31 de jan. de 2011,14:28
QUINQUAGÉSIMA TERCEIRA LEVA





Foto: Vinicius Xavier






CICERONEANDO

Há quem creia firmemente na ideia de que não há nada de novo sob o sol que nos abraça. Mesmo se defendermos tal perspectiva, chegaremos num ponto onde tudo apontará para outra dimensão: a das transformações. E tal acepção pode ser bem mais ampla do que imaginamos. Crer na retroalimentação de um tudo não significa banalizar o potencial criativo que pode eclodir a cada instante nas mais palpáveis mentes. É sedutora e, ao mesmo tempo, desafiadora a imagem que guardamos da criação, quando entendemos que tudo já existe no mundo e nós apenas emprestamos sentido e formato a muitas coisas. Então, para que sofrer pela busca obstinada de um conceito vanguardista que talvez jamais tenha habitado entre nós? Qual o verdadeiro valor de estar à frente de um tempo qualquer? Todas estas questões não parecem ter muito mais importância do que o artista saber-se a si mesmo como ponto de partida para refletir sobre a própria existência e, desse modo, interagir com seus semelhantes por meio de uma comunhão universal de signos. E é isso que, de fato, a arte, em sua múltipla estrada, é capaz de nos proporcionar. Algo que parta do indivíduo rumo ao coletivo e vice-versa, sem representar amarras de olhares viciados, mas sim dispostos a tecer válidas representações de mundo, este mesmo que recriamos sempre com nossas virtudes e misérias. A despeito de toda essa amálgama inventiva, é que podemos nos ver um pouco nos elementos exarados na poesia de Luísa Henriques, Conrado Yasenza, Marize Castro, Heitor Brasileiro Filho, Maria Angélica e Rubén Valle. Entrecortando os textos de então, vemos os tons sensíveis de um olhar especial sobre o homem através das fotografias de Vinicius Xavier. Não menos pungentes são os arrebatamentos tidos na leitura dos contos de Andréa del Fuego, Geraldo Lima e Assionara Souza. Em nossa conversa com o artista, estão em foco as opiniões do poeta lusitano Victor Oliveira Mateus, que nos fala um pouco sobre sua obra e sobre o novo cenário da literatura portuguesa, dentre outros importantes temas. Bolívar Landi apresenta-nos as suas impressões cinéfilas a respeito do instigante Minhas Mães e Meu Pai. No Aperitivo da Palavra, o escritor W. J. Solha discorre sobre A Planta da Donzela, livro de poemas de Glauco Mattoso. Estes e outros tons são uma pequena mostra do muito que podemos trilhar durante o novo ano. Aos nossos leitores, o perene desejo de recompensadoras leituras!


*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.



JANELA POÉTICA (I)


QUASE

Luísa Henriques


quando a manhã se afoga de lugares incertos
escrevo docemente um corpo para reconhecer o amor.
sujeito-me ao tempo esse tremor escasso que o vento devora
como reconhecimento tardio de todos os pássaros.

outras manhãs passeio junto à ria a orquestrar silêncios

o equilíbrio precário no sobressalto das asas

e tento escrever-te um poema de amor.
então o sol fecha-se de repente:

há um mármore a oriente dos meus dedos.


(Portugal. Nasci. Na garganta do mar sob os auspícios de uma lua de Agosto. Deram-me um nome provisório. Acrescento-lhe sílabas e fonemas: um verbo singular que me identifique o rosto)




Foto: Vinicius Xavier




3 DEDOS DE PROSA COM ANDRÉA DEL FUEGO


Não troco os lençóis há dois meses, e acho pouco. Dispensei todo pano entre mim e o colchão, a não ser que você traga uma toalha de mesa bem chacoalhada na varanda, sem migalha de vagabundo.

...

Meu irmão mais novo foi internado às pressas, eu acho que é pirraça, ele nunca passa mal quando eu bato com martelo. Mamãe prefere mantê-lo medicado, de seis em seis horas ele toma comprimidos azuis. Minha drágea é vermelha, dão-me depois do jantar, mas a prendo na bochecha esquerda. No quarto, esfarelo o remédio com o indicador debaixo da cama, assopro, dou martelada em mim e não dói.

...

Tornar-me adulta inclui estrias na barriga, a pele não se hidrata a tempo. Quando soube que despejaria um ovo cru por mês, engravidei de uma história, que só posso expelir escondida.


(Andréa del Fuego é autora do romance “Os Malaquias” e da trilogia de contos “Minto enquanto posso”, “Nego tudo” e “Engano seu”, dos juvenis “Sociedade da Caveira de Cristal”, da coletânea de crônicas “Quase caio” e do infantil “Irmãs de pelúcia”. Ganhou o prêmio Literatura Para Todos, do Ministério da Educação, com a novela “Sofia, o cobrador e o motorista”. Está escrevendo o romance “Sonar” com a Bolsa de Criação Literária do Programa Petrobrás Cultural)




Foto: Vinicius Xavier




JANELA POÉTICA (II)


BURKA DA ALMA

Heitor Brasileiro Filho


Os arcanjos e as crianças
pegam em arma
como se tocassem o rosto do criador

A guerra – noiva do Oriente
despe do Ocidente
.............a burka da alma:

- a pilhagem do espírito
é o latrocínio da calma –

um véu de areia veste
o ciclope do horror
sob o olhar impassível
de um velho beduíno
e o brilho enigmático
de um lagarto no deserto

