31 de out. de 2010,10:00
QUINQUAGÉSIMA LEVA




Foto: Antonio Paim






CICERONEANDO


Completar ciclos é parte inerente de qualquer jornada pela vida afora. Vencem-se etapas e expectativas são redesenhadas ao longo do tempo. Frequentemente a sensação é a de olhar tudo como se fosse a primeira vez. Quando do seu nascedouro, um projeto jamais é capaz de precisar com exatidão tudo aquilo que irá materializar de fato. Esse algo se torna vivo e vai moldando-se mediante os desafios que se apresentam por entre os dias. Assim tem sido com a Diversos Afins ao longo de sua sucessão temporal. Atingir 50 edições é muito mais do que apegar-se à matemática dos volumes produzidos. Por aqui, tudo sempre fez parte do resultado de um esforço que visa exaltar o humano em suas variadas nuances. Os gêneros que movem a cultura são muito mais do que meras simbologias estilísticas, ou seja, representam a necessidade que temos de expor as epifanias face ao que julgamos abarcar a nossa tenra existência. A redenção pela arte opera num plano notadamente íntimo e pessoal e, mesmo assim, somos capazes de trazer à baila efeitos coletivos de tal experiência. Todas as Levas aqui produzidas são especiais pela gama de expressões mostradas. A grande aldeia global contida na internet opera no surpreendente nível de uma compressão espaço-tempo e tem possibilitado cada vez mais valiosas descobertas. Autores e suas criações podem ser vistos e sentidos sob os mais diversos prismas. E essa condição de visibilidade exige dos criadores um frequente exercício de renovação do olhar, além, é claro, de uma adequada dose de autocrítica. Talvez o maior dos desafios para se continuar os caminhos seja o de alcançar, em boa medida, maturidade. Hoje, 50 Levas representam um complexo de vivências ligadas essencialmente a pesquisas, leituras, observações e, sobretudo, escutas do outro e para o outro. Some-se a isso uma verdadeira paixão pelo discurso impregnado de vida que ronda as obras de escritores e outros tantos artistas. Agora, damos sequência aos nossos passos perscrutando o lirismo de poetas como Maria da Conceição Paranhos, Paulo Tavares, Ana Peluso, Luis Benítez, Iracema Macedo, Rubén Liggera, Sonia Regina, Jorge Elias Neto e Assis de Mello. Através das lentes de Antonio Paim, reservamos atenções a um mundo que passa desavisadamente ante nossos olhos. Numa pequena sabatina, o cantor e compositor Paulinho Moska nos fala sobre seu mais novo disco, demarcando expressões que o posicionam como um artista diferenciado. Os contos de Abilio Pacheco, Gerusa Leal, Alice Fergo e Augusto Cavalcanti refletem signos ativos dos tempos de então. O texto cinéfilo de Larissa Mendes nos convida a vislumbrar muito além do filme O Porco-espinho. No quadro Ouvidos Abertos, as virtudes sonoras de Jabu Morales e Gisele de Santi. Agradecemos aos nossos leitores e colaboradores pelo trilhar de mais uma importante via. Saudações sempre culturais a todos!


*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.



JANELA POÉTICA (I)


A INQUIETANTE TRANSILVÂNIA

Maria da Conceição Paranhos


Há caminhos de perder,
caminhos a se perderem.
Ser, no inquietante ser,
o meio.

Há paisagens por se abrirem,
paisagens por descobrirem
do gesto fugaz, temível,
o nexo.

Há felinos na retina,
asma esgarçando o peito,
agoniza no ar turvo,
um vulto.

Há dançarinos e tango,
vampiros sorvendo o sumo
de uma artéria adormecida,
sem pulso.

Há fileiras de canções,
vozes crescendo em rumor.
Não se divisa de quem,
o grito.


(Maria da Conceição Paranhos Pedreira Brandão nasceu em Salvador, Bahia. Poeta com vários livros publicados, de modo geral, devido a prêmios. Exercita outros gêneros: Ficção, Crítica de literatura e outras linguagens, Teatro, Vídeo, Tradução. É Doutorada em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia. O mais recente livro de poesia é Delírio do Ver (Rio; Salvador: Imago Editora, 2002). A maioria de sua obra, poética e em outros gêneros, é inédita (nove livros prontos))





Foto: Antonio Paim






ESPÓLIO

Abilio Pacheco


Vivia numa alegria enorme, cabendo mal em si. Havia nascido grande, perto de adulto. Seu pai-demiurgo o havia feito assim. Completo; à base de tinta em face lisa, alva e chã. Tinha amigos, nome e cor de olhos. Mais que isso, cosido e recosido, desfiado e retecido, tinha já história: plena, embora de curto enredo, intriga simples, desfecho claro. Sentia-se brioso.

E mais ainda, ao ter por certo, quando posto num cubículo escuro junto a outros parelhos seus, que dali sem tardança partiria rumo ao prelo. Ansioso sempre, de mais a mais, notava um fio de sol e a luz cegante, sentia ímpeto de... Antes, contudo, aumentado o aperto, o espaço de novo escurecia.

Às vezes, de surpresa, eram recolhidos e postos à mesa; ele ficava convicto da viagem à prensa. Eram remexidos, embaralhados, uns apartados, outros riscados, uns amassados, outros dobrados... mas ele sempre voltava à gaveta fria e bafia. Com o tempo se foi recolhendo, perdendo todo o gáudio. E mesmo quando sentiu bruscos vacilos no móvel, fado algum lhe apontou a mais remota edição.

