Arte: Marco Angeli
CICERONEANDO
Apregoava-nos o poetinha Vinicius de Moraes ser a vida espécie de arte do encontro. O mais importante de tal constatação é que ela é incapaz de se esvaziar no decorrer dos tempos, pois os encontros se operam, alternativamente, para além de visíveis apelos materiais. Falemos, pois, dos encontros proporcionados pelos signos de uma obra de arte, esse algo incorpóreo que nos incita à reflexão pessoal sem cobrar engajamentos necessariamente ideológicos. Falemos, por exemplo, do sabor de se ver parte de um texto literário, percebendo-nos ali diante de um revelador espelho de nós mesmos. Falemos, ainda, do convite ao qual somos compelidos de varrer seres e lugares flagrados pela luz fotográfica e capitaneados pelos olhares de um determinado criador. Pelo enumerar de algumas dessas perspectivas, que teimam por resultar em descobertas, somos quase sempre movidos pelos sentidos de um porvir. Atraídos por uma necessidade incessante de sermos tocados, delegamos ao continuar da existência a tarefa de nos surpreender pelas tramas do mistério. Pela ótica secular de Lavoisier, talvez nunca tenhamos inventado absolutamente nada, apenas processamos tudo o que paira nos instantes dispersos de nosso respirar. Pelo sim ou pelo não, o teor das descobertas se impõe até mesmo para aqueles mais céticos. Em cima de tais reflexões, a Leva de agora abraça novos encontros nas trilhas vastas da Arte e da Literatura. Destaquemos, pois, a poesia que emana de Adriana Versiani, Douglas Dias, Fernanda Marra, Iracema Macedo, Wladimir Cazé e Ronaldo Araújo. Por entre as linhas e aparições de agora, está o traço vigoroso da arte de Marco Angeli. Os contos de Nelson Alexandre, Carla Luma e Claudio Parreira demarcam sentimentos que não coagularam no tempo. Representando uma renovada perspectiva no cenário musical brasileiro, o músico Lucas Santtana aporta suas falas numa breve entrevista. Bolívar Landi comenta sobre os densos efeitos da narrativa do filme alemão A Fita Branca. Por aqui, também merecem atenção os trabalhos musicais de 4 Cabeça e Claudia Dorei. A Diversos Afins oferta os encontros do seu 44º caminhar.
*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.
São Paulo, Av Angélica, 1940
Arte: Marco Angeli
Nelson Alexandre
Existem divisas no braço rude da fragilidade, que inspiram a redução da capacidade de metabolizar qualquer sentimento de lealdade. Ela abre a boca e mostra uma fileira de dentes como uma correia dentada num motor composto por peças que são órgãos de criaturas bizarras. Ela sopra vanguardas sob as partículas mortas de uma lenda antiga, deitada sobre as descargas elétricas de pensamentos reprimidos. Ela levanta as saias e mostra a entrada de um mundo preso por discursos políticos e fundamentalismos relacionados a mesquinharias caseiras. Ela nunca pede o meu órgão de conexão para uni-lo à sua complexa caverna de surpresas, num casulo de nódoa eterna.
Ela faz jorrar os sonhos nos canais de carne viva, mostrando a sua beleza em um corpo dotado de um fino veneno. Sou o velho oráculo anexado a uma juventude que me liga a uma fonte de energia libidinosa.
Eu peço para que entre no carro. Ela dá impressão de estar desconfiada de claustrofobias autobiográficas. Pensamentos em caixas de fósforos
Hora ou outra dou uma olhadela nas coxas, na boca proibida que se forma naquelas pernas, e que fazem um discurso apoteótico a favor de que eu possa deslizar as mãos sobre elas. Eu vejo uma poesia suja, vestida com uma túnica de algodão, com papoulas cobrindo cada um dos seios.
Há um momento em que ela silencia a minha boca de besteiras radiofônicas, pronunciando o meu nome com brasas vivas na língua. Aparenta não querer chupar, mas quer, mas não chupa.