Os arcanjos e as crianças
pegam em arma
como se tocassem o rosto do criador

Louvado enseja-se o tempo
..........................de pífias profecias
granada ao alcance
do alcácer e da alcova
- a venda e a mordaça -
a poesia espreita
em vigília a heresia
e o signo unta e se despedaça

A guerra – amante da América
leva consigo as conquistas modernas
de inocente clava
e com armas hodiernas
a Guerra retorna a primitivas cavernas

E os arcanjos e as crianças
pegam em arma
como se tocassem o rosto do criador


(Heitor Brasileiro Filho é ensaísta, cronista e poeta. Nascido em Jacobina, Bahia, é Licenciado em Letras e pós-graduado em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa (UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz))




OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão


SÉRGIO BRITTO – SP55



Como falar de intimidades e tantos outros recantos pessoais da memória sem soar nostálgico ou excessivamente emotivo? À primeira vista, esta parece ser uma indagação bastante difícil de responder. Mas eis que podemos encontrar uma adequada solução, e bem acessível aos nossos sentidos. Estaremos, então, falando do terceiro disco solo do cantor, compositor e tecladista dos Titãs, Sérgio Britto. Em suas 18 faixas, SP55 percorre densos caminhos de uma vida de forma atraentemente poética e impregnada de uma sadia suavidade. Diga-se de passagem, a opção autobiográfica contida no álbum parece refletir bem horizontes que fazem parte de outras preferências do artista. E aqui não estamos diante de um Sérgio egresso das bandeiras do rock, mas, sim, alguém que envereda acertadamente pelas vias de gêneros como a MPB, Samba e Bossa Nova, elementos que também fazem parte da formação musical do artista.

Há momentos muito especiais no álbum, como é o caso de Pra Te Alcançar, na qual Sérgio divide os vocais com Marina de La Riva, Sérgio & Raquel, Skateboard (Flipper) e Águas Paradas. De todas as músicas, 13 delas são de cunho autoral e espelham aspectos da vida familiar do titã, incluindo aí uma menção especial a São Paulo. Através de um belo tratamento melódico, podemos escutar também a interpretação de canções de Adoniran Barbosa (Iracema), dos mexicanos do Café Tacuba (Eres) e dos argentinos do Soda Estereo (Ella Usó Mi Cabeza Como Un Revolver). Como se não bastasse, SP55 celebra ainda as participações especiais de Wanderléa, em Essa Gente Solitária, e Negra Li, na belíssima Aqui Neste Lugar.

Definitivamente, estamos diante de um Sérgio Britto que sabe nos ciceronear pelas alamedas da boa música. Prova viva de sua versatilidade é a capacidade que seu mais recente rebento solo nos proporciona: reflexões de vida bem apartadas de vãs utopias e saudosismos baratos. O texto presente nas composições sabe bem como lidar com as artimanhas da memória, mostrando que, se algum dia for preciso olhar para trás, que saibamos fazê-lo com necessária leveza.


* Para abrir os ouvidos ao disco, clique aqui





Foto: Vinicius Xavier





JANELA POÉTICA (III)


PARA ALÉM DESSE SILÊNCIO

Marize Castro


À luz de velas, recolho-me.
Faço figuras com sombras na parede.

Na distância que estou
o mundo lá fora não me alcança.

Retornei para além desse silêncio.
Retornei para o que sempre fui:
lenha, cabra, abismo, centelha.

Despeço-me de antigas armaduras.

Há uma chuva que não pára,
com ela chegam coisas definitivas.

“Jamais abandonar a Poesia”,
disse-me a flor com delicada firmeza.

Adormeço
e a ferida oceânica se fecha.


(A poeta Marize Castro nasceu em Natal. Editora e jornalista, é autora dos livros de poesia “Marrons Crepons Marfins” (1984), “Rito” (1993), “Poço.Festim.Mosaico”(1996), “Esperado Ouro” (2005) e “Lábios-espelhos” (2009). “Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia” – afirma Haroldo de Campos)




Foto: Vinicius Xavier




DEMÊNCIA

Geraldo Lima


Do umbigo do tempo até este presente, despraticando a circunspecção da linguagem, obscurecendo-a luminosamente, discursando para o nada. Sem um interlocutor à altura da sua retórica fantástica, seu exercício de semear o incomunicável, seu despir-se de todos.

Dizem no bojo do máximo espanto: alimenta-se da carne das palavras, umas com o estranho poder de eternizá-lo. Creio nesse mistério também: o modo como o tempo o tem poupado reforça a crença. Petrificou-se. Divinizou-se. Aere perennius. Não adoece, não envelhece, não carece de ninguém. A solidão é, portanto, sua trincheira absoluta. Onde o real ergue muros, lá ele principia sem limites.

Sempre consigo mesmo, inacessível. Desavença constante com algo que inexiste. Aparentemente. Basta entender que o que para ele existe, existe imenso. Olhos comuns assim, dados ao mínimo, nada penetram, nada discernem.

Dizem, no entanto, ávidos de clareza: espíritos mandam nele.


(Geraldo Lima nasceu em Planaltina, GO. Professor e escritor, é autor dos livros A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Cultural, FCDF), Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora) e UM (romance, LGE Editora/FAC). É um dos colunistas do site O Bule)




Foto: Vinicius Xavier




JANELA POÉTICA (IV)


RIESGOS

Conrado Yasenza


Para dejar un rastro en el desvelo de las huellas
para brotar desde el centro del vacío

y desaseado resonar en arenas nocturnas

como una simple variedad de la especie

es que late en el cuello de la vida

la arrogancia inasible del porvenir

el provisorio roce bautismal
la desnudez aniñada de los ríos festivos

y el albor del idioma olvidado en un vaso de vino.