Da escrivaninha ouvia vozes raras, portas rangentes, mastigados silêncios. Sentia-se estático e inconcluso, década a fio em meio trevoso. A face desalvecia. Seus parelhos encarunchavam, bafiavam mais. Até que, às vozes próximas, ouviu: “escritor”, “morreu”. Súbito, a luz! E de novo trevas. Desentendeu-se. Solavancaram seu casulo e saculejaram por via custosa a termo baldio. A convicção precária voltava de lenta e – sendo desfolhado de todos – sentia que, enfim, vinha a lume.


(O baiano Abilio Pacheco reside em Belém. É Mestre em Letras pela UFPA- Belém. Publicou Poemia (poesia) em formato semiartesanal em 1998, Mosaico Primevo (poesia) em 2008, e Riscos no Barro: ensaios literários (2009). É um dos organizadores da Antologia Literária Cidade. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense com sede em Marabá)





Foto: Antonio Paim





JANELA POÉTICA (II)


Atravessando o Inverno

Paulo Tavares


Finalmente, atinjo a margem:
acabo por beber a água,
banho o corpo com as memórias
residuais, esgoto o último dos sorrisos
que me reconheço.

Procurei durante a era glaciar
meio-vivo-meio-morto
um caminho ou uma ponte
para o rio onde se lavam as palavras.
Procurei as crateras dos meteoritos,
a evidência dos terramotos,
o rasto da humanidade perdida.
Ao longo do Inverno rigoroso,
tentei encontrar em cada laje dos cemitérios
que atravessei o nome dos antepassados,
o alento das origens, uma epígrafe para
a nova modernidade.

Mas os cemitérios
são já campos de cultivo
e as campas estão vazias.

Nunca houve uma cratera
na ordem natural dos desastres.

Meio-morto-meio-vivo
banho o peito na corrente
sempre inconstante do rio mítico
e bebo a água para que seja possível
voltar a lembrar.

O gelo voltará um dia,
restituindo os cadáveres e germinando
o invólucro dos significados


(Paulo Tavares (Lisboa, 1977) é professor de Português e de Inglês. Desenvolve atualmente uma tese de doutorado na área dos Estudos Literários. É investigador do CETAPS (Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies) e do CECL (Centro de Estudos de Comunicações e Linguagens) da Universidade Nova de Lisboa. Publicou os livros de poesia Pêndulo (Quasi, 2007) e Minimal Existencial (Artefacto, 2010))




OUVIDOS ABERTOS (I)

Por Fabrício Brandão


JABU MORALES – JABU



Dentro de nossos rincões de proporções continentais há uma riqueza sonora que ainda percorre os caminhos de modo despercebido. Isso se reflete de maneira recorrente, tendo em vista a quantidade imensa de artistas que tocam a ferro e fogo seus projetos pessoais, mesmo não sabendo até aonde os passos podem alcançar. E muita gente só foi descoberta por causa das perspectivas encerradas no ambiente virtual. O que toca em rádios e predomina num desgastado círculo fonográfico nem de longe representa o cenário fiel de nossas possibilidades. É necessário pesquisar a fundo e sentir as expressões musicais que agora surgem. Esse tipo de raciocínio pode ser bem aplicado quando, por exemplo, percebemos as virtudes do trabalho de um alguém como Jabu Morales. Em seu disco de estreia, a cantora, compositora e também percussionista visita com precisão ritmos populares e brincantes do Brasil, tais como o Maracatu de Baque Virado do Recife e o Tambor de Crioula do Maranhão.

No álbum, a pesquisa musical aflora rica e verdadeira. Some-se a isso a capacidade vocal de Jabu em transformar letras que tratam de amor e outros tantos assuntos da existência num canto suave e recheado de uma agradável poesia sonora. Ao mesmo tempo em que promove um percurso pela tradição popular, o disco bebe na fonte de referências modernas, fundindo elementos eletrônicos, acústicos e orgânicos num valioso caldeirão cultural. Há uma serenidade muito bem postada no samba de Melão com Lira. Os arranjos latinizados de Gastrotema trazem à tona os desafios de nossa plural nação. O que dizer, então, de Frívolo, canção que encerra a fugacidade de nossos tempos? As referências de cunho popular ganham corpo em faixas como Mãe Sereia e Sendero Mestiço. É impossível deixar de mencionar a beleza presente em Salsa Crioula, composição carregada de suingue e brasilidade. A julgar pela seleção de repertório e, também, pela costura sonora abrigada nos arranjos, Jabu consegue manter, do início ao fim, um grau equilibrado de qualidade. O mais interessante de tudo é poder perceber que as fragmentações de mundo aqui propostas, sejam elas pessoais ou coletivas, acabam por construir um sentido de unidade para as coisas, tudo a serviço da boa música.


* Para abrir os ouvidos ao disco, clique aqui





Foto: Antonio Paim





JANELA POÉTICA (III)


NECESSÁRIO E SUFICIENTE

Rubén Liggera

Tradução: Antonio Miranda


Para viver bastam-me, oh, gigantesco avô Walt!
do sol
esta minúscula porção quadrangular,
o doce
amargor
de um talo de erva entre os dentes
e a lembrança meio triste de uma mulher.

(Um vai-e-vem sem rosto. Uma contraluz da memória.
Apenas
o roce insuspeitado do perfume de uma tarde
contra o lascivo decote do estio.

