Desengavetando expressões, um mundo novo de caras e formas ganha corpo aos olhos e sentidos daqueles que devoram bem mais do que a si mesmos. Seja em palavras, imagens e outros tantos signos, a cultura fascina por suas proporções ilimitadas. Entre caminhos e palavras, a vida pulsa nas revelações urgentes da alma.
No caminho feito de palavras e imagens, esquinas podem representar pontos de surpresa, atalhos a redirecionar atenções. Enquanto nos esforçamos para mantermos os propósitos da criação, quiçá nosso mais genuíno rebento, percebemos também que sair da zona de conforto é algo deveras necessário. Criar é importante até porque é isso que faz girar a roda vida das leituras e da reinvenção de olhares sobre um frenético mundo de imagens. Mas expelir uma criatura em vão, apenas para cumprir uma satisfação ao próprio ego ou a terceiros, instaura um lugar de alerta. Então, surgem fantasmas e desvios, todos eles apontando para uma assustadora falta do que dizer. A sensação de vazio que fica não é apenas a de um campo conceitual, mas, sobretudo, aquela que irrompe de uma boa dose de negligência ao que efetivamente está no mundo enquanto matéria capaz de representar algo consistente. Por que não aceitarmos a ideia matriz de sermos muito mais leitores do mundo do que obcecados criadores? Eis um questionamento que certamente deve rondar as consciências daqueles que vislumbram a consolidação de uma obra pessoal. Apreender para só depois, e a certo custo, poder firmar as bases de um algo a dizer não significa abraçar a utopia. E o tempo, com seus matizes, vai maturando e conferindo corpo e alma a um estado de coisas que um dia poderão ser expelidas com sentido. Na Diversos Afins, tentamos perceber como tal dinâmica se opera entre os mais variados criadores que se nos apresentam. Diante de alguns anos de estrada, restam algumas comprovações de que conteúdo é algo realmente essencial. É nessa linha o exemplo de autores como a poetisa Dheyne de Souza, a qual trava agora conosco uma conversa sobre o produto de sua criação, bem como alguns olhares íntima e delicadamente devotados ao complexo universo da literatura. Por falar em versos, aprendemos a enxergar por entre as janelas líricas de Marize Castro, Ricardo Mattos, Cilene Canda, Claudio Simiz e Frederico Spada. Inserido no período de celebração do Dia Internacional das Mulheres, o poeta Diovani Mendonça lança, em primeira mão aqui na revista, o vídeo baseado no poema-manifesto “Aos Deturpadores do amor”. Na seara da sétima arte, Larissa Mendes fala dos percursos em torno da produção francesa “A Guerra Está Declarada”. Os contos de Vera Rossi e Bruna Mitrano perfazem a camada indelével dos dias. Enquanto verbos correm soltos por aqui, as ilustrações de Baga Defente remontam ao nosso caos cotidiano. No destaque musical, o novo disco do cantor e compositor Lucas Santtana. O escritor W. J. Solha discorre suas impressões sobre a coletânea poética de Ruy Espinheira Filho. É sempre tempo de semear e colher palavras e sentidos. Evoé, caro leitor!
Ilustração: Baga Defente
JANELA POÉTICA (I)
AOS DETURPADORES DO AMOR*
Diovani Mendonça
Se tiver que bater, bata.
Mas na cara da própria covardia.
Se tiver que arrancar, arranque.
Os cabelos da própria valentia.
Se tiver que rachar, rache.
A testa da própria hipocrisia.
Se tiver que furar, fure.
Os olhos do próprio ciúme.
Se tiver que puxar, puxe.
As orelhas do sentimento de posse.
Se tiver que apertar, aperte.
O gatilho no nariz da própria sorte.
Se tiver que lascar, lasque.
As unhas da própria vaidade.
Se tiver que enjaular, enjaule.
A própria irracional animalidade.
Se tiver que incendiar, incendeie.
A casa e o quintal da própria maldade.
Se tiver que amputar, ampute.
Os músculos de sua pré-potência.
Se tiver que socar, soque.
A boca da própria ignorância.
Se tiver que quebrar, quebre.
Os dentes da própria arrogância.
Se tiver que cortar, corte.
A própria língua que enfeitiça.
Se tiver que enforcar, enforque.
A garganta da vingança.
Se tiver que envenenar, envenene.
O ventre da própria insegurança.
Se tiver que metralhar, metralhe.
A vidraça da própria desconfiança.
Se tiver que atirar, atire.
No peito da própria amargura.
Se tiver que amarrar, amarre.
As patas da própria força-burra.
Se tiver que decepar, decepe.
Os dedos da própria loucura.
Se tiver que esfaquear, esfaqueie.
As longas pernas da própria mentira.
Se tiver que aprisionar, aprisione.
As mãos e os pés da própria ira.
Se tiver que sufocar, sufoque.
O grito do próprio desespero.
Se tiver que afogar, afogue.
As próprias mágoas enfim.
Se tiver que matar, mate (e bem matado!).
O egoísmo dentro de si.