Para darle agua a la sed del pulso
para resumir los paréntesis de la conciencia

y unir las rajas del espeso vendaval

como un fragante beso humillado
es que el paso del alma derrama su savia más nueva

sobre el riesgo de este cuerpo indescifrable

con el que la vida juega

como un voraz y homicida espejo.



(Nascido em Lanús, Argentina, Conrado Yasenza é poeta e jornalista. Edita a Revista Digital de Cultura e Política La Tecl@ Eñe, que, em 2011, completará 10 anos de existência. Integrou as Jornadas de Preparação que deram origem à Universidade Popular Madres de Plaza de Mayo. É um dos fundadores do grupo de poetas La Masacuata, através do qual editou dois livros de poemas: “Poesía Tapada” e “Sudejo o libro del colibrí”)





Foto: Vinicius Xavier




PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão


O que seria do mundo sem a presença tenaz dos poetas? Talvez um deserto repleto de armadilhas, onde uma cética objetividade ousasse nos furtar o sublime. E daí tudo poderia ser levado a um ponto em que quase nada mereceria salutar abstração nem tampouco pequenos requintes de sugestão. Ora, existir é permitir-se o espanto, o estranhamento face àquilo que não podemos dominar com os sentidos mais óbvios. No ponto em que isso foge ao nosso controle, parecemos estar mais próximos de entender a que se presta o canto de um poeta. Adentrando, pois, certos incômodos, por que, então, deitar sobre a existência a arquitetônica inquietude dos versos?

Se vivemos um tempo atropelado pelo mosaico que mal podemos digerir, saberemos bem notar a capacidade de um poema em nos arrebatar dos desvarios, mesmo que seja por alguns míseros instantes. Disso decorre uma substituição que nos remonta a um sentido de catarse, como se duas vidas corressem paralelas num mesmo ser: enquanto uma racionaliza de imediato as visões mais primitivas, a outra vislumbra impensadas dimensões. E sentimos tais intensidades muito próximas quando percorremos as alamedas líricas de um alguém como o escritor português Victor Oliveira Mateus. Nele, as feições de poeta e filósofo estão amalgamadas em versos que sabem dizer-nos das delicadas relações entre tempo, memória e lugar. Com seis livros de poesia publicados e um romance, Victor é dono de uma obra cuja qualidade o posiciona como um dos importantes nomes da literatura lusitana contemporânea. Contista e ensaísta, o autor também organizou duas antologias luso-brasileiras, uma de contos (Um rio de contos – Editorial Tágide), outra de poesia (O Prisma das Muitas Cores – Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira – Editora Labirinto). Nesta entrevista, Victor nos fala sobre seu mais novo livro de poemas, Regresso (Ed. Labirinto), o atual cenário da literatura portuguesa e de sua estreita relação com a literatura brasileira.


Victor Oliveira Mateus


DA - Seu mais recente livro, Regresso, transita com delicadeza sobre os trilhos da memória. Diria que a opção por tal temática reflete um profundo desejo de autoconhecimento?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Tenho alguma dificuldade em entender que um indivíduo possa partir para o conhecimento do outro, do social e da sua própria ação, sem, num momento inicial, se considerar a si próprio relativamente às suas competências e limitações. Assim, essa observação de um dado mundo interior é, não só algo que deveria ser essencial em todo o processo de conhecimento, como também uma limitação à soberba com que ajuizamos acerca das fragilidades alheias. Não deixa de ser irônico que, no mundo contemporâneo, toda a gente discorra sobre economia, sobre política, sobre moral, etc., mas desconhecendo, a maior parte das vezes, o mais ínfimo pormenor de si próprio. Para mim, o autoconhecimento tem primazia lógica e ontológica sobre todas as outras formas de conhecimento. Entendo também que a memória tem um papel básico e fundamental ante todos os outros procedimentos cognitivos: o raciocínio, a imaginação, etc., contudo a destruição da memória – individual e coletiva – tem sido apanágio da sociedade espetáculo dos últimos tempos: o que importa é a presentificação das aparências e a tudo se recorre para que a embriaguez seja cada vez mais globalizadora. Quem nos saberá dizer se estamos frente a um fruto do acaso ou a uma estratégia bem delineada? No meio de tudo isto a poesia mantém-se ainda um veículo a serviço desse tal autoconhecimento, na medida em que, liberta de quadros conceituais e dos espartilhos da razão, abre-se à vinda de um dizer de outro tipo através do qual alguns ainda procuram e se procuram.