Talvez
essa leve desnudez que passeava sua dourada inocência
pelas veredas quentes de Sáenz Peña)


(Rubén Américo Liggera nasceu em Buenos Aires. É professor de História e Letras, jornalista e poeta. Tem textos publicados em jornais argentinos e estrangeiros. Entre as suas obras, estão os livros de poemas Pido Gancho (1972) La fuente de los deseos (1973), Agua Desnuda (1990), Piadosa Luz (1997) e Cenizas de Alejandría (Finalista do Concurso Internacional de Poesía “Olga Orozco”, revista nómada-UNSAM, 2008))





Foto: Antonio Paim





UM COCHILO DEPOIS DO JANTAR

Gerusa Leal


Quando parava o que estava fazendo, percebia o quanto o apartamento era grande e silencioso àquela hora da tarde. Boa parte da arrumação já estava terminada. Encaixou Autran Dourado entre Augusto dos Anjos e Balzac e imaginou o que pensariam os autores, das improváveis companhias a que a vizinhança os obrigava. Depois ajoelhou no chão e acabou de organizar a prateleira de baixo da última estante. O marido entrava, sentava do lado e começava a pegar um livro, depois outro, depois outro e ao devolvê-los ia trocando as posições. Até que ela, com fingida raiva, atirava nele o exemplar que ainda tivesse nas mãos para fazê-lo parar. Ele saltava, se esquivando, roubava-lhe os que ainda não haviam sido recolocados, ela interrompia a tarefa e ia curtir o companheiro.

E o mundo continuava a girar, independente dela. Queria dançar. Colocou o CD, e ao som de don’t let me be misunderstood deixou que o Santa Esmeralda conduzisse braços, pernas, cabeça, o corpo inteiro em coreografias improvisadas onde só o que importava era se mexer no ritmo da música. A filha e as amigas chegavam, ela congelava a performance, disfarçava, passava a mão por cima de um móvel para conferir se não havia poeira depositada.

Amanhã a poeira voltaria a se depositar, feito todos os dias. Mas não importava. Não a incomodaria mais. O telefone tocou. Desligou o som e foi atender. Era a filha. Para desejar que a noite fosse de paz. A filha sempre teve a arte de conseguir inibi-la quando estava fazendo algo prazeroso. Tinha um sexto sentido para isso. Guardou o CD e acabou de colocar o último livro na prateleira.

Não havia pena, nem raiva. Queria tudo perfeito. Forrou a toalha branca, pôs o prato, o talher, a taça, o arranjo de flores. Viu a agenda aberta sobre a mesa de centro, nenhum compromisso anotado para o dia seguinte. Fechou, colocou a caneta ao lado. Passou na cozinha, conferiu o assado, foi para o chuveiro.

O órgão tocava o oratório de Natal de Bach. Ainda conseguiu lugar, mas nas últimas filas. Não fazia mal. A acústica da igreja era excelente. Mergulhou naquele oceano de sons, vibrações, odor de incenso e de cera derretida em pingos que escorriam feito lágrimas, numa solidão congelada de parafina. Lembrou que não havia trocado o lençol da cama. Deixou para lá. Talvez ninguém passasse da sala mesmo. Pelo menos nas primeiras horas.

Degustava o tender saboreando o contraste do salgado da carne e o agridoce do molho com cereja. O vinho aquecia por dentro. As velas perfumadas queimando lentamente sobre a mesa.

Checou mais uma vez a gaveta dos documentos, todos os importantes estavam ali. Não queria dificultar a vida de ninguém. Sentou no sofá e recostada nas almofadas começou a ver o especial na TV.

A faxineira passou para apanhar o celular que havia esquecido na véspera no banheiro de serviço. Ligou para a filha da patroa, era o primeiro número em caso de necessidade. Não era notícia que ninguém gostasse de dar, principalmente numa manhã de Natal. Mas o que é que ela podia fazer? Pelo menos a patroa já estava no seu melhor vestido, o par de sapatos preferido, bem penteada e maquiada. Ela de fato nunca havia gostado de dar trabalho a ninguém.

Era um bom emprego, ia sentir falta. Da patroa também, é claro.


(Gerusa Leal é escritora entre o conto e o poema. Psicóloga de formação, leitora crônica. Pernambucana, recifense, reside em Olinda. Tem escritos publicados em várias coletâneas e antologias. Alguns contos e poemas premiados isoladamente e seu primeiro livro-solo, “Versilêncios”, é Prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras. Trabalha num livro de contos, colabora com a revista eletrônica Histórias Possíveis)





Foto: Antonio Paim






JANELA POÉTICA (IV)


NAS MÃOS DO PESCADOR SUSSURRA O OCEANO

Sônia Regina


"O cisco sentado no banco da praça
insiste em ser o poema que permanecerá por séculos."
Cássio Amaral


olhei atentamente essa âncora
lançada à boca do rio
- nua de barco.
Sem tato, é um lastro à mercê
do turbilhão de pássaros
da elipse do dia
[sem percepção dos instantes
voando no arco da memória]

o pranto transmutado em ária
acontece numa travessia discreta.
nas mãos do Pescador sussurra o oceano
e eu, marejada, tropeço nas palavras

o movimento imperceptível do tempo
pisca certezas, a generosidade
me acena de um cisco

e o poema nasce, na delicadeza da passagem.