Reflita... Erga a cabeça e vire o disco
e que ninguém tenha que fazer nada disso.
* O poema constitui verdadeiro clamor de oposição à violência contra a mulher. O vídeo que percorre os versos de Diovani dialogará com a exposição da artista plástica Iara Abreu, na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa (Belo Horizonte), na véspera do Dia Internacional Da Mulher.
(Diovani Mendonçaé mineiro de Belo Horizonte, cultivador da “Árvore dos Poemas”. Idealizador, entre outras iniciativas de incentivo à leitura, do projeto "Pão e Poesia, em qualquer esquina, em qualquer padaria" e "Pão e Poesia na Escola", que consistem na publicação de poemas em saquinhos de pão ecologicamente corretos. Desde 2008, as referidas embalagens apropriadas para o contato alimentar são distribuídas gratuitamente àspadarias na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Elas servem como suporte para publicação de obras de artistas plásticos e poemas de autores consagrados e de estudantes de escolas públicas (que participam das oficinas de sensibilização poética). O projetofoi reconhecido por duas vezes pelo Ministério da Cultura (Minc): 2009 – 1º lugar no Prêmio Pontos de Mídia Livre; 2010 – Selo Prêmio Cultura Viva, cujo tema foi Comunicação e Cultura)
Ilustração: Baga Defente
AS CAIXAS DE PAPELÃO DA FAMÍLIA A. ALMEIDA
Vera Rossi
Nossa casa, como se espera de uma casa, abriga um lugar por vezes sombrio, onde é guardado nosso passado, talhado em papéis, quinquilharias, objetos inúteis e mais um sem número de peças inutilizadas do cotidiano. Mantemos o local [que se resume a várias caixas de papelão desequilibradas no quarto dos fundos] intocável, atordoados com a sua existência, que, ainda assim, se exibe diariamente contra nossa vontade. Bem verdade, evitamos olhares diretos às caixas de papelão, empacotadoras do nosso pedaço inutilizado. Por vezes, entretanto, largamo-nos em espiadas rápidas e oblíquas sobre aquelas caixas: pequenas, grandes, inteiras, rasgadas, a quase rebentarem de passado.
O depósito de ontens nos imobiliza. Chega a ter cheiro, aquilo de pretérito que escondemos nos fundos da casa. Quando nos deparamos com a necessidade de revirar as caixas, adiamo-la a um futuro distante, indefinido pelo excesso de pó do lugar. Passados alguns dias, nos esquecemos da necessidade, e continuamos todos a seguir nossas vidas, distantes das caixas e do futuro do pretérito. Mas, numa noite, após o horário do jantar, aconteceu. Tia Gina, que gosta de bater no peito orgulhosa, a repetir que sua vida é um livro aberto, arriscou-se e cismou que não passaria daquela data, iria organizar seu passado de papelão, a torná-lo visível e limpo, “quer queira, quer não”.
Tia Gina tem um corpo magro e desajeitado; quando anda, se equilibra neste, com mãos e pés dissonantes, como que prestes a resvalar. Usa sempre roupas coloridas que combinam com sua voz, um agudo que nos lembra o “tô fraco” da galinha d’angola. Não por acaso, seu irmão, A. Almeida, a apelidara de Pintada. Nunca a chamamos pela alcunha, claro, apenas ele, quando se esforça por demonstrar o carinho de irmão. Tia Gina não gosta do codinome, há que se admitir, mas ri gostosamente dele.
E naquele dia, a magra e desafinada Tia Gina cacarejou determinada que iria arrumar “aquilo”, iria chafurdar naquela poeira “quer queira, quer não”. Ajeitou a blusa amarela, cinza e verde, dobrou as barras da calça branca e partiu em seu andar torto, rumo ao lugar proibido. Sentimo-nos desafiados. A. Almeida interrompeu os passos da irmã:
— Mas... Pintada — piscou moroso e alertou — sua renite...
A irmã manteve-se em seu corpo determinado, pouco disse, apenas soltou seu alto e impaciente “tá, tá”, e continuou seus passos, já próximos das caixas. À medida que se aproximava, a poeira se intensificava, e os olhos e o nariz de Tia Gina ganhavam um tom vermelho-rosa. Ela se parecia com uma bandeira quando começou a espirrar ininterruptamente por alguns minutos, já em frente às caixas.
A.Almeida interveio persistente:
— Ginoca... melhor não. — apoiou a mão em seu ombro — sua renite....
Tia Gina balançou negativamente a cabeça e permaneceu agachada, quase de cócoras. Não entendíamos sua teimosia, afinal, mal conseguia se manter naquela posição desengonçada, estremecida pela sequência de espirros. Quem sabe, não se tratasse de teimosia, mas talvez de falta. Sim, pois de teimoso não se suporta vinte espirros seguidos sob uma cortina de poeira. Mas ela, por ausência, resistiu, e inesperadamente parou de espirrar. Apressada, começou a vasculhar nas caixas algo de familiar, algum objeto ou outra peça que a fizesse se sentir menos estranha ante aquela bagunça.