DA – Um dos traços importantes da leitura de Regresso está no lirismo construído em torno de um sentimento de mundo, pontuado pelas visões de cidades e outros tantos recantos. Como conceber essa relação do ser/estar/permanecer num tempo em que os espaços apresentam identidades diluídas?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Esse sentimento de mundo tem, para mim, menos a ver com aquilo a que algumas ciências chamam a necessidade de pertença, logo, algo cujo vetor principal são aspectos do mundo físico, mas antes se encontra ligado àquilo a que Simone Weil chamava de enraizamento, ou seja, a um elo substancial entre o ser humano e a terra com a qual ele dialoga diariamente. Portanto, num primeiro aspecto, a possibilidade de enraizamento não está em causa mesmo no seio de um mundo físico que nos possa atenuar a pertença. Aliás, se algo caracteriza estruturalmente os agrupamentos humanos é a sua mobilidade e se algo define as cidades (ou os campos) enquanto espaços humanizados é esse dinamismo, cheirando a Piaget, de assimilação-acomodação. O que aconteceu foi que esse dinamismo se acelerou. Por conseguinte, o que se vai modificando é a forma como o indivíduo encara o espaço e o tempo – apenas um exemplo: quando lemos Eça de Queirós, Os Maias, apercebemo-nos que uma viagem a um local nos subúrbios de Lisboa nada tem a ver com uma ida que hoje se possa fazer ao mesmo local. Dito de outro modo: esse sentimento de mundo continua igual a si próprio ante um homem que encara o tempo, a distância, a organização do quotidiano, etc., de outra forma. A isto vem somar-se, o que a sua pergunta diretamente refere - é que a tese dos espaços com identidades diluídas apresenta, no meu entender, uma estranha dualidade, talvez mesmo um paradoxo: os espaços comportam em si, simultaneamente, o uno e o múltiplo, isto é, se por um lado parece ter avançado aquilo que a Kristeva temia e que autores como Baudrillard e Lipovetsky teorizaram (homogeneização do vestir, do pensar, do conformar-se com, etc.), por outro lado o diferente instalou-se no meio do igual e adquire direitos de cidadania. Não querendo referir como isso se refletiu no surgir de novos estados e/ou autonomias, direi apenas que é dentro dessas identidades diluídas que cada vez mais se recuperam, e defendem, particularismos há muito adormecidos, costumes, instituições e até línguas: a segunda língua oficial deste país, que não deriva do galaico-português e é falada por poucas pessoas, tem mesmo neste momento uma coleção de poesia dentro de uma Editora. Coisa impensável há uns anos atrás! Julgo, portanto, que este enraizamento, este sentimento de mundo, se faz hoje, mas dentro de outros parâmetros, não só físicos, como já vimos, mas também existenciais, traduzidos num novo modo de olhar o outro, o diferente, a capacidade de operar sínteses e até próprio mundo.


DA – De que forma você avalia o atual panorama da poesia portuguesa?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - O meu olhar sobre esse problema é o de alguém que vive muito por fora esse panorama. Talvez seja mesmo mais o olhar de um leitor do que o de um escritor. Não nos restam dúvidas que Portugal passou por uma autêntico Período de Ouro no que diz respeito à poesia: Ramos Rosa, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo, Natália Correia, Torga, Ana Hatherly, Nuno Júdice, Eugénio de Andrade, etc., a capacidade avassaladora destes autores – e vendo agora à distância – talvez tenha provocado o desnorte nos autores que se lhes foram seguindo: pseudo-vanguardismos, temas de circunstância, semântica pobre, palavrão gratuito sem expressar estados de emotividade condizente ou aspectos sócio-culturais onde se pudessem enquadrar, etc. Este é, repito, o olhar do meu Eu-leitor! Mas há aqui algo muito interessante: é que nesta segunda etapa apareceram e/ou sedimentaram-se também poéticas de qualidade inquestionável e que são hoje pertença de nomes incontornáveis: José Agostinho Baptista, Ana Luísa Amaral, Armando Silva Carvalho, Maria Andresen, Jorge Reis-Sá, Inês Lourenço, etc., tudo poetas que nada têm a ver com o titubear dos tais experimentos ditos vanguardistas e alguns vinham mesmo do período anterior, mas só aqui obtiveram o reconhecimento merecido. Ora, a consequência vir-se-ia a apresentar de uma forma lógica e indubitável: os nomes que acabei de referir confirmam-se nomes maiores, autores do primeiro período continuam a produzir, como é o caso de Nuno Júdice, e a tudo isto vem juntar-se a pujança de outros subitamente grandes… é difícil, por motivos óbvios, entender este paradigma do hoje, mas percebe-se que é de uma extrema riqueza quanto a vozes, estilos, temáticas, procedimentos formais… Claro que esta é a ótica de alguém que, não sendo um historiador da literatura, a vê a partir de um patamar outro, mas não creio que seja uma visão ingênua e acrítica.


DA - No Brasil, muito se fala sobre o modesto número de interessados por leitura, algo que soa como um incômodo histórico. Esse quadro é muito diferente em Portugal? Existem programas efetivos de formação de leitores no país?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Não sei se existem grandes diferenças, em termos relativos, no que diz respeito a essa questão. Em Portugal, o interesse pela leitura está reservado a uma minoria, contudo existem derivações muito interessantes: há quem não leia livros, mas leia semanários de grande qualidade; existe uma grande afluência às revistas ditas cor-de-rosa; julgo saber que alguma da literatura dita light vende razoavelmente; romances escritos por figuras públicas – nomeadamente por caras que aparecem muito na televisão – são também objeto de muita procura. Agora não lhe sei dizer se podemos apelidar tudo isto de “interesse pela leitura” ou se estamos frente a epifenômenos que nos surgem a partir de modas, admiração por esta ou aquela cara, etc. Todavia, o interesse pela leitura continua minoritário, apesar de irem sendo implementados alguns programas interessantes: o “Plano Nacional de Leitura”, de iniciativa governamental e que abrange do 1º ciclo ao 12º ano, trouxe para a ribalta obras apelativas para estes escalões etários e atividades que são levadas a cabo dentro das salas de aula ou coordenadas pelas bibliotecas escolares, no entanto, o que me vai chegando aos ouvidos é que o sucesso deste Plano se vai devendo sobretudo ao esforço e carisma de alguns professores; só que no atual momento, com a excessiva burocratização das escolas, custa-me a entender como é que esses mesmos professores com reuniões atrás de reuniões, com horas a preencher fichas e fichas, ainda têm tempo para motivar os alunos para a leitura. Bem, mas pelos vistos ainda existem alguns milagreiros! A Fundação Calouste Gulbenkian tem também algo bastante louvável: a chamada “Casa da Leitura”, que se destina a incentivar os mais pequeninos para o contato com os livros. De há uns anos para cá, os romancistas conseguiram também puxar muita gente para a leitura – para além de Saramago, como é óbvio! -, refiro-me a Lídia Jorge, Hélia Correia, Mário Cláudio… e a estes, já consagrados, juntou-se depois um autêntico boom de autores que consegue aliar a grande qualidade da escrita à excelente difusão das obras: Miguel Real, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo, José Luís Peixoto, Henrique Levy, etc. Apesar de todos estes aspectos, francamente positivos, penso que ainda há muito a fazer neste país para que haja um aumento significativo do interesse pela leitura.