(Simplesmente soreg, ou SR: é como a escritora e poeta carioca Sonia Regina assina seus trabalhos de arte digital. Fundou, em 2001, o periódico digital Laboratório da Palavra e, em 2009, a revista eletrônica Letras et cetera, dos quais é a editora responsável)





Foto: Antonio Paim





O MOMENTO

Alice Fergo


A que fonética um coração responde? Em que sílaba de um vocábulo se espera alguém? Que imperceptível ponto fecha o arco das maçãs no jardim das Hespérides? Difícil saber o guião todo. Incerto, o travo orgânico das falas. Metade escuro. Metade claro. A penumbra induzida pode ser fatal. Admito, já vi a opala da lactação dos céus – vinha doutra ortografia a sua voz – não estava só, fantasiava a noite com risos e recreios, de momento, a branco.


(A poeta portuguesa Alice Fergo é formada em História pela Universidade Clássica de Lisboa. Lançou, recentemente, “Quando junto às horas se ilumina um rio” (Labirinto, Fafe, 2009), o seu terceiro livro)





Foto: Antonio Paim





JANELA POÉTICA (V)


ANTES QUE DIGAS NADA

Luis Benítez


Tú vas por el mundo, reina del país de los ojos infinitos,
con la boca salada y lista, sin saber que todo
ya ha sido partido y repartido.
Antes que digas nada, la vida y la muerte han ocupado
sus lugares y la orquesta ataca con la sangrienta
sinfonía del nacimiento;
(lloran los actores desnudos al salir a escena)
mientras un salvaje verdugo apaga y enciende
las luces a su antojo. Antes que digas nada,
escucha al corazón de la vida golpear con furia
en otros como en ti golpea. Por esos golpes dejamos
que piel y huesos fluyan como ríos.
Somos hombres y por ello, lo olvidamos.
Antes que tu roja boca se abra en un beso o un mordisco
todo estará ya en marcha, el beso ya fue dado,
y las ruedas del día y los remolinos de la noche
tendrán su bailarina loca fugitiva entre ruedas;
eres del asombro y eres de las penas
que jamás cierran los ojos.

Y antes que digas nada el mazo estará mezclado, las cartas dadas.
Pero por esa tu rabia inútil, alerta como una oreja,
hermosa y sin sentido como las flores, es que sigo
tus pasos, Inés Sandín, la de los ojos infinitos,
con las pocas cosas que conozco tan erradas:
mis libros, mi pasado y mis palabras.


(Luis Benítez nasceu e vive em Buenos Aires. Sua poesia tem recebido diversas premiações por países da América Latina e Europa. Recebeu o título de Compagnon de la Poèsie de la Association La Porte des Poètes, com sede na Universidade de Sorbonne, em Paris. Seus 24 livros de poesia, ensaio, narrativa e teatro foram publicados na Argentina, Chile, Espanha, EUA, México, Venezuela e Uruguai. Recentemente, a editora espanhola PUBLICATUSLIBROS.COM organizou, num e-book, a obra “Poemas Completos (1980-2006)”, que podem ser baixados gratuitamente aqui)





Foto: Antonio Paim





PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão


O ato de viver a arte jamais será assemelhado às características de uma ciência exata. Criações não se prestam a fórmulas definidas, tampouco percorrem caminhos traçados na busca mecânica de uma incógnita qualquer. Experimentar as vias artísticas é, antes de tudo, um encontro profundo com o que há de mais humano em nossas essências. É, então, que a missão daquele que desvela as imagens e os sentidos pulsantes em seu âmago revela-se urgente. Antes das criações, existem homens e suas convicções, todos eles desejosos por externar suas expressões mais íntimas. Basta abrir escutas e logo percebemos artistas comprometidos com a ótica sensível da existência. Pessoas que fazem de seus projetos profissionais verdadeiras e coerentes propostas de vida. Um exemplo marcante de tal perspectiva encontra abrigo na trajetória do cantor e compositor Paulinho Moska, artista que chama atenção pela forma pungente como percebe a si mesmo e aos reflexos de sua obra.

Condutor de uma carreira pautada num olhar perspicaz e sensível sobre um todo circundante, Moska é definitivamente um artista comprometido com o seu tempo. Ao longo de sua estrada musical, predomina a força do texto amalgamada à melodia cativante das canções. O verbo de suas letras ousa vociferar a poesia entrecortada dos dias. E assim somos conduzidos a um terno sentimento de mundo. Após alguns anos e muita experiência acumulada pelas vias sonoras, Paulinho Moska está envolto numa nova fase de sua carreira, pautada, sobretudo, na condição de artista independente. Como ninguém, sabe administrar os reflexos dessa escolha a favor da renovação de seus caminhos. Nessa entrevista, o artista nos fala do seu novo rebento, o álbum duplo Muito Pouco, disco que dialoga coerentemente com nossas ambiguidades. Ao mesmo tempo, discorre também sobre Literatura, a valiosa experiência à frente do programa Zoombido e a influência das novas mídias no seu trabalho. De todo o dito, resta certa a ideia de que a música brasileira abraça rumos vigorosos.


Paulinho Moska
Foto: Valentina Comunicação


DA - Depois de algum tempo sem gravar um disco exclusivamente seu, você traz à tona o Muito Pouco, álbum duplo que chama atenção de imediato pelo nome de batismo. Como esse verdadeiro jogo de antíteses funcionou na concepção desse trabalho?