Iniciou pela caixa menor, dependurada sobre as demais. Uma por uma, retirava cada peça, examinava, cheirava, fazia uma careta, e, sob a exclamação aguda peloamordedeus, a largava no chão empoeirado. A cada coisa se sentia seu tempo esquecido, em meio às tralhas que o presente transformara. Por fim, éramos nós próprios os cacaréus abandonados naquelas caixas. Éramos nós o pó aspirado pela respiração curta da Tia Gina, quem, realmente, acreditava nos resgatar dali.
Àquela altura estávamos apreensivos. Não porque guardássemos segredos em caixas de papelão, onde já se viu, mas porque não queríamos revirar o que se manteve intocado havia muito, simplesmente. E Tia Gina, com suas roupas de pavão, fala de galinha, corpo desengonçado, nos provocava, “quer queira, quer não”, disposta a inverter a ordem natural da nossa família.
A esposa de A. Almeida se escorou na hipótese de dissuadi-la sob os ditames de uma “cunhada/amiga”. Esforçou-se por alcançar o quarto dos fundos, resfolegante e suada. Com um papelão em forma de leque, arriscou:
— Gi, meu bem.... Esquece isso, boba... Vem ver lá co’a gente... Já começou... Diz que Estevão vai se vingar dos Gomide.
Tia Gina sacudiu os braços, irredutível. Jogou um não à redonda cunhada e voltou-se à pequena transgressão. Temos que convir que aquela pintada e desajeitada tia é deveras obstinada. Não que estivesse gostando de mexer naquelas caixas, entretanto, enxergava nisso sua missão. E cabia a nós aceitarmos resignados.
A caixa já estava quase vazia. Até que, sem qualquer aviso, Tia Gina soltou um grito fino, e jogou algo longe. Um objeto rachado e um pedaço de papel rasurado voaram por sobre a máquina de lavar. Ela fez uma cara azeda e dirigiu-se à cozinha com algumas lágrimas por se conter. Segurou-se na pia, branca e um pouco morta. A. Almeida, que, como todos nós, ainda assistia à televisão, foi socorrer a irmã, sem conter algum meio sorriso de satisfação. Seus olhos não deixavam de pronunciar “eu te disse”. Consolou, contudo, a caçula inocente:
— Não se preocupe com a bagunça, Ginoca. Vamos colocar tudo na caixa de novo.
Ela quis se desculpar, mas permanecia afônica. O irmão espremeu os olhos e deu um passo a frente:
— Olha; a culpa não foi tua. — sorriu, já sem disfarces — é que é melhor não mexer naquilo lá, não é mesmo?
Tia Gina ganhou mais cor. Ele sorriu mais uma vez:
— Aprendeu a lição?.... Então vem, Pintada ... vem ver aquele... o tal do Estevão. — riu com vontade — não sei como vocês gostam disso.
Colorida novamente, Tia Gina foi ver televisão conosco. Nunca soubemos que objeto era aquele, até porque nunca tivemos qualquer interesse em entender o grito da Tia Gina. Estamos cientes de que pra tudo há uma razão de ser. E é inútil querer mudar isto. Ademais, temos mais o que fazer do que nos empenharmos em compreender os gritos histéricos da Tia Gina.
Se as caixas continuam no quarto dos fundos, perturbadoras e malcheirosas, que lá permaneçam. Continuamos nós com nossas vidas, incomodados, é verdade, mas alheios ao cheiro de mofo do que já passou. Pouco nos importa olhar pra trás. Além do que, “tempo é dinheiro”, como costuma dizer A. Almeida, com as mãos nos bolsos e o corpo cheio de verdade.
(Vera Helena Saad Rossi é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutoranda em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Venceu o concurso de contos SESC On-line 1997 e foi finalista, com o romance “Estamos todos bem”, do IV Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana)
Ilustração: Baga Defente
JANELA POÉTICA (II)
Frederico Spada
(a Anna de Pontbriand Vieira)
dizer da flor o que ela tem da vida.
seu viver/morrer cada dia.
dizer da flor o que ela tem de nós.
uma fantasia a chamar atenções.
dizer da flor o que ela tem de sonho,
beleza, tolice.
dizer de nós o que temos de humano.
e não.
(O mineiro Frederico Spada Silva é Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com dissertação sobre a obra poética de Hilda Hilst. É licenciado em Letras pela mesma instituição. “Arqueologias do olhar” é seu livro de estreia)
OUVIDOS ABERTOS
Por Fabrício Brandão
LUCAS SANTTANA – O DEUS QUE DEVASTA MAS TAMBÉM CURA
Um movimento de impermanência das coisas. Sentidos se apuram e varrem espaços ao redor. As águas de um mar infindo projetam suas vagas rumo à praia perdida. No centro de tudo, o homem corre hesitante, agarrando-se aos desígnios poéticos para tornar a existência algo significativa. Fica um pouco de tal sensação quando deitamos as escutas em torno do mais recente disco de Lucas Santtana. A começar pelo título, não há como deixar de lado a presença marcante de um ambiente que reflete suavemente sobre certos rumos da condição humana. Nele, o artista debruça-se sobre a arquitetura daquilo que sentimos, evocamos e expelimos em nossa sina errante.