DA - Acredita que a internet alterou decisivamente os modos do fazer literário? A partir disso, poderíamos, então, crer nalgum tipo de reinvenção?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Se se refere ao fazer enquanto metodologia de trabalho, penso que sim. Há num PC todo um leque de possibilidades que não existiam antes. Mas se se refere ao fazer enquanto corpo de texto finalizado, penso que não. Eu, pelo menos, quando leio um livro não consigo distinguir se quem o escreveu o fez no seu portátil ou, com uma esferográfica, num conjunto de folhas A4. Todos nós sabemos que Vergílio Ferreira e Agustina Bessa Luís escreviam os seus romances à mão, mas o sei porque vi fotos de páginas, já que o romance-ensaio do primeiro e a narrativa filigranada da segunda não são incompatíveis com uma escrita em computador. Se a sua pergunta refere a internet numa perspectiva de acesso a uma maior quantidade de informação em muito menos tempo, também não vejo em que é que isso possa alterar, no essencial, a estrutura de um romance ou de um poema, quando muito alterará a data de entrega do original na Editora. Se leio Catulo, Sto. Agostinho ou Sartre, embora sabendo que eles escreveram todos em suportes distintos, não me parece que o corpo do texto tenha sofrido mutações significativas, para mim as mudanças ocorrem em aspectos acidentais; algumas variáveis como: velocidade de escrita, maior facilidade nas correções, troca de informação e/ou discussões coadjuvantes com outros escritores, etc. Nesse sentido o fazer literário é evidente que se alterou, mas apenas enquanto métodos de um fazer quotidiano, já que ao nível do produto final não o creio – estamos ante o mesmo: Virgínia Woolf poderia perfeitamente ter escrito o Orlando, aos poucos, no seu blogue, enquanto parava para consultar isto e aquilo, ou para ler os seus mails, em vez de fazer as suas pausas para olhar em redor.


DA - Recentemente, você organizou uma obra que agrega poemas de autores lusitanos e brasileiros. De que modo surgiu a ideia de montar o livro? Como é que você define a sua relação com a literatura brasileira?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - A minha relação com a literatura brasileira, mais concretamente com a poesia que aí se faz, tem um caráter informal, por conseguinte, bastante à margem de qualquer tipo de organização… O fato de ela se ter vindo a sedimentar em função de critérios que nada têm a ver com aspectos contratuais ou institucionais tem-me acarretado mais vantagens do que desvantagens; há uma liberdade que se eu estivesse integrado em algo não teria. Fui sempre avesso ao espartilhar do vivido num qualquer esquema visando uma finalidade – as coisas acontecem ou não acontecem, o que importa é o acolhimento dispensado ao que acontece, nada mais. Não consigo entender como se estrutura uma carreira literária, ou a própria vida, através de relações puramente instrumentais e onde o outro não passa de mero apêndice para uso próprio. Confesso que às vezes sorrio com essa azáfama e quase antevejo o resultado. Pois bem, para mim a vida e a minha relação com a literatura brasileira não passam por planos quinquenais ou qualquer outra prestidigitação de tipo matemático. Resta-me estar atento ao que me é dado. Um exemplo: o ano passado uma amiga comum apresentou-me as poetas Astrid Cabral e Lina Tâmega Peixoto, que, na altura, passavam por Lisboa. Foi um momento de grande beleza. Eu já lhes conhecia, e admirava, a escrita… e aquele instante aconteceu. Neste momento estou a trabalhar num artigo sobre Dora Ferreira da Silva para enviar em breve para S. Paulo, outras vezes sou eu que peço algo. Posso afirmar que conheço razoavelmente a poesia que se faz hoje no Brasil, enfim… quase me apetece até dizer que esse conhecimento vai entrando em mim pela via amistosa e assim se tem aprofundado, fico, no entanto, privado do néon dos cabeçalhos, mas… será isso um mal? Percebe-se então que a ideia de organizar uma obra agregando poemas de autores portugueses e brasileiros surgiu inevitavelmente de leituras que ia fazendo dos livros de poetas que ia conhecendo – e de outros que me foram depois apresentados – era como se me sentisse em cima de um qualquer terreno, que, por lhe respirar a fertilidade, queria preservar.


DA - Ao mesmo tempo em que pode enxergar na escuridão, um poeta pode ser traído pelos seus mais óbvios sentidos. Seria, então, o poema um canto possível de redenção face às distorções humanas?

VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Em primeiro lugar gostaria de dizer que essa tese, algo platônica e que subscrevo, de “enxergar na escuridão” não é, para mim, atributo específico do poeta, podemos detectá-la em músicos, filósofos ou até naquela mulher-sibila, que, mal sabendo ler e escrever e sentada na soleira da porta, lança o seu olhar perscrutador sobre o Infinito. Mas centremo-nos apenas no poeta: é evidente que ele pode ser traído pelos seus sentidos, ou melhor, é evidente que ele é traído pelos sentidos. E este deveria ser o primeiro sinal de alerta para o poeta – a consciencialização da sua dimensão enquanto parte integrante de um vasto cosmos; a consciencialização da sua efemeridade, mas, a verdade é que Fausto continua, capciosamente, repetindo o seu engenho. Fujamos, contudo, às generalizações apressadas e às inferências precipitadas: falemos daqueles poetas que usam os espelhos, não para malabarismos especulares, mas tão só para verem e para se verem… mas até nestes o canto será sempre um canto possível. Apenas num contexto deste tipo o poeta, igualmente imperfeito e limitado, pode (ou deve?) falar de uma qualquer almejada redenção face às distorções humanas.

Na medida em que trabalha com a palavra – e, para mim: na medida em que tenta escutar a Palavra – o poeta encontra-se numa situação periclitante, já que constantemente ameaçado por condicionantes sócio-políticas, por condicionantes culturais e outras… todavia o poeta cai, muitas vezes, no embuste da sua auto-imagem. Pessoalmente, tento precaver-me contra isso. E eis-me no exato ponto de onde parti – a questão do autoconhecimento, este, como o falar de redenção no meio das sombras, será sempre um caminho a retomar com os avanços (ou recuos) que me forem concedidos. É o que procuro nunca esquecer.




JANELA POÉTICA (V)


REGRESSO*

Victor Oliveira Mateus


Desço com a sofreguidão de um inquiridor.
Percorro as ruas, os jardins, as margens do rio.

Detenho-me nos cibercafés de onde me vinham

as farpas, nos bares que por rotina se te abriam

para afogares circunstanciais desvarios e essa


solidão de alma onde nunca me deixaste entrar –

meu punho sempre cerrado ante uma porta
que raramente se abria, uma porta só com saída,

dando lastro à minha fuga, ao agravo da recusa,

à perfídia da verrina com que afinal sempre


me haviam servido, sem que eu o suspeitasse.

Desço com a sofreguidão de quem se recupera,
de quem regressa a casa: incomensurável solo

uterino que me alimenta e me compraz. Desço-me

caudal de frustrações e alegrias, de vazio e pleno –

vida que sempre retomo e não desisto. Desço-me
livre, além do turbilhão, além do apenas instinto
e costume. Desço-me finalmente eu, sem escolhos

nem frustes ritos a barricarem-me... Desço-me ao topo

do tudo, átomo de mim na mais aérea vastidão.


* Do livro homônimo.




DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Bolívar Landi


Minhas Mães e meu Pai (The Kids Are All Right). EUA. 2010.



Minhas Mães e meu Pai poderia ser mais um típico filme sobre questões familiares com filhos ficando adultos e saindo de casa, desgastes na relação conjugal, revelações de paternidade, etc. Contudo, esta é uma película que não se pode bem caracterizar como convencional. A começar pelo casal central da trama, que é formado por duas mulheres, interpretadas admiravelmente por Annete Bening e Julianne Moore. As duas foram indicadas ao prêmio de melhor atriz de comédia/musical no Globo de Ouro deste ano, que foi merecidamente entregue a Annete Bening por seu desempenho.

O roteiro desta produção independente é, no mínimo, original: um casal de lésbicas decide ter filhos e recorre à inseminação artificial. Cada uma delas gera um filho do mesmo doador, sendo assim seus rebentos meio irmãos um do outro. A filha mais velha, ao chegar aos 18 anos, influenciada por seu irmão mais novo de 15, decide conhecer a identidade de seu pai biológico. Aí está arquitetado um rico argumento que os realizadores da obra em nenhum momento desperdiçam ou permitem que seja vulgarizado de alguma forma. A história é contada sob o prisma do que há de mais humano. A relação vivida pelas protagonistas é mostrada de forma convincente e livre de estereótipos e, o melhor, sem fazer juízo de valor que condene ou faça apologia a nenhum tipo de conduta.

“As Crianças estão Bem”, tradução do título original em inglês, é um filme adulto, sincero, que não tem medo de expor verdades e deixar à mostra nossas fragilidades como seres humanos. Ele - graças a Deus!- tenta ficar longe dos falsos moralismos que ainda imperam em nossa cultura e, por isto mesmo, irá incomodar alguns. Só como curiosidade, na entrega do Globo de Ouro 2011, em que o filme saiu como o grande vencedor na categoria Comédia/musical, medidas tiveram que ser tomadas para que uma organização de direita, intitulada Westboro Baptist Church, conhecida por pregar contra a homossexualidade, não prejudicasse a realização do evento.

Já teríamos aí razões suficientes para conferir a obra. Ela nos traz, contudo, outros atrativos. A película, dirigida e roteirizada por Lisa Cholodenko, é segura, enxuta e extremamente prazerosa de ser assistida. Uma comédia inspirada e sagaz, que nos convida a exercitar a inteligência e desenferrujar os sorrisos. Saímos do filme com a sensação de termos investido duas horas de nosso precioso tempo em algo que realmente tenha valido a pena.


(Bolívar Landi é formado em Comunicação Social e História e encontra nos filmes uma forma de conhecer realidades distintas e experimentar novas sensibilidades)




Foto: Vinicius Xavier




JANELA POÉTICA (VI)

Maria Angélica


Me sujeitas no substantivo dos teus verbos,
Na tua sintaxe o nosso discurso acaba cheio de antônimos,

Na sinopse dos dias, os finais são semelhantes.