Língua abrasadora na glande é uma liquidação num dia em que estou duro. Eu tento a aproximação por amizade e consideração. Ataques leves com meus tentáculos de polvo faminto. Labirintos se cruzam num espaço mínimo de bolinação.
Ela corta a cena e a existência do nosso pequeno filme, assim, abruptamente. Derruba a câmera, vergando sobre mim uma acusação de total assédio, mostrando uma cara de falsa inocência que desaparece depois daquele sorriso de chupetinha não-feita.
“Qué pará?”
A noite é fria, chuvosa e nervosa
Os dedos das minhas mãos parecem pit-bulls devoradores de mocinhas. Mas não há acordo. Apenas o velho “brigado, fulaninho!”
O som da porta batendo e se fechando. A imagem de suas costas nuas se movimentando em direção a um horizonte de discos voadores rasgando o céu e virando uma explosão de gozo solitário.
Nós existimos somente na zona proibida.
Num local ermo. Com pântanos gasosos exalando cheiros conspiradores. Gases tóxicos que estimulam o poder de ejaculação da besta de três cabeças e nenhum cérebro. Há, apenas, um número de candidatura sugando pensamentos mesquinhos. Interesses que manipulam um gado novo que é o mesmo gado velho e viciado. Engolidor de ruminações estéreis e promessas de vantagens não-cumpridas.
Nós não existimos.
O que existe, na verdade, é uma mancha negra crescendo no hemisfério direito do cérebro, em explícito boicote ao hemisfério esquerdo.
Quero que ambos se extingam.
Quero pensar numa existência mínima, desvinculada de todo empolamento de artifícios literários. Quero que ela volte. Dessa vez, não quero o desenho morto e suturado de suas costas indo em direção à gênese do nosso relacionamento natimorto. Eu a quero como todo homem quer uma mulher.
Empalada nele.
(Nelson Alexandre nasceu em Maringá - PR. Atualmente é frentista em um posto de gasolina na mesma cidade em que nasceu. Está para se formar no curso de Letras da UEM. Já disseram que seus contos parecem com os de Charles Bukowski, John Fante e até mesmo uma mistura de William Burroughs e David Cronenberg, mas o autor descarta todas as possibilidades e afirma que seus escritos pertencem a ele mesmo e mais ninguém)
Portrait 1, A Pichetti
Arte: Marco Angeli
JANELA POÉTICA (I )
PRISÕES
Iracema Macedo
Comprando
(A poeta potiguar Iracema Macedo é professora de
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
4 CABEÇA – 4 CABEÇA
Pessoas podem se reunir para delimitar espaços em torno de questões comuns, afinidades por assim dizer. Podem, também, trazer trajetórias particulares e, sem atropelos, desfilar tudo de modo harmônico e coeso para fazer ecoar suas mensagens a quem se dispuser ouvir. Eis que paira no ar tal sensação quando tomamos ciência do modo como certos projetos artísticos se desenvolvem. No caso da trupe carioca formada pelos músicos Luis Carlinhos, Maurício Baia, Rogê e Gabriel Moura, está a prova cabal do sentido genuíno de certos encontros. Ao contrário do que se possa imaginar, 4 Cabeça não se intitula uma banda propriamente dita, mas sim um projeto que une mentes e suas ideias pura e simplesmente a serviço de válidas possibilidades sonoras. Mesmo cada um dos músicos trilhando seus próprios caminhos e, ocasionalmente, se reunindo para apresentar o resultado de suas expressões individuais, o fato é que o grupo consegue extrair desse encontro um ambiente onde as canções se integram de modo preciso.