PAULINHO MOSKA - Depois de muitos anos escrevendo canções, comecei a perceber minha própria assinatura. Gosto dessas expressões que você chamou de “jogo de antíteses” e eu apelidei de “coerências dos paradoxos” (risos), que é quando estamos diante de um jogo de palavras que, ao invés de significar algo imediatamente, nos põe em uma sinuca de sentidos. “Cheio de Vazio”, “Tudo Novo de Novo”, “A Moeda de Um Lado Só”, “Corpo Histérico”, “Dúvida Certa”, “Mar Deserto”, “Mentiras Falsas”, “Para Sempre Nunca Mais” são títulos de canções minhas que estão nessa sinuca de bico. Dentro das canções, essas expressões vão aparecendo quando escrevo. É uma busca e uma prisão ao mesmo tempo. Não consigo fazer diferente. Sou seduzido por elas, e não resisto. O projeto “Muito Pouco” também foi assim. Das canções às fotos, tudo foi construído em torno da relação Muito/Pouco. Muito pra mim é tão pouco... e pouco é um pouco demais.


DA - Enquanto Muito promove um percurso pelo pop, Pouco possui uma conotação poética, trazendo inclusive letras mais densas e reflexivas. Guardadas as devidas proporções das diferenças, tudo acaba dialogando com a realidade, principalmente com as dualidades que carregamos em nossas sinas. Seria uma forma de provocação fazer com que tais antagonismos se abracem?

PAULINHO MOSKA - Eu sou um ateu ativo (isso não é uma provocação (risos)). Acredito que a própria vida foi criada em consequência desses antagonismos. Dia e noite, claridade e escuridão, quente e frio, reações químico-físicas. Até hoje somos assim. Uma variação dual. Alegres e tristes, tímidos e extrovertidos, fiéis e traidores. A dualidade se alterna e a percepção os absorve sem distinção. A vida não reconhece essa diferença porque, na essência, ela é a síntese dessa mistura. O que chamamos de antagonismo é o abraço da vida. Muito Pouco é um abraço na poesia da vida. Começa devagar e termina com saudade.


DA - A conjunção entre texto e música é algo bem vivo em sua trajetória. Imagens e palavras sugerem sons ou o contrário predomina?

PAULINHO MOSKA - No jogo da composição acontece de tudo: palavras que geram melodias, sons que se parecem com sílabas, imagens que sugerem certas atmosferas sonoras. É uma combinação de muitos estímulos. Começa na fala. Quando falamos usamos uma “entoação”, que é a melodia da fala. Uma frase pode ser dita de várias maneiras, com entoações diferentes, ou seja, todos nós fazemos essa composição “melodia/fala” o tempo todo. Compor uma canção popular é encontrar uma entoação adequada para um determinado texto e/ou vice-versa, tentar descobrir quais palavras/sentidos aquela melodia pode dizer. No meu caso nada predomina. Uma coisa liga à outra. Às vezes começa na letra e outras na música.


DA - De que maneira a Literatura influencia suas composições?

PAULINHO MOSKA - Eu já quis ser Nelson Rodrigues, Charles Bukowski, TS Eliot, Fernando Pessoa, Allen Ginsberg, Camões, William Shakespeare, Castañeda, Saramago, Neil Gaiman, Paul Auster, Virginia Woolf, Manoel de Barros, Guimarães Rosa e muitos outros. Mas, tentando imitá-los (e não conseguindo), acabei sendo obrigado a procurar cada vez mais minha própria assinatura. Na literatura, assim como nas outras artes (pintura, dança, teatro...), me interessa mais a linguagem, o estilo, o modo de fazer do que a história, o personagem, a cronologia. Tento observar a construção do caminho que o escritor/poeta/artista desenvolve, ao invés de tentar chegar até o final. Não termino muitos dos livros que começo a ler.


DA - Você é um tipo de artista que interage bem com as novas mídias sociais, aspecto que estreita os laços com os apreciadores de seu trabalho. O quanto isso tem sido relevante para sua carreira? Esse tipo de interação já foi determinante para algum projeto específico?

PAULINHO MOSKA - Não há dúvida de que estamos atravessando uma revolução planetária/humana na forma de se comunicar. As novas mídias, mais do que uma mania ou moda, reinventam a relação entre as pessoas. Gosto da ideia de que, através de um Tweeter ou de um FaceBook, eu possa dialogar com pessoas interessadas no meu trabalho. É mais direto. Sou um artista independente, tenho meu selo, produzo meus projetos. “Viralizar” meu conteúdo tem sido minha maior ação nas redes sociais. É uma forma eficiente e barata de divulgar. E funda um novo homem/artista.


Foto: Valentina Comunicação


DA - O programa Zoombido, apresentado por você no Canal Brasil, possui uma fórmula que não se desgasta, qual seja a de promover escutas pontuais, diferenciadas e sensíveis sobre artistas e seus trabalhos. De que modo essa experiência tem impactado o seu olhar sobre a música?

PAULINHO MOSKA - Quando eu era adolescente e comecei a tocar violão, eu pensava, ingenuamente: - um dia vou tocar com todos esses artistas que eu escuto na rádio, nos discos, na TV. E o Zoombido é uma forma de realizar esse sonho. É uma experiência humana/artística muito intensa. Aprendo muito. Não só música. Apreendo muito. Tento assimilar o outro, observando-o, fotografando-o, tocando e cantando com ele. Meu papel no “set” de filmagem é admirar. O Zoombido é um programa sensível, ele não compete com a urgência comum. E é quase uma “pesquisa científica” (risos) porque temos uma grande quantidade de artistas brilhantes falando sobre a mesma coisa: a criatividade musical e suas sensações. A música é realmente um campo de expressão muito diverso e o Brasil é onde essa diversidade acontece com mais exuberância.