De pronto, quem se deter nos percursos de canções como É Sempre Bom se Lembrar, O Deus Que Devasta Mas Também Cura e Jogos Madrugais, perceberá que os novos propósitos do artista baiano apontam para um valioso eixo filosófico. O melhor de tudo isso é identificar que o modo como o cantor e compositor se utiliza para abordar temática tão complexa é singular e está bem longe de representar algum pretensioso tratado universal sobre a existência. Muito pelo contrário, Lucas desfila palavras e recursos sonoros, dando leveza a seu olhar sobre pungentes epifanias da vida. O resultado é um trabalho que ultrapassa a barreira da música e nos conduz a uma verdadeira sucessão de imagens.
Com exceção de Músico, preciosa composição de Tom Zé, Herbert Vianna e Bi Ribeiro, todas as demais faixas do álbum trazem a veia criativa e vigorosa de Lucas Santtana. No decorrer do caminho musical, há espaço para reflexões sobre o amor e uma outra série de sentimentos que atravessam a nossa incômoda alameda pós-moderna. Do ponto de vista da sonoridade, além das costumeiras intervenções eletrônicas bem típicas de seu trabalho, Lucas nos oferta uma sucessão de arranjos muito bem instrumentalizados pelas presenças de gente como o maestro Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, Orquestra Sinfônica de Lagos e a Orquestra Jovem Sinfônica SSA.
O disco, que acaba de ser lançado e disponibilizado para download no facebook do próprio artista, suscita-nos um Lucas maduro, cujas observações sensíveis sobre a existência inscrevem lugares especiais e, por assim dizer, diferenciados, promovendo a junção harmoniosa de música e conteúdo. O Deus Que Devasta Mas também Cura sabe tatear as superfícies controversas de armaduras humanas e, com isso, provocar incursões certeiras ao centro de nós mesmos.
(A poeta Marize Castro nasceu em Natal. Editora e jornalista, é autora dos livros de poesia “Marrons Crepons Marfins” (1984), “Rito” (1993), “Poço.Festim.Mosaico”(1996), “Esperado Ouro” (2005), “Lábios-espelhos” (2009) e “Habitar Teu Nome” (2011). “Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia” – afirma Haroldo de Campos)
Ilustração: Baga Defente
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
Dizer do poema uma capacidade de manipulação da própria existência. Entrincheirar palavras, desacostumá-las ao vício nobre de um ofício que carece ser muito mais do que mera busca de um algo a expelir. Ir além, enxergar no escuro do mundo. Depois, quiçá muito depois, compreender-se parte de um tudo ou nada absolutos. Ficamos impregnados de tais sensações, quando adentramos os versos de Dheyne de Souza, poetisa goiana adepta dos arrebatamentos da alma. Percorrendo seus escritos, é fácil perceber a razão pela qual certos caminhos de vida jamais prenunciam rotas óbvias. Dona de um estilo que explora com precisão um complexo jogo de imagens, Dheyne é o tipo de autora que flutua por sobre a camada invisível do ser, expelindo poeticamente muito do que nos constitui em amálgama imperfeita. Se somos definitivamente indecifráveis, talvez as linhas do tempo inscritas nos versos da moça possam nos dar indícios de que a descoberta do mundo supera vãs utopias.
Colaboradora ativa de espaços como o Histórias Possíveis e Vida Miúda, Dheyne recentemente lançou “Pequenos Mundos Caóticos” (Ed. PUC-GO/Kelps), cujos poemas refletem vigorosamente uma noção profunda de se estar no mundo. Algo de etéreo paira naqueles versos e a poetisa doma as palavras como quem suspeita existir certa ordem no caos habitado pela condição humana. A conversa que agora segue aborda aspectos da obra e dos olhares dessa que, enveredando-se também pelas vias das artes plásticas, é uma representante valiosa do atual cenário poético brasileiro.
Dheyne de Souza
Foto: Marcus Ráime e Wilton Cardoso
DA - “Pequenos Mundos Caóticos” é um título bastante sugestivo e demarca uma perspectiva de olharmos o mosaico de coisas e sensações a que estamos submetidos na confusa pós-modernidade. Como pôr ordem poética nesse caos interior que tanto nos assoma?
DHEYNE DE SOUZA - Talvez o instigante seja dar vazão a esse caos por meio das falhas e atalhos da expressão, e também investigar os ritmos que a língua oferece. Acho que Pequenos Mundos Caóticos brinca bastante com a linguagem e suas performances de sentido. Aliás, "meio que roubei" esse título do Wilton Cardoso, porque não sou muito eficiente para intitular, como já concluí com o André de Leones, um amigo que admiro bastante e que é o primeiro nome que me vem à mente como minha referência de movimentação para escrever. Pequenos Mundos Caóticos talvez seja esse sussurro meio urro um tanto caos de movimentação e experimentação escrita. Não sei se põe ordem poética ou se desordena...