Em 4 Cabeça, vozes e violões dialogam com letras que transitam pelas alamedas dotadas de humor, lirismo e uma dose adequada de crítica social. O álbum atrai pela força que está na boa energia de faixas como Quem canta, no jogo de contrastes de TV Cultura, no embalo das memórias do blues de Lembrei, e na roda viva das constatações mundanas de Fulano, Beltrano e Cicrano. Como quem evoca as missões advindas do próprio ofício e, ao mesmo tempo, concilia o clássico e o moderno, os quatro artistas também nos ofertam as ternas imagens de Violeiro. Se tudo o que foi dito não é suficiente, ainda há espaço para o coro uníssono e despojado de instrumentos de Brasis, canção que funciona como verdadeiro hino contemporâneo de nossa plural e tão contraditória nação. Pode até ser que cada um dos “cabeças” não tenha se prendido a um conceito determinado para o disco, mas o fato é que, despretensioso ou não, o trabalho agrega num só conjunto as virtudes de mentes afinadas em torno de um valioso propósito, expressar musicalmente sentidos de um mundo palpável a todos nós.
Clique aqui e abra os ouvidos para o disco
Miles Davis
Arte: Marco Angeli
JANELA POÉTICA (II)
A MENOR PARTE
Para Vik Muniz
Adriana Versiani
Que letra foi gravada em minha alma?
Qual palavra me formou?
Ando, caminho por corredores iluminados
pelos laranjas e amarelos das fotografias.
Trago as unhas escuras como as de quem procurou por objetos
na casa incendiada.
Venta sobre o mármore:
Esqueceram-me.
(Adriana Versiani dos Anjos é mineira de Ouro Preto. Tem cinco livros de poemas publicados, dentre eles, A Física dos Beatles (2005) e Conto dos Dias (2007) e o virtual Explicação do Fato (2008 – Germina literatura – Revista Virtual) e Livro de Papel (2009). Foi co-organizadora da Coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. Fez parte do conselho editorial da Revista de Literatura Ato. É editora do Jornal DEZFACES)
São Paulo, 1950
Arte: Marco Angeli
a água suja suja suja tudo
Carla Luma
Vivessem vocês como vivo, de rua em rua, porta em porta, beco em beco, aqui fazendo unha de madame, ali vendendo um batom, acolá um boquete, teriam ódio de chuva. Eu tenho. É atraso de vida. Queda certa e imediata no faturamento. Ou vocês pensam que comprei apê e new beatle com literatura? A porra agora se agravou. Culpa, dizem, do tal de aquecimento global. A chuva é diária o dia inteiro e eu tenho new beatle, não tenho barco. O celular só toca pra desmarcar. Acho até que não dá mais pra morar aqui
(Carla Luma nasceu em Jacarezinho, Paraná. Costuma se apresentar como manicure e vendedora de cosméticos. É autora do livro de memória precoce "As mãos me falam, os falos me calam", totalmente escrito em alfabeto ideográfico, que será lançado na China, com prefácio de Mao Tsé-Tung, antes do dia do Juízo Final. Espera ansiosa que morra algum imortal, pois pretende candidatar-se a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras para aproximar-se dos seus ídolos: Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro)
São Paulo, 1930
Arte: Marco Angeli
JANELA POÉTICA (III)
VALSA
Wladimir Cazé
Para Bárbara Maia
Um corpo estelar corre
ao encontro de outro corpo,
cavando órbita no espaço oco,
esbarra em obstáculos líticos,
pedaços de planetas extintos,
passa poços de ar viciado,
espaços sem luz, sem vento,
meteoros parados no tempo,
minúsculos farelos lunares,
mas nada impede o avanço certeiro,
através de todo o universo,
do átomo astral imantado a seu parceiro.
(Wladimir Cazé acaba de publicar seu segundo livro de poemas, "Macromundo" (Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2009), que terá lançamentos
Final do Séc. 19, desembarque de judeus, Rio de janeiro
Arte: Marco Angeli
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
A música, assim como outros tantos gêneros artísticos, reage bem a novas possibilidades que se apresentam com o natural e necessário passar dos tempos. Certamente, o mais valioso de todos os sintomas que possam abarcar tal sucessão é a virtude de se desenvolver um projeto essencialmente autoral, tudo isso sem negar influências valiosas que ajudaram a consolidar o cenário musical brasileiro. Mesmo que cada geração empreenda tons próprios ao seu discurso, as referências do passado acabam por nortear ou até mesmo influenciar completamente certas manifestações. Se soubermos cultuar, sem atropelos, nossa memória, muito se pode criar a partir disso e ao conceito de novidade outros tantos sentidos vêm se somar.