Na elegia de nossas vidas, elipses vestem as palavras,
E na obscuridade da lua, gozamos assim... mortos,

Baudelaire e suas flores recheando nossos buquês,

Os estrangeirismos de Kafka, Camus, a nos perpetuar longos processos,

E no ponto da interjeição, suspiramos, objetos não tão diretos,

Na cópula das ligações, ficam sempre reticências,
E na repetição dos advérbios ficam os superlativamente aumentados,

E na distância reinam os impropérios disseminados no ventilador,

Como a dor que ecoa e me aparafusa na parede,

Me enquadrando em tua sede,

Que não é de sorvetes, nem de fadas,

Onde não cabem as chuvas das cascatas dos olhos d’água,

Onde o oásis é todo deserto.



(Maria do Rio de Janeiro, num blog, num log, num fog de imagens, palavras... mas eis-me aqui diante desta situação... a traçar, a fiar desafiando um precipício... e retalhando a mim mesma pra depois costurar as irregularidades com pontos decorativos, em linhas de meadas que recontam as velhas estórias bordadinhas, assim, à mão, sentada no chão, à noite)






Foto: Vinicius Xavier





CORDA BAMBA


Assionara Souza



Ele estava no Circo há tanto tempo que nem se lembrava mais da vida antes dali. A corda bamba era o seu ofício. Um artista obsessivo. Na juventude, gostava de desafios. Dispensava qualquer artifício que diminuísse os riscos. Nenhuma rede de proteção. Nenhuma vareta a distribuir o peso do corpo. Os extremos da corda faziam-se tão próximos para sua habilidade que ele achava por bem teatralizar o percurso. Criou uma vida particularíssima de uma ponta a outra. Todos vibravam: Ágil, grácil, bravo! Com essas palavras era apresentado ao público.


Mas o tempo desequilibra as certezas. O Circo já não era o mesmo. E o dono do Circo enfatizava o "Ágil! Grácil! Bravo!" por mera retórica circense. O equilibrista compreendia e exibia sem muita convicção o seu peito magro para o escasso público.


Uma manhã, acordou antes de todos e foi ensaiar o seu número. Embaixo da lona era tudo quietude. Calçou as sapatilhas meticulosamente. Subiu os degraus da estreita escada. Um após o outro e outro e mais um e outros. Até atingir o mínimo círculo-mirante. Ponto de saída e chegada de tantas noites de espetáculo. Caía uma chuva compassada. Se persistisse, haveria menos público. O equilibrista concentrou-se aos mínimos ruídos. Respirou fundo. O cheiro verdemusgo do elefante subiu às abas de suas narinas. Mãos firmes na superfície metálica, preparou-se para o passeio na corda. Arrastou de leve o pé direito – quantas vezes aquele gesto? Sentia-se velho. Velho como os bichos. Toda a fauna veio para o Circo ainda filhotinhos; agora estavam cansados.


Hesitou. Aquele mesmo caminho sempre. O coração desequilibrou-se a bater no oco côncavo do corpo. Pareceu de onde estava até a outra ponta da corda tão longe, tão longe e arriscado; arriscado e longe a ponta da corda dali de onde estava até o outro lado. E voltar pareceu a ele muito longe e arriscado. Mas não havia outro caminho.


Foi até o fim.


(Assionara Souza é escritora nascida em Caicó (RN) e radicada em Curitiba(PR), onde vive há algum tempo. Acaba de lançar o seu segundo livro: Amanhã. Com sorvete! (7Letras/2010), apresentado pelo crítico e poeta Carlos Felipe Moisés. Também faz parte das Escritoras Suicidas)





Foto: Vinicius Xavier




JANELA POÉTICA (VII)


DERECHO DE AUTOR

Rubén Valle


¿Para qué la poesía si los barcos
no pueden volar a contramano,
Si la virgen no encuentra su adagio
en el inspirado beso del semental?
Crédulos (o no) los relojes
deberían ser pájaros y piedras a su modo
¿Por qué no camaleones de un solo color?
Cada poema una isla dentro de otra isla
Un libro desierto donde el náufrago se escriba a sí mismo
Y nosotros, meros bastardos del Dante,
espantapájaros de nieve en un infierno
que embriaga sus nueve lenguas en agua bendita
¿Para qué la poesía entonces
si la palabra no se desnuda en público,
unta las sábanas con su esperma negra
o copula con el mar dentro de una botella?
Es derecho de autor dejar
último en la fila entre paréntesis
al creador del tajo y la cicatriz
Hacer que el mundo vuelva a ser nuevo
…………………………………..e igual de cuadrado
Una hoja en blanco donde los ciegos lean
La poesía es la ley y también la trampa.


(O poeta argentino Rubén Valle é jornalista e escritor. Possui poemas publicados em diversos meios impressos e eletrônicos nacionais e internacionais. São de sua autoria os livros Museo Flúo (1996), Los peligros del agua bendita (1998), Jirafas sostienen el cielo (2003), Placebos (2004) e Tupé (2010))




APERITIVO DA PALAVRA


A PLANTA DA DONZELA

Por W. J. Solha




Como Matt Murdock, o personagem cego das histórias em quadrinhos que desenvolve uma espécie de radar mental e passa a levar uma vida dupla em que – usando máscara – é o Demolidor (“Daredevil”, no original: “Intrépido, audacioso”), o quadrinista Pedro José Ferreira da Silva, ironizando as violências sofridas na infância e a doença que lhe tirou a visão, adotou nova, ousada e demolidora personalidade, a do escritor Glauco Mattoso, um nome cujos sons e engenhosidade valeram citação no samba-rap “Língua”, do Caetano Veloso. Grande poeta, estupendo teórico de sonetos e criador de milhares deles, superando a marca dos 2279 de Giuseppe Belli, adepto, como ele, da sátira fescenina (pornográfica e escatológica), Glauco saca o lado positivo de seu problema e diz:

