus relógios moles. Isso talvez derive de uma leitura assombrada que fiz do balanço final que Eric Hobsbawn desenvolve em “A Era dos Extremos”, no qual ele constata que a última obra literária de consenso universal foi “Cem Anos de Solidão”, de 1967, e que não temos, mais, nenhum nome, na pintura, como o de Pablo Picasso. Ele se pergunta: o homem ficou mais pobre? Não: seus interesses foram canalizados para a ciência e tecnologia. Mas quem sabe o que vem por aí?









Coriolano
Pintura: W. J. Solha









JANELA POÉTICA (V)



TEMORES


Leila Andrade



por causa do rito raivoso dos dias

nos assaltam temores


o que nos irá vencer

no seguinte instante?


a dor de ser uma esperança contínua

nos move

e ao mesmo tempo

xxxxxxxxxxxxxxxx apavora







DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Marcos Pasche


Se nada mais der certo. Brasil. 2009.



É comum que ao entrarmos em contato com a arte contemporânea crie-se em nós a sensação de nos depararmos com o caos, fato observável com muita clareza, por exemplo, na última bienal artística de São Paulo, intitulada de “Bienal do Vazio”. Um questionamento pertinente sobre isso é o que indaga se tais manifestações caóticas são um reflexo dos tempos atuais ou se na verdade são uma representação direta dos dias em que vivemos, quando se alardeiam a venda, a preço baixo e a toque de caixa, de valores estabelecidos e reconhecidos coletivamente.


Este questionamento é suscitado por Se nada mais der certo, novo filme de José Eduardo Belmonte, uma crônica de nossas falências camufladas cotidianamente que, do início ao fim, abre mão de ser guiado pelo enredo objetivo das causas e consequências, o que dá à película uma feição fragmentária, como é a vida numa grande metrópole, caso de São Paulo, cenário do filme.


O fio condutor de Se nada mais der certo são personagens que caminham atolados no fundo do poço do capitalismo, asfixiados pela insuficiência financeira com que tenham de se submeter a toda sorte de adversidades e vexações para garantirem suas necessidades básicas e manterem de pé a crença de que algo dará certo num futuro próximo.


É o jornalista Léo (em interpretação rasa de Cauã Reymond) que não recebe os pagamentos pelos serviços prestados esporadicamente e se desespera por não pagar suas contas; é a prostituta Angela (Luiza Mariani), companheira de Léo, que pega os últimos trocados para as despesas e compra antidepressivos, sendo brutalmente repreendida por ele; é a lésbica Marcin (na bela atuação de Caroline Abras), uma operária do submundo noturno que não fornece drogas satisfatoriamente a uma boate e é agredida pelo travesti Isabelle (Milhem Cortaz), por sua vez agredida pelo dono da boate; é o taxista Wilson (João Miguel), espremido pelo dono do carro com que trabalha, sempre em busca do dinheiro a mais que nunca vem. Todos eles se aproximam e se igualam pelas necessidades, mas raramente se irmanam, e isso revela uma vantagem do filme, que em nenhum momento cede à ingênua ideia de que a pobreza torna as pessoas mais fraternas entre si.


E cada um a seu modo tenta curar as chagas que afligem: drogas, psicólogos, armas etc., mas as forças que os comprimem levam-nos, sem determinismos, à redenção pelo crime, porque a corrupção é a única esperança a que se agarram, pois vão se descobrindo gradativamente numa cadeia em que a ação inescrupulosa é, antes de tudo, um meio de autopreservação do individual dentro do social: “Às vezes a gente tem que mentir pra continuar sendo honesto”, diz Léo.


E com esses retalhos do dia-a-dia, Belmonte constrói um filme interessante, sem qualquer tipo de apelo naturalista ou exploração panfletária da violência urbana. Quando se veem diariamente a abertura das muitas caixas-pretas das casas parlamentares do país, Se nada mais der certo mostra o quanto estamos cercados, do macro ao micro, dos elementos que produzem nossas mazelas, como também mostra, por mais absurdo que possa parecer, a justeza de frases como "eu não sei quem foi, eu não sei quem é".




(Marcos Pasche é carioca, professor de Literatura, portelense, e, ao caminhar entre árvores, pergunta a elas porque a vida tem sido tão barulhenta, inclusive o áudio dos cinemas)










Cleópatra

Pintura: W. J. Solha














JANELA POÉTICA (VI)



ESPINHO


Prisca Agustoni



Se, como você diz,

ninguém é mais flor do que eu,

por que minhas pétalas

são sílabas

que se tornam palavras

úlceras entre as mãos

ao invés de imitar

o lento abrir-se

de uma rosa?




(Prisca Agustoni nasceu em Lugano, Suíça, onde se iniciou à poesia e às artes plásticas. Morou muitos anos em Genebra, onde fez teatro, dança, e estudou Filosofia e Letras Hispânicas na Universidade. Aqui ganhou segunda vida. Atualmente mora no Brasil, em Minas Gerais. Poeta e narradora, escreve em português, italiano, espanhol e francês)









OUVIDOS ABERTOS (II)


Por Larissa Mendes



TIÊ – SWEET JARDIM







Esta cantora com nome e voz de pássaro já costumava (en)cantar nas vinhetas da MTV Brasil, num sedutor jogo de sons e imagens. Por isso, não foi preciso mais que uma audição minuciosa de seu álbum de estreia, Sweet Jardim, para perceber que a menina-pássaro ainda voará muito mais alto.