No atual ambiente da música brasileira, há um número cada vez mais considerável de gente disposta a realizar um trabalho que agrega modernidade e tradição. Esse tipo de característica se mostra virtuosa na trajetória de artistas como o cantor e compositor baiano Lucas Santtana. Com quatro discos na bagagem e uma carreira que reúne trabalhos com artistas de renome, Lucas possui um quê de especial, qual seja a capacidade de transformar apelos intuitivos e percepções sensíveis do mundo em sonoridades com texturas e tons particulares. Seu álbum mais recente, Sem Nostalgia, reforça muito bem tal ideia, posicionando o artista enquanto verdadeiro construtor de imagens advindas do som. O disco possui uma particularidade que chama atenção, pois nele o músico subverte a ordem natural das coisas, retirando das cordas do violão perspectivas diferenciadas de escuta. Em sua trajetória, o cantor vivencia, de modo hábil, incursões que vão desde o samba até a música eletrônica. Por entre os shows de sua nova turnê, Lucas dividiu conosco um pouco das suas crenças e percepções, revelando aspectos que o posicionam como um alguém que merece atenção pela obra que vem construindo.
DA - Seu trabalho promove um diálogo muito interessante entre o clássico e o moderno. Como é que você equaciona essas influências no seu processo de composição?
LUCAS SANTTANA - Não penso em nada disso. Penso na melodia, na canção, no som dos instrumentos, nos timbres, nas possibilidades, nos silêncios, tudo muito intuitivo também. Afinal de contas, quem dá a palavra final é sempre o ouvido.
DA - Chama atenção
LUCAS SANTTANA - O desejo de fazer um disco de voz e violão de outra forma, de me divertir com um formato musical tradicional.
DA - Acredita que buscar a via experimentalista acaba sendo um modo de demarcar diferenciais e talvez até buscar uma originalidade que anda um tanto escassa no cenário musical?
LUCAS SANTTANA - Acho que a busca é sempre positiva. Como diz um amigo meu, “o não eu já tenho”. O que pode vir é um futuro cheio de possibilidades. Hoje, de fato, muita coisa soa igual, é difícil ser original, até porque todo mundo ouve as mesmas coisas praticamente. Temos acesso fácil a tudo. Mas acho que você pode ser super original fazendo música pop, samba, qualquer coisa. Não é só o experimentalismo que traz frescor e originalidade. As diferenças estão no autoral, no pessoal, no ser da pessoa e como esse trabalho se impõe e se comunica.
DA - O fato de Sem Nostalgia possuir mais canções em inglês do que português foi intencional ou acabou sendo uma consequência natural da seleção de repertório?
LUCAS SANTTANA - Totalmente natural. Algumas músicas, como “Ripple of the water”, já tinham sido feitas há dois anos. “Hold me in” tinha sido feita um ano antes para um disco do Arto Lindsay, que acabou não saindo. Outras, chamei Arto para fazer comigo. Já compomos juntos para os discos dele há muito tempo, desde 1996. E sempre rolou
DA - Suas origens apontam para um ambiente de efervescência cultural, que é Salvador, cidade fortemente voltada para uma indústria carnavalesca. No entanto, sua trajetória percorreu vias bem diferentes cujo foco não se concentra nos apelos daquele mercado. Foi difícil conviver com tais contrastes e, desse modo, optar por um caminho próprio?
LUCAS SANTTANA - Vivia em Salvador quando o axé music começou. Vivi aquilo e gostava de analisar o que significava social, política e economicamente para a cidade. Quando gravei meu primeiro disco, já morava no Rio. Mas nele ainda há ecos dessa vivência da cidade e do carnaval. O segundo já foi fruto de ter ido bastante aos bailes funks do rio. Enfim, é um pedaço da nossa vida que vai ali nos discos e é bom que seja assim verdadeiro.
DA - De que modo você avalia o atual cenário da música independente brasileira?