DA - A quantidade de cantores e compositores que hoje surge no Brasil é absurda. De fato, há muita gente de qualidade, mas existe também uma tendência de uniformidade pairando por entre algumas tantas expressões. Com que olhos você observa esse movimento?

PAULINHO MOSKA - O Brasil, desse tamanho, com um povo formado pelo encontro genético/cultural de indígenas com brancos e negros, produz a explosão dessa pluralidade principalmente em forma de música. A mistura que nos cunhou continua em ebulição e novas derivações vêm aparecendo. As linguagens vão se amalgamando tão sutilmente que não percebemos as mudanças. Tudo se contagia na cultura brasileira, justamente porque somos também uma consequência desse mesmo contágio. A uniformidade aparece mais no “mainstream” porque há sempre uma tentativa de viabilizar-se. E nessa tentativa podemos nos tornar um pouco menos aventureiros, mas sempre tem uma gente mais nova e mais corajosa que acerta na mistura e sintetiza um movimento que estava no ar. E aí detona uma nova força nos movimentos. Chico Science foi assim. Los Hermanos também. Cássia Eller...


DA - Após alguns bons anos de carreira, você tornou-se um artista independente. Como isso tem se refletido em seus caminhos?

PAULINHO MOSKA - O que me vem à cabeça primeiro é a “liberdade”. Em sete anos de vida independente produzi sem prazos de entrega. Entrava no processo e, quando a obra estava pronta, negociava a distribuição (foi assim com meu DVD, com o Zoombido e com o novo CD). Isso permitiu que eu pudesse trabalhar com calma, refletindo e lapidando mais cada produção. Trabalho mais, em todos os sentidos. Montei uma equipe mas me meto em tudo. Sou o presidente e o boy da empresa. Mas sou o dono da minha obra. Isso é um privilégio.


DA - Podemos esperar do Muito Pouco uma turnê nacional de shows?

PAULINHO MOSKA - Agora que meu filho completou dois meses de vida vou começar a viajar. Em outubro tenho 13 shows pelo interior de São Paulo. Em novembro, o Muito Pouco vai passar por São Paulo (capital), Brasília, Belém, Buenos Aires e Montevidéu. Espero passar em todas as capitais brasileiras com o show completo, com banda e cenário (com projeção de filmes e fotos)!






Foto: Antonio Paim





JANELA POÉTICA (VI)


Ana Peluso



narrar os pequenos acontecimentos do dia

uma lâmpada que queimou

um conceito lógico sobre a fofoca

cheiros e temperos

a salvação da humanidade

um novo mar que abriu-se

...........................em óleo

os erros mais comuns da ortografia

se a ciência chega a tempo

se virão tropas de choque

e colidirão imagens

sobre todas as cabeças

em um dia comum de pequenos acontecimentos

homens negociam

idéias de enriquecimento


homens como novelos

de uma lã tão tosca



(Ana Peluso, 1966, paulistana, escritora poeta, artista gráfica, participou de algumas antologias, e bloga no IN THE BOX)







DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Larissa Mendes


O Porco-Espinho (Le Hérisson). França. 2009.



“Somos porcos-espinhos na vida. Mas no geral, sem elegância”.


Vista-se com toda sua excentricidade ou normalidade. Refugie-se de si num destes esconderijos. Exiba a solidão de não ser mais um. Proteja-se da vida comum com uma couraça apática ou peculiar. De qualquer forma seus espinhos acharão a quem ferir: você mesmo. Apesar de exibir uma infinidade de gatos – animais igualmente enigmáticos, é verdade – e nenhum da família dos ouriços, O Porco-Espinho poderia possuir tal título apenas por cutucar nossa superficialidade. Mas “a toca” é mais embaixo.

Paloma Josse (Garance Le Guillermic) é uma exótica menina de onze anos, residente em um luxuoso edifício de Paris e está decidida a suicidar-se em seu décimo segundo aniversário. Enquanto os 165 dias para a tão aguardada data não chegam, a inteligente garotinha, fascinada por desenho e filosofia, passa o dia com uma câmera na mão documentando seu cotidiano junto à família e à vizinhança. Renée Michel (Josiane Balasko) é a zeladora do prédio onde vive Paloma. Viúva ranzinza, orgulha-se em manter o estereótipo de concierge, para que ninguém perceba que por trás de sua roupagem anti-social e pouco vaidosa esconde-se uma mulher erudita, ávida leitora de Tanizaki à Tolstoi, de Marx à Feuerbach. A vida dessas moradoras da Rue de Grenelle cruza-se definitivamente com a chegada de um novo vizinho, o distinto Kakuro Ozu (Togo Igawa), japonês sensível o suficiente para enxergar além do que seus pequenos olhos podem ver. Enquanto Paloma tem consciência do quanto a vida pode ser enfadonha e não quer passar o resto de seus dias como um peixe no aquário, Renée – que tem um oceano dentro de si – esforça-se para viver como um betta num saco plástico, recipiente este prestes a ser rompido por Kakuro.