Na vasta escuridão onde navego
fronteiras inexistem. Sem miragem,
tão só por ser terráqueo me segrego.
Tão sem limites é, que faz versos de virtuose:
Babo, Bob, pop, pipoca, cornflake;
take a cocktail de coco com cocacola,
de whisky e estricnina make a milkshake

Como sua história fascina tanto quanto sua poesia e prosa, Glauco Mattoso me lembra dois grandes artistas trágicos, para os quais os dramas pessoais foram a própria causa de sua agonia e de nosso êxtase: Van Gogh e Frida Kahlo. Veja-se o seu chocante soneto 509, chamado Assumido:

Mattoso, que nasceu deficiente,
ainda foi currado em plena infância:
lambeu com nojo o pé; chupou com ânsia
o pau; mijo engoliu, salgado e quente.

Escravo dos moleques, se ressente
do trauma e se tornou da intolerância
um nu e cru cantor, mesmo à distância,
enquanto a luz se apaga em sua lente

Descobri (incrivelmente tarde) parte da obra de Glauco Mattoso a partir de seu conto “O Podomante”, da coletânea “Capitu Mandou Flores”, organizada por Rinaldo de Fernandes (Geração Editorial), e li então, na Internet, uma tonelada de poemas seus, alguns ensaios, mandei-lhe e-mail falando-lhe da forte impressão que me causara por sua densidade e domínio literário, e ele me remeteu vários livros, entre os quais “A Planta da Donzela”, editado pela Lamparina em 2006.

Esse romance, intertextual e metalinguístico, construído em cima de “A Pata da Gazela”, de José de Alencar, é uma “revelação do inconsciente obsceno dos românticos e historiadores de alta estirpe”, como analisa Ítalo Moriconi na orelha do volume. Discordo, apenas, no que esse autor fala em pastiche e paródia. Para mim, “A Planta da Donzela” é uma releitura que Freud faria do romance alencarino, nem mais, nem menos.

Traumas à parte, duas coisas me chamam atenção nessa obra. A criação de uma eficaz expectativa crescente, e sua excepcional qualidade literária. Como diz Henrique Marques Samyn, “Glauco Mattoso vem construindo uma das obras mais rebuscadas da contemporaneidade”. Sempre me pareceu que os bons romances dependem tanto da excelência de seus textos quanto os grandes filmes do nível de sua fotografia. O que seria do “Cidadão Kane” sem a participação de Gregg Toland, e de “O Anjo Exterminador “ de Buñuel (maníaco por pés, como Glauco Mattoso) sem a colaboração de Gabriel Figueroa? Que seria de Euclides da Cunha, de Gabriel García Márquez e de Guimarães Rosa sem seus estilos tão particulares? Eu diria que a “fotografia” de Glauco Mattoso, em “A Planta da Donzela” é qualquer coisa de especial. Talvez porque suas imagens vêm de uma época em que via. E, mais: o truque é o de frequentemente completar “o romancista da época”, José de Alencar, com seu texto datado. Como na descrição de um dos personagens, que vemos como um “moço elegante não só no traje do melhor gosto, como na graça de sua pessoa”, descrição a que se seguem detalhes do nosso contemporâneo: “Olhos verdes, boca esculturalmente desenhada, nariz afilado, bigode aparado com precisão milimétrica, corpo esbelto e desenvolto”. Em outro personagem, José de Alencar vê o “luto pesado, nas roupas negras, na cor macilenta, na mágoa que lhe escurece a face”, enquanto Glauco lhe observa as pernas arqueadas e “pés voltados para dentro e espalhados em largos sapatos pretos”. Somos, assim, apresentados ao desvio de rumo que a história vai tomar. É a sensação de se ver um filme – a estória de Alencar – com um revelador making off - o de Mattoso.

O resultado é um texto rico, fluente, elegante. Se a parte final do livro – pelo ritual sombrio - me leva a outro filme de que gosto muito – “De Olhos bem Fechados”, de Kubrick – o escabroso que vem depois é digno de “A Laranja Mecânica”, quando o Demolidor ataca de novo.

Creio que temos, agora, o grande autor que nos faltava.


(W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal)




Foto: Vinicius Xavier



* Aos poucos, somos levados a um mundo de cores e texturas onde a presença humana se faz predominante e intensa sob as mais variadas expressões: eis uma definição marcante para perceber um pouco do que está por trás dos registros do fotógrafo baiano Vinicius Xavier. Em muitos de seus percursos, ele nos apresenta a força sublime de uma beleza que permeia nuances especiais das tradições populares, sobretudo aquelas advindas dos ritos e manifestações da cultura afro-brasileira. Naquelas paisagens, cada ser deixou impregnado, dentro da roda viva de seus instantes, um canto que celebra a existência pelo vigor da simplicidade.

Vinicius é um dos fundadores do Salvador Foto Clube, entidade essencialmente voltada ao estudo, aprimoramento e difusão da fotografia na Bahia. Suas influências remontam a nomes como Pierre Verger, Cartier Bresson, Walter Firmo, Sebastião Salgado, Evandro Teixeira, dentre muitos outros. Em sua trajetória, acumula participações em diversas exposições de nível nacional. Uma salutar busca pela evolução do olhar permanece viva em sua obra, quiçá o significado maior da missão de um fotógrafo.

 
publicado por Fabrício Brandão
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