LUCAS SANTTANA - Tem crescido, sem sombra de dúvidas. Todas as bandas que conheço têm mais show hoje do que há três anos atrás. E também os modelos estão sendo repensados. Quanto mais músicos conseguirem se unir de maneira coorporativa e organizada e conversar sobre como as coisas funcionam e como podem vir a funcionar, menos ranço do passado teremos. Vejo mais organização quanto a isso hoje também.
DA - Você é um artista que faz uso constante das possibilidades de interação proporcionada pelos meios virtuais, como é o caso do seu blog, o Diginóis, espaço onde inclusive downloads de músicas são disponibilizados. Em que medida o papel das novas mídias tem influenciado seu trabalho?
LUCAS SANTTANA - A graça para mim, quando fiz o Diginóis, foi descobrir que ali poderia ser uma extensão da minha cabeça e da minha vida. As coisas que vejo, ouço, poderia compartilhar não só numa mesa de bar com os amigos, mas também na rede com pessoas que nem conheço, e que podem ter afinidade com a minha maneira de pensar. O que dizemos nas letras e nos discos é só uma parte do que pensamos e vivemos. Muitas outras coisas interessantes e não menos importantes ficam de fora. No blog, você pode pôr tudo. Eu posso ir tocar num lugar, mas posso também falar sobre aquele lugar, falar sobre algo que vivi ali. Enfim, é mais rico e me ajudou muito a me expressar. Fora meu conhecimento musical, que cresceu bastante. Sempre estou conhecendo e baixando músicas de bandas que nunca ouvia falar, que não têm nem disco gravado. Como disse acima, eu me divirto com as novas mídias. Acho excitante. Nesse último disco, tem muita coisa que veio dessa vivência online.
DA - Em sua temporada atual de shows, há algo que tem marcado o seu olhar como sendo especial?
LUCAS SANTTANA - Tudo tem sido especial. Cada lugar, cada show. A convivência com os amigos da banda. Os lugares, as pessoas, as risadas, a solidão que rola às vezes. Enfim, viver não é fácil, mas é muito bom.
New York, 2009
Arte: Marco Angeli
JANELA POÉTICA (IV)
(AURORA)
Douglas Dias
I
a carne
fez o verbo
– signo tempestuoso –
saliva e carvão
II
e vieram sombras
[e por dentro das sombras]
restos de luz
tecidos aos pares
impossíveis de sustentar
III
dobradura, o tempo
rabiscou eternidade
donde fugiram pirilampos
IV
assim fez-se a primeira aurora
prenhe de céu
tecelã distraída do mar
(O poeta Douglas Dias é professor da Universidade Federal do Pará. Atualmente, cursa Doutorado em Educação na UNICAMP. Na web, apresenta-se na diversidade dos seus escritos em blogs como o Vomitando imagens e Eu, espantalho)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Bolívar Landi
A Fita Branca (Dass Weisse Band). Alemanha. 2009.
Difícil descrever as sensações que são evocadas após assistir a este inquietante filme vindo da Alemanha. Díspares também são as percepções de quem o assiste, principalmente se ele é visto em vídeo ou
A película é inteiramente narrada por um dos seus personagens principais. A voz gutural do alemão vai encadeando as cenas que, para aqueles fatigados pelo dia, soará como uma cítara que o levará ao mundo de Orfeu. Os mais despertos, no entanto, se depararão com um filme estranho, perturbador e, em alguns momentos, revoltante. Ele se passa em um pequeno vilarejo alemão, em tempos de surpreendente tranquilidade para uma Europa prestes a entrar na 1ª Grande Guerra. Ali é mostrada a vida de pessoas comuns, absorvidas por suas preocupações diárias e incessante rotina. O que mais impressiona, contudo, é que este mesmo povoado será também o palco para se expor as mais vis faces do homem. Bem ao estilo David Lynch, o filme irá se preocupar em colocar à mostra o lado obscuro e perverso da natureza humana.