Abordando um tema ácido afinal suicídio infantil é um assunto bastante insólito o filme consegue ser irônico e tocante ao mesmo tempo, alternando a narrativa entre as duas protagonistas. Baseado no elogiado romance A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery, o longa é a estreia da jovem cineasta francesa Mona Achache. Fiel em grande parte dos diálogos e na profundidade da trama, o enredo questiona valores como o sentido da vida e da felicidade, a morte enquanto tragédia ou redenção, e vai além da representação simplista de que as aparências enganam. O Porco-Espinho é um belo filme sobre dramas pessoais e universais, couraças físicas e psicológicas. O próximo espe(c)tado(r) pode ser você.


(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)





Foto: Antonio Paim





JANELA POÉTICA (VII)


BORGIANA I

Jorge Elias Neto


Atiro os cacos
do espelho partido.
Busco-os no chão,
onde as imagens já se dispersaram.

Com o que resta na moldura,
brinco de cortar os dedos,
encaixando respostas
no rosto trincado.

E se no entanto a figura
se assemelha ao medo,
remisturo todo
o ser desfigurado.

Pois a faina louca
de remexer segredos,
fez-me encontrar as sombras
dos dias passados.


(Jorge Elias Neto é capixaba de Vitória, médico cardiologista e poeta. Envolvido na tarefa de conciliar o tempo entre o palpável e o intangível. Sempre tentando descobrir a quanto dista o zelo do cientista, do abuso apaixonado do poeta com a palavra. Publicou Verdes versos (2007 – Flor&cultura) e, recentemente, Rascunhos do Absurdo (2010 – Flor&cultura)





OUVIDOS ABERTOS (II)

Por Fabrício Brandão


GISELE DE SANTI – GISELE DE SANTI



Perceber o saber e o sabor das coisas sempre traz como lembrança marcante as sensações de uma primeira vez. Para um artista, poder materializar o fruto de suas criações inéditas certamente resume-se num marco essencial de toda uma trajetória que se quer consolidar. No caso específico de cantores e compositores, o primeiro disco torna-se um verdadeiro divisor de águas, separando a gestação de um sonho das consequências de sua efetiva realização. Pela qualidade presente no álbum de estreia da gaúcha Gisele de Santi, é possível imaginar o significado precioso de se debutar na confecção de um disco. E aqui não estamos diante apenas de um trabalho de interpretação, mas, o que é melhor, um projeto inteiramente autoral, característica que, por si só, atrai de imediato nossas escutas. A cantora faz parte da nova e promissora cena musical porto alegrense e surge disposta a cativar outros tantos ouvidos pelo país afora.

O disco homônimo traz uma artista sensível e com um grande potencial vocal. Com propriedade, Gisele assina todas as composições nele presentes. Do início ao fim, o que se pode sentir é uma atmosfera de intensa qualidade musical, mesclando gêneros como o samba, bossa nova e alguns lampejos de pop. Os arranjos, regados a violino, violoncelo, piano, acordeom e trompete, dentre outros precisos instrumentos, ajudam o disco a se firmar como algo muito bem trabalhado e, portanto, de uma considerável riqueza sonora. Não há como negar que canções como Chama-me, Morena Branca, Mais Uma, E eu? e Por aqui são momentos bastante especiais desse álbum. Ainda assim, há espaço para se destacar a melodia suave de Canção do Sol. As letras de Gisele são muito bem construídas e criam um conceito de simplicidade, fato que se harmoniza com as perspectivas sonoras evocadas pelo repertório. Sem estardalhaços e exageros, o álbum se apresenta na medida certa até mesmo para audições mais exigentes, provando que a primeira vez pode sempre acontecer entre os nossos dias.


* Para abrir os ouvidos ao disco, clique aqui





Foto: Antonio Paim




JANELA POÉTICA (VIII)


LANCE DE DARDOS


Iracema Macedo


Como se fossem de mármore
Os dardos duram dentro de mim
perfeitos
E aprendi com eles a lançar-me
e aprendi com eles a ter medo
a me esconder dos nomes
fugir das luzes fortes
e da insensatez dos automóveis
Aprendi com os dardos
uma espécie de vida iluminada
uma sutileza para arremessos
estratégias de ataque
fugas
um modo impecável de me abrigar da chuva
E aprendi também uma crueldade
e uma coragem toda feita de começos


(A poeta potiguar Iracema Macedo é professora de Filosofia do Instituto Federal Fluminense (IFF), Cabo Frio/RJ. Em 2006, lançou sua tese de doutorado em Filosofia “Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos” (Annablume, São Paulo). Publicou dois livros de poemas: Lance de dardos, Edições Estúdio 53, Rio de Janeiro (2000) e Invenção de Eurídice, Editora da palavra, Rio de Janeiro (2004))




Foto: Antonio Paim





O SILÊNCIO DOS CORDEIROS

Augusto Cavalcanti


Descrever a insônia traz um gosto tão desagradável quanto o amargo humor do abstêmio. Não passaria perto do processo se contasse sobre a luz em taco de madeira. Ou do casebre em seus arbustos de acanto. Ou o cheiro de lavanda no campo. Mesmo a lavanda sendo abstrata, ela tem fonte concreta e fora. O lúdico aqui é seco, está em todo o céu da boca de quem mal acorda. Não há violinista que pega a tonalidade desse suspiro. Bem compreende o “mal dormir” aquele que não dorme. A treva tem seus segredos e silêncios. Insidiadas no exagero etílico, incontrolável e fraco torna-se o mudo, apresentam-no como carta de visita o berro, em troca do descanso. O espírito contrariado se vinga com mais destreza e eficácia que qualquer bom conselho dado. Não dorme e nem bebe.