DA - Um universo dos sentidos corre solto por entre os versos do livro, algo que tem uma fluidez e dinâmica especiais. O que mais te provoca no jogo das imagens entre corpo e alma?
DHEYNE DE SOUZA - Algo que me provoca bastante é o jogo de imagens entre corpo e linguagem. Há poemas no livro que, na minha visão, divertem-se bastante com as metáforas da língua... nas cidades fundadas na pele, nas partes do corpo percebidas no verso. Algo assim.
DA - Quando você fala nessa relação entre corpo e linguagem, acredita numa poesia que impõe rupturas e transcende a materialidade das coisas?
DHEYNE DE SOUZA - Acredito que a arte, a poesia podem ser transcendência, ruptura, sim. Aliás, isso deve ser o que mais busco nela. Acho interessante pensar no sexo entre o corpo (o humano e o da própria poesia, o poema, e que se pode pensar como materialidade) e o anímico, o poético.
DA - As artes plásticas também atravessam seu caminho de algum modo. Suas criações nesse terreno percorrem um mundo próprio ou estão intimamente ligadas à porção escritora?
DHEYNE DE SOUZA - Intimamente, claro. Logo, logo, pretendo dançar uma escrita de alguma cor também (risos).
DA - Que tipo de olhar você lança sobre a atual cena literária goiana? Vislumbra, de alguma forma, um diálogo entre tradição e modernidade?
DHEYNE DE SOUZA - Eu acredito que o diálogo sempre há, em forma de releitura, transgressão, ruptura, enfim. Em Goiás, tem muita gente produzindo, e isso é ótimo, isso é perceptível especialmente em blogs/sites. O Vida Miúda, por exemplo, é um blog em que temos uma variedade de artistas goianos, "ex-goianos" e mesmo não goianos. E lá há arte plástica, há poesia, prosa, prosema, ensaios, textos críticos, música, vídeos, experimentações, perversões. Gosto muito de ver as pessoas fazendoarriscando arte. Entendo que é daí, desse movimento, desse contato com o diverso, que saem importantes criações. Particularmente, gosto de ver e fazer e sentir e experimentar e estar nesse novelo, que sintetiza ou retoma ou mescla ou rompe ou faz alguma coisa com a tradição na contemporaneidade, mas faz.
DA - Talvez, por certa falta de conteúdo ou essência, o fazer literário contemporâneo apresenta alguns desvios, como se apontasse para uma espécie de discurso vazio. A falsa ideia de ampla liberdade de produção seria a causa disso ou a questão é mais profunda do que imaginamos?
DHEYNE DE SOUZA - Imagino que seja mais profunda. Há muita produção hoje. E, como sempre, coisas que "prestam", que não "prestam", que agradam, que desagradam... Na minha pequena opinião, arrisco dizer que, dependendo de como é tratado esse vazio no discurso, pode bem ser um desvio bom. Mas é uma questão bem difícil essa...
Foto: Fabio Melo
DA - A literatura é capaz de efetivamente transformar a condição humana?
DHEYNE DE SOUZA - Espero que sim (risos). Talvez a arte exerça uma tração que incomoda e, a partir desse incômodo, transmuta alguma parte do humano. Gosto dessa ideia de incômodo com relação à arte, especialmente a contemporânea. Para contar uma experiência pessoal: quando alguém lê um poema, um prosema meu, ou vê alguma obra plástica minha e franze as sobrancelhas, ou acha estranho, ou se enoja, enfim, tenho uma sensação quase orgásmica. É um prazer que eu sinto, que eu sei que vem do franzir, do esgarçar, do questionar - não só a arte, como a existência, se calhar. A impressão que tenho, ou o desejo talvez, é que aquele movimento traga algum fragmento de epifania, alguma reflexão. E que aquilo, de algum modo, transforme.
DA - A partir desta sua constatação, acredita que a ideia de obra aberta está presente?
DHEYNE DE SOUZA - Sim. Falando sobre minhas experiências, percebo que tenho uma preferência grande para ouvir a opinião do leitor, porque ela pode ser diferente da sensação que tive ao escrever um poema, por exemplo. Eu acho magnífico ouvir uma interpretação nova, entendo como um acréscimo. E é uma sensação deliciosa perceber que, de algum modo, nossa linguagem, nossa expressão artística tem uma pluralidade de significados. Talvez seja uma ilusão de riqueza (risos), mas é gostoso iludir-se. Eu gosto.
DA - Autores e influências em especial dão a tônica de seus escritos?
DHEYNE DE SOUZA - São vários autores e influências. Prefiro não citar nomes, porque provavelmente esquecerei principais, especiais. Mas tenho gostado muito de ler literatura contemporânea.
DA - Certa feita, o escritor Bartolomeu Campos de Queirós afirmou que Literatura é uma conversa sobre as dúvidas, e não algo de gente que tem o que afirmar. Estaria aí o grande desafio da escrita?