Deparamo-nos, assim, com uma sociedade patriarcal, extremamente conservadora e autoritária, onde a conduta das pessoas é moldada através da coação e do medo, e a manutenção da disciplina revela-se mais importante que qualquer demonstração de sentimento ou afeto. Paralelamente a isto, estranhos acontecimentos, sádicos e inexplicáveis, vêm ocorrendo no local. Este clima de mistério criado é outro ponto forte da obra, pois consegue prender a atenção e fazer com que fiquemos inquietos procurando pistas que nos ajudem a solucionar o mistério. Quem chegar até o fim, ficará com um gosto meio amargo achando que o filme poderia ter dito mais... Contudo, diante de tantas vilezas apresentadas, esta se torna uma questão de menor importância.
A Fita Branca alcançou grande destaque internacional, ganhando o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2009. Embora tenha sido indicado como o favorito ao Oscar nesta categoria, foi derrotado pelo argentino O Segredo dos Seus Olhos. Apesar de todos os seus virtuosismos, há de se reconhecer que ele, realmente, não é um filme fácil de ser digerido pelo grande público.
Alguns críticos procuram fazer ainda uma ligação entre o autoritarismo e a postura austera da sociedade alemã às vésperas da 1ª Guerra mundial como o gérmen que propiciaria o desenvolvimento do Nazismo. Que não busquemos culpados e explicações fáceis para entender um dos maiores desastres da história da humanidade. Se quisermos respostas, que as busquemos no interior de nossa nebulosa natureza: a mesma em qualquer parte do mundo. Talvez tenha sido esta a mensagem que o diretor, o austríaco Michael Haneke, sutilmente tentou passar aos seus espectadores.
(Bolívar Landi é formado
Arte: Marco Angeli
JANELA POÉTICA (V)
DA ORDEM INESPERADA
Fernanda Marra
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
Paulo Leminski
Dias diversos:
roupa seca no varal
vestindo fantoches sem corpos,
café esfriando na xícara
e dedo nenhum de prosa.
Dias inversos:
no varal não sobra linha,
a roupa mal torcida
escorre a tinta a mancha a nódoa.
Redunda a saliva e também pinga,
onde o sol não, desbota.
Clara de cegar os olhos
a porcelana suja da xícara
espreita pálida a página inaudita
e inaugura invisível
polifonia afinada de vozes.
(Fernanda Marra é natural de Goiânia, cravada no centro, coração do país. Viveu uma infância entupida e mofada no interior paulista, mas teve a chance de retornar e secar as narinas no cerrado onde cursou Letras pela UFG, tornou-se servidora pública estadual e elabora uma família. Inda menina, derramou no papel a voz que a boca calava. Aos quinze, publicou o livro de poemas “Vôo Livre” e estancou. Recentemente descobriu a “blogsfera” e tem tagarelado por suas janelas virtuais, feliz feito quem assoa o nariz e respira)
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
CLAUDIA DOREI – RESPIRE
É possível encerrar um conceito definitivo do que venha a ser Trip Hop? Se considerarmos o Respire de Claudia Dorei, certamente fugiremos daquela velha noção londrina de melancolia e quiçá alguma dose de tristeza aparentemente tão peculiar ao gênero. A “viagem” empreendida pela artista em questão subverte a ordem habitual do estilo, misturando uma medida bem acertada de suavidade com um espírito carregado de alto astral. Indo um pouco mais além, poderemos, por exemplo, ficar absorvidos com os espectros poéticos recitados na letra de Não Sei. O que de imediato chama atenção nesse disco é a atmosfera de simplicidade que percorre todas as escutas. Não há espaços para exageros eletrônicos e vamos, ao longo do percurso sonoro proposto por Claudia, percebendo a convergência agradável que também é resultado da fusão entre o Dub e o Jazz.