- És jovem ainda, contas com toda a vida pela frente, por quê?

- Se não estivesse ébrio, choraria.

Podemos elevar-nos numa viagem, de como no corpo, o excesso persegue o brilho, numa linha tênue, como o ocaso parece seguir a aurora, trocando as cores, pois o que o acorda é o escuro. O tempo passava insaciável, poderia dizer que vivia bem, olhando-o de soslaio alguma boa consciência.

Apresento-me para falar sobre algo que grita, e logo lhe servem um copo, pareceu-me cortês aceitá-lo, sem regra de quanto seriam as doses, desde a tenra idade, confundia as vozes.

Venus as a Boy envolvem-no como se Bjork fosse uma deusa próxima. Deram-lhe um quarto claro e limpo. Já faz anos lhe apresentam não mais os rostos tranqüilos, de repente a preguiça doce e confortável esvaiu-se como um isqueiro lançado num campo de centeio. Seu corpo não responde com graça e riso ao enfado da pergunta que o acorda. Toma um gole de ar, já que as conversas mudam a cada momento o tema, e com profundidade pede ao outro:

- Você me adiciona que eu te sigo.

- Sinceramente, não é o que esperava agora.

E mesmo vendo que afunda numa sinfonia de deserto, acorda.

Pisa no chão, com o cérebro ainda cheio de estímulos vindos de um lugar escondido, artificial como o calor de calefação. O desequilíbrio não difere de estar sobre uma superfície de embalagens de ovos, não tem mais graça, é cinza e percebe ser o primeiro grito que sonda. Algo o empurra para fora, o espírito chama-nos para um dialogo junto de manchas, no teto das pálpebras. As sombras da mente são desenhos numa tela sem apoio. Uma lírica pagã, de esquerda. Acorda e o muro já era.

- Apóie-me Deusa, antes que eu caia.

Ele apóia as costas e esbarrando-se, agacha-se – Suas costas – ele diz. – Sentir o frio delas é mais fácil que chorar. O branco do gesso na pele. O afresco o consome. A parede foi construída na época em que percebeu como cantam os sons. Aqueles que deveriam ajudá-lo berravam mais alto que as cabras na maculada alma.

Na noite anterior, flores roxas caíam da árvore. Ele esticou os braços esperando que alguma batesse e ficasse ali com ele. Eram como flocos de neve, aquelas frágeis coisas, pois o vento que as fazia soltar não é como a intenção humana. Ela acontece. Ele percebe que passa a imagem de uma morte não findada e prematura. Bateu.

- Como vou explicar-te...

Alguém ri e diz – Você é engraçado.

Pretendia dizer como The Silence of the Lambs era o nome que cabe pelo diálogo entre Judie Foster e Anthony Hopkins. Seria o bom verso que retorna para a trama.

Tinha a percepção de harmonia nas palavras. Não o sabia dizer, pois o sentido é tênue como uma linha. Soubemos pela notícia. Toca o telefone e parece ser Clarice. Será que perceberiam o que o tornaria ébrio de novo? Seria o bom verso que retorna para a trama.


(Augusto Cavalcanti tem sido alguém em diversas profissões, mas considera-se mesmo escritor, roteirista e poeta)






Foto: Antonio Paim





JANELA POÉTICA (IX)


FANTASMAS

Assis de Mello

(Para Ana Ramiro e Marcelo Tápia)

Dos verdes
escolheria o chorão
& o gramado

poria um gato
& um sapo que coaxasse
silêncios

pra compor uma cena
que a lua gostasse

Afastaria qualquer riso
de criança
traria a silhueta de um bêbado

algo de hesitação
arrepios
um dedo de bruma
o ciclo das mulheres

o desejo
de algo proibido
& um tremendo medo de Deus

Pegaria então os pincéis
& podaria a raiz
de qualquer atitude


(Assis de Mello é zoólogo e docente na UNESP. Escreve um pouco, pinta um pouco e fotografa um pouco. Apesar de ser cientista, passa 50% de seu tempo abominando Descartes e tudo aquilo que é excessivamente racional, pois está convicto de que certa irracionalidade deve trazer felicidade. Como zoólogo, especializou-se no estudo de grilos e insetos afins; ele suspeita que, se não for o maior especialista em grilos, deve ao menos ser o mais completo, uma vez que possui tanto grilos nas gavetas de seu laboratório quanto em sua cachola perturbada, porém lírica)





Foto: Antonio Paim



* Uma a uma, as imagens do fotógrafo baiano Antonio Paim, aqui expostas, sabem falar da poesia escondida dos dias, de como seres e lugares deixam de lado o embrutecimento imposto pela rotina e passam a exprimir o sentido sublime que dá vazão às suas existências. Antonio ousa penetrar com valioso distanciamento no universo das manifestações populares. Esse viés antropológico percebe os estranhamentos e sabe ser parte integrante da vida do outro sem roubar-lhe as suas convicções e esperanças. Noutro momento, a arte do fotógrafo frequentemente volta suas atenções para a dinâmica urbana de pequenas e grandes cidades. Nessa perspectiva, a arquitetura dos lugares retratados vem impregnada de silêncios, cores e formas, algo que transcende as muralhas de concreto e ruídos erguidas pelos homens.

 
publicado por Fabrício Brandão
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