Assim como a ave, Tiê é de um rubro passional. Sua voz doce e afinada sussurrando letras autobiográficas do cotidiano amoroso de todos nós, acompanhada apenas de arranjos delicados e melodias minimalistas, torna-se sua peculiaridade musical.


A bela paulistana - que já foi modelo internacional e estudou canto em Nova York – integrou a banda do músico Toquinho por três anos, porém ganhou destaque através do projeto musical Cabaret, o que lhe rendeu inclusive a gravação de um EP.


Lançado em 2008, em parceira com o produtor Plínio Profeta, as dez faixas inéditas que compõem Sweet Jardim foram registradas ao vivo no melhor estilo low-fi. Gravadas em formato semi-acústico, as canções de voz e violão valorizam uma cantora contrária a rimas fáceis ou rebuscadas orquestragens. Como um bater de asas, a menina-pássaro prima pela simplificação de sentimentos e sons, delineando assim a autenticidade de suas composições.


As três primeiras faixas (Assinado Eu, Dois e Quinto Andar) dão a tônica melodiosa do álbum e soam como candidatas a singles. Arranjos um pouco mais velozes dão a cadência da bilíngue Aula de Francês e Stranger But Mine - que com o perdão da comparação - lembram uma Mallu Magalhães mais madura. Já Chá Verde (com um quê de Fernanda Takai, não apenas pela alusão oriental do chá), A Bailarina e o Astronauta e Te Valorizo trazem uma Tiê pianista, dando vazão ao melhor de sua habilidade letrista. Destaque para a faixa Passarinho, onde, envolta pelo canto das aves, a cantora aborda a origem do seu próprio nome. Por fim, a festiva Sweet Jardim fecha o álbum com uma participação-benção de seu padrinho Toquinho.


Assim como sua pioneira avó Vida Alves – que protagonizou com Walter Foster o primeiro beijo de telenovela tupiniquim – percebe-se, deste primeiro voo solo de Tiê, um céu de originalidade com paisagens de promissores e doces jardins.




(Larissa, menina-catarina, é Bacharel em Turismo e Hotelaria, hóspede-cinéfila de ouvidos atentos e turista no mundo das palavras)











Van Gogh
Pintura: W. J. Solha










JANELA POÉTICA (VII)




Fabrício Brandão



talvez ainda fique aqui

suspenso na poeira resvalada dos saltos

espalhado pelas varandas pueris de qualquer dia


na medida certa do arremesso

estarei no limite de vãs razões


embora me creia permanente espectro

poderei habitar apenas um lugar

este que rumina horas esquecidas










A Faxineira
Pintura: W. J. Solha









Reações Adversas


Maurício de Almeida



Há formigas dentro do armário. No pote de açúcar. Na panela em cima do fogão. Há formigas no chão. Subindo os pés da mesa, comendo restos do almoço. Formigas, muitas formigas na geladeira, na travessa de bolo. Formigas nos pratos de comida, no meio dos pães, chafurdando na manteiga, afogadas no copo de leite. Há formigas no lixo, no saleiro. Formigas sobre formigas. Formigas nas gavetas, entre os garfos, formigas sobre as lâminas das facas, dobrando guardanapos, palitando dentes. Formigas no ralo da pia, nos pacotes de bolachas. Há formigas coando café, fervendo água, tomando chá. Há formigas no banheiro. Na pasta de dente, no papel higiênico. Formigas no sabonete, tomando banho. Formigas nadando na privada, correndo nos jornais amassados. Formigas nas toalhas, na escova de cabelo. Há formigas nos vãos das portas. Nas maçanetas, no molho de chaves. Formigas enfiadas em formigas, no sofá da sala. Há formigas nas almofadas, debaixo dos tapetes. Formigas nos botões do controle remoto, mudando os canais da televisão. Há formigas nos comerciais, chiando nas caixas de som, perdidas nas estações do rádio. Formigas na garagem, no porta-luvas do carro. Esvaziando o estepe, escorregando pelo pára-brisa. Há formigas no portão, na campainha. Formigas na caixa do correio, chegando dentro de cartas. No meio das contas, perdidas em códigos de barra. Há formigas sobre a mesa, rabiscando recados. Formigas no telefone, ocupando as linhas, discando números errados. Há muitas formigas. Formigas nos relógios, penduradas nos ponteiros. Formigas adiantando as horas, despertando às seis da manhã. Há formigas na cama, no travesseiro. Formigas dobrando o cobertor, esticando o lençol. Formigas dormindo entre formigas. Embaixo do colchão, corroendo o estrado. No cone do abajur, apagando e acendendo a lâmpada. Há formigas na escuridão, em cima da mesa. Formigas apontando lápis, escrevendo textos. Há formigas nos livros, no bloco de anotação. Formigas nas palmas das mãos. Debaixo dos braços. Escalando as costas, mordendo a nuca, embaraçando o cabelo. Formigas perdidas nos joelhos, confusas entre os dedos. Há formigas cavando a virilha, enforcadas em pêlos. Entrando pelos ouvidos, caindo do céu da boca. Formigas penduradas nos cílios, devassando pálpebras, cavucando olhos.


Há formigas onde não deveria haver.




(Maurício de Almeida nasceu em Campinas, em 1982. Formou-se em antropologia pela Unicamp. É autor de Beijando Dentes (Ed. Record), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 e co-autor da peça Transparência da Carne, encenada pelo grupo teatral República Cênica)










A Ceia
Pintura: W. J. Solha





 
publicado por Fabrício Brandão
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