Abraçando a ideia de um batismo Trip Hop tropical, Respire é um trabalho atravessado pelos apelos da paixão, estado de espírito que, aliás, parece impulsionar o foco central do álbum. Sem dúvida alguma, o fato de Claudia fazer uso do beatbox, que é uma espécie de percussão bucal, acaba conferindo aos arranjos um caráter bastante especial. O efeito desse elemento combinado a outros pincela imagens de tom contemplativo por entre todas as canções. Desde a batida acelerada de Acontece, e passando pelas nuances intensas de Gentileza (faixa que exorta um pouco o ideário do profeta Gentileza), Menina e Já Passou, somos conduzidos a um ambiente que sabe captar uma aura da mais pura delicadeza. O fato de sermos, frequentemente, absorvidos e até mesmo traídos por nossos descompassos mundanos nos ajuda a entender a escolha do nome do disco. Por tudo isso, respirar é tentar deter o fluxo frenético da mente, algo que nos ajude a minar desesperanças e, desse modo, assumirmos o controle sereno de nossas sinas. Não há, pois, receitas prontas para a vida. Evoé, Claudia Dorei!
Clique aqui e abra os ouvidos para o disco
Teatro Municipal, 2008
Arte: Marco Angeli
JANELA POÉTICA (VI)
COMO NASCE UMA FLOR
Ronaldo Araújo
Meu olhar, nem tão perspicaz,
Tenta decifrar o nascimento de uma flor.
E assim se dá:
Existe uma centelha
Que se faz cor
Na luz e nas penumbras
E no limiar do tempo
Que se faz véu
Uma semente germina
E ali,
seja campo ou jardim
pedreira ou coração
nasce uma flor
rebento de uma vida que se renova
para a vida.
(O poeta Ronaldo de Araújo é cearense de Fortaleza. Além de dedicar-se à literatura, ministra oficinas de teatro, leitura e produção de textos)
Cristo, baseado em Gustave Doré, 2005
A TERCEIRA
Claudio Parreira
Não sei quando passei a inventar mulheres. Não foi coisa de menino; depois de grande é que dei pra variar. Em pequeno, fui responsável, o adulto que queriam pra mim. Muito juízo, eles diziam, mas eu sabia em silêncio que tudo era apenas uma questão de tempo. Pois então.
A primeira mulher foi um susto: veio sem pernas. Mas o susto foi meu, só meu; ela falou, serena, que era falta de prática.
- Um pouco mais de paciência – ela falou, os dedos longos acariciando o joelho inexistente -, basta apontar bem o lápis, as pernas são resultado da técnica. Insiste.
Continuei, portanto. O lápis criando a vida assim do nada. Mas faltava algo, eu sentia, faltava – e não era a técnica. Faltava, soube disso depois, o meu coração nas coisas.
Foi uma das mulheres que me falou. Eu punha a mão no lápis, os olhos, mas nunca o coração. Daí o resultado incompleto.
A primeira sem pernas, a segunda sem braços, a terceira completa exceto a voz. Um silêncio de manequim. Boneca móvel e silenciosa. Minha irmã.
Daí que resolvi repensar. E não foi preciso muito: percebi que com as mulheres de verdade também tinha sido do mesmo jeito. Nenhuma delas teve o meu coração. Tiveram algumas uma lasca de coração, um fiapo de sonho, mas nunca tudo. Alguém que não se dá por inteiro não merece outro alguém por inteiro.
As solidões consequentes. O hábito de beber sozinho com os olhos cravados na lua. Quando os sonhos se transformam em vasto vazio. A minha voz que secou. Falar com quem, para quem?
O silêncio é muito pesado quando não se tem mais o que falar. Códigos, eu os conheço. Mas perdi o interesse. Não me interessava mais ouvir, falar muito menos, esse exercício doloroso e inútil da comunicação.
Escuridão, essa é a verdade. O silêncio é a escuridão da alma. Foi aí que me percebi envolvido completamente nas trevas, mudo feito uma pedra.
Eu devia sentir medo chorar lamentar meu destino. Não fiz nada disso. Não senti nada. Vaziez. Meu corpo flutuando no espaço negro.
Um século assim. Dois? Enfim, um tempo sem números, ponteiros, impossível de contar. Só o contínuo flutuar no imenso útero negro da minha mãe. Até que a voz me atingiu, a voz improvável, impossível, a voz da muda:
- Escreve e me faz viver!