DHEYNE DE SOUZA - Não sei se o grande desafio da escrita, mas acho, sim, que desafiar as dúvidas é uma atividade constante na escrita, e na vida. Questionar-se, inquirir o mundo, as normas, perverter o verbo, contorcer o papel (e a rede), tudo isso faz parte de um desafio do caos, dentro, fora, no contorno tênue.
DA - Você tem em sua trajetória parcerias valiosas com autores como Floriano Martins, Wilton Cardoso, e, mais recentemente, com Santiago Régis. Em termos de criação, como funcionam essas trocas?
DHEYNE DE SOUZA - Além de ricas, são experiências com gosto de variados tons. Tenho um imenso prazer de discutir, construir e especialmente burlar projetos com Floriano Martins, que nem sempre seguimos nossas próprias regras. Não sei bem explicar, mas é como lidar com o contraditório (dentrofora), trocamos(troçamos) (d)o (im)previsto, e várias vezes surge daí (especialmente por parte dele) uma costura belíssima ao trabalho. Wilton Cardoso desbrava personas e me dá uma impressão forte do movimento, do atrito entre as películas da linguagem, que é onde mora minha incursão favorita. Santiago Régis entorna a criança de dentro da gente, o que me intimida e me faz arriscar, e eu gosto disso. Aliás, gosto do desafio de tudo isso e justamente porque parcerias dão um quê de intimidação, recuo, troca, coragem, experimentação. Eu preciso experimentar.
DA - Em que ponto estamos hoje em relação ao fazer literário: reinvenção ou adaptação?
DHEYNE DE SOUZA - Eu não saberia dizer isso. Acredito que o fazer literário envolve reinvenção e (re)adaptação. Percebo um movimento constante em busca de formas, ritmos, sentidos, temas, que vão e vêm, a qualquer tempo.
DA - Afinal, por que escrever?
DHEYNE DE SOUZA - Escrever para corroer, roer o osso, constituir a carne, entornar os dentes da língua, cerzir o céu. Escrever porque de outro modo urro indistinto. Para silêncio. Para-cacos. Escrever para não dizer o porquê, bênção maldição usufruto burla interdito, explicar. Fundar um discurso, imprimi-lo gaveta, deslocá-lo. Cair. Escrever porque não se tem mais nada para fazer. Porque se tem demais. Porque sobra, porque falta, porque é a medida exata, por nada. Porque margem rio e foz secam o ar quando transbordam. Cílio foge. Ruga ri. Ombro desce. Pés se movem. Se de outro modo, existir. De outra forma, si. Entreter os ritos. Estudar cansaços. Emagrecer o ócio. Escrever porque não há motivo algum por que. E por isso.
Ilustração: Baga Defente
JANELA POÉTICA (IV)
INTERVALO
Dheyne de Souza
eu posso apontar a parte de mim que te perde,
o vão que de mim se consome,
a mão que do teu ar ressona
eu posso emprestar a dor que do meu olho sobra
o canto que do meu lábio morre
a voz que é silente nas horas
E dessa ausência que é carne, calar.
E desse tempo que cai,
engolir.
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Larissa Mendes
A Guerra Está Declarada (La Guerre Est Déclarée). França. 2011.
'Cause when love is gone, there's always justice. And when justice is gone, there's always force. And when force is gone, there's always Mom. Hi, Mom!
(Laurie Anderson, O Superman)
O barulho da máquina de ressonância magnética da tomada inicial funde-se a um punk-rock que remete ao primeiro encontro do casal. Uma voz em off faz as vezes de um narrador em terceira pessoa, dando uma atmosfera fabular à história. Com um frescor de nouvelle vague, música lenta em cenas de ação (e vice-versa), imagens desfocadas ou em close, A Guerra Está Declarada é de um deleite sensorial e estético e esboça – de um modo quase documental – um tom de urgência subversiva da vida cotidiana.
Se a vida imita a arte, Roméo (Jérémie Elkaim) e Juliette (Valérie Donzelli) profetizam que estão fadados a um destino trágico, antes mesmo do primeiro beijo, quando se conhecem em uma festa em Paris. Desse amor instantâneo, nasce Adam (César Desseix), que, aos 18 meses de idade, apresentando uma assimetria facial e alguns problemas neurológicos, é diagnosticado com um tumor cerebral. A partir daí, acompanhamos como os jovens pais recebem e dividem a notícia com os familiares (aqui os “Capuleto” e “Montecchio” sequer se conhecem) e encaram a nova realidade pseudo-shakespeariana.
Não deve haver tragédia similar do que a perspectiva da morte de um filho – sobretudo enquanto criança – e o processo de assimilação dessa possibilidade é retratado de forma sensível e sem pieguismos pela cineasta e atriz Valérie Donzelli. Vale citar que Valérie e Jérémie formaram um casal também na vida real, e que, além de atuarem como protagonistas, roteirizaram o argumento e viveram uma situação semelhante a de A Guerra Está Declarada com o filho Gabriel Elkaim, que, aliás, faz uma ponta no filme.