A terceira, a muda, minha irmã: falando comigo sem voz. Mas era inegável, era uma ordem. Escreve, escreve.
- Já te criei com o lápis – falei, e minha voz, há muito silenciosa, era ferrugem e pó. – Você passou a viver quando o meu lápis te trouxe do nada.
- Ainda estou no nada – falou a terceira. – Escreve o meu coração com o teu coração. Para que eu exista.
Escreve o meu coração com o teu coração. Aí sim o medo, pela primeira vez. Nunca o meu coração, pra ninguém. Escrever, muito menos. O lápis me permitia desenhar, contornar a possibilidade de alguém, trazer à vida mulheres de sonho, mesmo que parcialmente. Mas escrever era um desafio; desafio maior era escrever com o coração.
- Experimenta – disse a terceira. – Experimenta.
Foi dessa maneira então que a luz surgiu. O que antes era escuro e silêncio subitamente brilhou. A terceira, minha irmã, minha invenção. Não mais incompleta:
- Não falei?
A voz era perfeita, natural. Ela falava como uma mulher de verdade.
- Agora sou uma mulher de verdade – ela continuou. – Você me escreveu. Era isso o que eu precisava. Era isso o que você precisava.
Escrevi com o coração? Não sabia.
- Sim, sim, o coração – ela disse. – O coração, enfim!
Um novo mundo, uma nova vida. Eu e a terceira, felizes. Uma situação inteiramente nova pra mim: agora sol e luz o que antes era escuridão. A terceira também, uma menina sorridente e falante. Minha criação mais perfeita.
Minha irmã, foi aí que eu me dei conta. Minha irmã? Não não não! Minha criação, sim; irmã jamais. A sombra do pecado se infiltrando sorrateiramente no meu coração, o mesmo coração que trouxera à vida plena a terceira, minha invenção. Meu amor.
- Larga mão de bobagem – ela disse. – Isso de pecado é para os ignorantes, não se aplica à gente.
Parecia simples: somos mesmo de outra natureza, dois seres ímpares. Mas a minha consciência, esse martelo em chamas, batendo sem parar. A mesma mão que procurava a terceira no aconchego da noite era a mesma que a afastava logo em seguida.
O meu coração presente, sim, mas sofrendo como nunca. Esse o meu medo desde sempre: sofrer, sofrer. Eu via então a terceira ficando cada vez mais calada, distante. Não foi, portanto, nenhuma surpresa quando ela partiu.
Minha criação agora era coisa do mundo. Fora do meu controle. Controlei algum dia? Já não sei de mais nada.
Tenho aqui diante de mim o lápis, já aprendi a escrever com o coração. Mas sei que isso não é o suficiente. Ganhar e perder, a dor de perder. A escuridão, sempre ela, a escuridão.
(Claudio Parreira é escritor, chargista e vigarista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Teve contos incluídos nas antologias CONTOS DE ALGIBEIRA, da Editora Casa Verde, FIAT VOLUNTAS TUA, antologia editada pela Multifoco, e, também, DIMENSÕES.BR, da Editora Andross. Mora
Michael Jackson
Arte: Marco Angeli
* Uma sensação urbana paira nalgumas das telas do artista plástico Marco Angeli. Sua São Paulo, por exemplo, é percorrida em diferentes recortes históricos, algo a demarcar muito mais do que reproduções de uma época determinada. A virtude desse olhar é a possibilidade de extrair dos lugares e de suas respectivas paisagens um sentimento impregnado dos signos do tempo e seus matizes. Outro aspecto relevante de sua obra está na representação do humano, condição esta que cria, no retratar de gestos e formas, uma leitura particular daquilo a que denominamos por realidade.
Com uma trajetória profissional vasta, a qual abarca incursões pelo desenho, ilustrações, pinturas e trabalhos publicitários, Marco Angeli elegeu o figurativismo como via norteadora de sua arte. Tal predileção nos devolve, sob a forma de imagens, contornos possíveis para os homens e seus lugares, visões mundanas que também sabem recorrer aos recursos valiosos da memória afetiva.