Dramático, porém de uma leveza rara, A Guerra Está Declarada está longe de ser mais um “filme de doença”. Apesar de boa parte da história se passar dentro do branco asséptico dos hospitais, o filme tem um colorido pop e humano, a começar por seu pôster. É um tributo ao otimismo, sob a ótica de entrincheirados pais em processo de maturação, que duelam sim, com todas as suas forças nesta batalha física e emocional pela vida, mas que lutam, sobretudo para manter a sanidade e o afeto que os uniu.
Com todo o conhecimento de causa, Valérie Donzelli faz graça de seu próprio revés sem temer soar jocosa ou preconceituosa, seja através das consultas à atrapalhada pediatra de Adam, Dra. Gislaine Prat (Béatrice de Stael) ou ao polêmico diálogo de humor-negro do casal sobre as possíveis sequelas do filho. Há ainda pitadas de outros temas delicados, como homossexualismo, ateísmo e visão política.
Segundo longa-metragem da promissora diretora, o filme foi a grande revelação do Festival de Cannes 2011 e o representante francês para concorrer ao Oscar 2012, porém ficou de fora da disputa de Melhor Filme Estrangeiro. Metaforicamente, o rádio anuncia um ataque ao Iraque. A guerra está declarada e munida de todas as armas que compõem um filme belo e singular, digno de um clássico de Romeu e Julieta.
(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)
Ilustração: Baga Defente
JANELA POÉTICA (V)
SACOS SARCÁSTICOS
Ricardo Mattos
No suspiro da monotonia
o s a l t o felino que nos joga para a vida
tatear deslumbrado aquele outro mundo
grávido de sentidos intocado pela palavra
o rubor do silêncio em estado estupefato
emaranhado de pensamentos escoando ligeiros nas lonjuras
do corpo vibrante que arrepia a cada toque
goza a cada vileza serpenteia livre
no torpe trago da Acaso que inaugura & inebria
desconcerta & recomeça
o sopro de improviso na interminável melodia da loucura
extática experiência excesso & exceção
o vórtice que dilacera a norma por onde vicejam as vísceras do caos
crime e criação
(Ricardo Mendes Mattos é autor de Acaso Subversivo (2012) –Desenvolve seu doutoramento, na Psicologia da Arte/USP, sobre a criação poética em Roberto Piva. Contato: acasosubversivo@gmail.com)
Ilustraçâo: Baga Defente
PEQUENO TEXTO TRISTE OU IRREVERSIBILIDADE
Bruna Mitrano
Ele sai sem fazer cena, sem bater porta, sem as meias preferidas. Ela cogita gritar qualquer coisa que rebobine a fita até o exato instante em que, dormindo abraçados, sonharam o mesmo sonho, mas receia assustá-lo (é possível perder o que já perdeu?). Ele, naquela madrugada, se decompõe (corpo e música) na neblina do final da rua. Ela calça as meias esquecidas, deita na cama, no lado que era dele, volta a dormir e dormindo ouve o barulho de chave inquietando-se na fechadura, o ranger discreto da porta abrindo, os passos arrastados inconfundíveis; levanta um pouco o rosto e o vê sorrir para as meias preferidas esquecidas e de súbito mudar a feição e encará-la por quatro segundos e ficar nu e arrancar dela o short doll (única peça além das meias) e entrar. Ele fica ali, bem dentro, para todo o sempre, amém.
Ela acorda, no meio da cama, pernas abertas, sozinha - a eternidade dura o tempo dos olhos fechados.
(Desde criança, Bruna Mitranoé viciada em recordar situações que nunca existiram; por isso (e por outros motivos mais relevantes, que não saberia explicar) escreve, para torná-los reais, de alguma forma)
Ilustração: Baga Defente
JANELA POÉTICA (VI)
V
Claudio Simiz
Cierta fragancia ingenua
de tierra removida,
cierta hojita que se enredó en el aire
desdeñosa de la gravidez,
cierto nombre rescatado
de las fauces del tiempo
XXXXte dejarán
desuncirte de los pájaros negros
y desbrozar las páginas del día
y acompasar las cuerdas
del sueño que se viene.
(Claudio Simiz é natural de Buenos Aires, Argentina. Publicou oito poemários, dos quais “No es Nada” (2005) e “Triadas” (2009) são os últimos. Sua obra poética obteve reconhecimentos em seu país e no exterior. Recentemente, publicou seu livro de contos “De Solitarios” (1º Prêmio Concurso Internacional Artetilcara 2009). Além de atuar como narrador e dramaturgo, vem colaborando em publicações acadêmicas e literárias argentinas e da América Latina)
Ilustração: Baga Defente
APERITIVO DA PALAVRA
O Grande tema do Eclesiastes, Eliot, Jorge de Lima e Kubrick na poesia de Ruy Espinheira Filho
Por W. J. Solha
INTRODUÇÃO
uma formiga escala o himalaia de um vaso
a espinheira espalha a perplexidade de suas folhas bífidas
Ivo Barroso – “Vida”
O primeiro poema – Longe de Sírius - da coletânea de Ruy Espinheira Filho, lançada recentemente pela Global Editora (seleção e prefácio de Sérgio Martagão Gesteira), termina sua bela natureza-morta com estes versos, indicadores da importância da morte para o poeta:
Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda.
Não se trata, fica evidente pelo conjunto da obra do Poeta, de suicídio latente, mas de fatalidade, como no Rayuela (O Jogo da Amarelinha) de Cortázar:
lo que ocurre es que el reloj de la bomba marca las doce del día de mañana. Tic-tac, tic-tac, todo va tan bien. Tic-tac.
Noutro poema, Fuga, escrito na década seguinte, Espinheira retoma – presumo - um verso das Geórgicas de Virgílio – fugit irreparabile tempus – e o desenvolve, como intenso poeta que é:
Escuto o tempo fluindo,
fugindo. Sobe um soluço
da carne de tudo: móveis,
tecidos, metais. Que forte
é a morte!
Mas ele não a teme. Pelo contrário: como San Juan de la Cruz, em seu muero porque no muero, ela lhe dá, como bom cristão que Espinheira (pelo menos poeticamente) é, a promessa de completitude que ele tanto busca. Versos de vinte anos depois:
Falta alguma coisa.
Falta desde sempre.
(...)
até que eu transponha
o último limiar,
quando então, por fim,
nada faltará.
Claro que por trás disso está a epístola do apóstolo Paulo assegurando que Agora vemos por espelho e em enigma, mas então, face a face. Jorge de Lima, no entanto, dissera, em seu Poema do Cristão:
Porque o Sangue do Cristo
jorrou sobre meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
“A inteligência transfigurada em Cristo”. Espinheira vai mais longe, nos versos de Passionária:
e um cão lambeu-me
o lado em que todos trazemos a ferida
da lança romana.
Isso me lembra que, segundo o Êxodo 4-22, Jeová diz: “O povo de Israel é meu filho. Meu primogênito”. A Graça, portanto, era coletiva. Mas na cena do batismo, no Novo Testamento, a voz que clama no céu transfere, restringe essa filiação a Cristo.Os poetas, no entanto, novamente democratizam tal “eleição”, inclusive no que – temporariamente (até a morte) isso possa ter de negativo. A complexidade dessa relação é visível quando, equivalentemente ao “Pai, por que me abandonaste?”, Espinheira diz, em Poema para Mario:
Só o Tempo
(nossa mais íntima
matéria)
está
conosco.
Agora
e na Hora.
Novamente a morte como divisor de águas. Que o marxismo nega, concebendo uma arte totalizante com Marx. Mas se Jorge de Lima conseguiu-a, sendo cristão, por que não T. S. Eliot, o grande poeta católico do século XX? Claro, pois ele se apropria da famosa frase da católica Mary da Escócia, quando condenada à morte – In my end is my beggining – e a transforma no dicho duplo – In my beggining is my end, desenvolvendo em seguida, no Burnt Norton, um dos seus Four Quartets:
Or say that the end precedes the beginning,
And the end and the beginning were always there
Before the beginning and after the end.
And all is always now
(Ou digamos que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio estiveram sempre ali
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora)
O curioso é que isso tudo foi criado apenas pra impressionar, words, words, words, pois é puro chover no molhado. Já está lá, no Eclesiastes 1-9:
Quod fuit, ipsum est, quod futurum est. (O que foi, isso é o que há de ser) Quod factum est, ipsum est, quod faciendum est. (e o que se fez, isso se fará ). Nihil sub sole novum. (Nada há de novo debaixo do sol).
Talvez que é a isso que Espinheira se refere, em Púrpura e Diamância, quando diz, com muita ironia, anulando – evidentemente – o mérito do garoto de As Novas Roupas do Rei, de Andersen, repreendendo-o porque constata e proclama que o rei – em lugar de manto extraordinário - tá é desfilando pelado:
Sim: o teu real
contraria o do rei.
Opõe-se ao de todos
que estão na praça.
Ah, nada aprendeste
do que te ensinaram!
O GRANDE TEMA
Vai daí que o Poeta resolve encarar a insuficiência ontológica que o inferniza. E de todos os modos possíveis, como Hokusai com suas Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, como Cézanne com outras oitenta e sete do Monte Sainte-Victoire, como o Monet com suas cerca de cinquenta telas da catedral de Rouen – pintadas sempre do mesmo ângulo, ao contrário dos outros dois – mas nas diversas luzes do dia.
Primeira versão. No poema Inúmero:
Tudo é memória, como a onda
que vamos visitar e já nos habita
antes dos nossos pés na areia da praia,
porque é outra onda,
outras
que já marulham,
espumam
em nosso sangue,
como o inverno para o qual desliza
esta tarde
é denso de outro, outros.
Assim o teu sorriso que virá
Já há muito me ilumina.
Segunda versão. No poema Viagem:
Caminho na rua antiga,
mas agora. E sou um menino
contendo um homem que contém
um menino.
Terceira versão. No poema Os bens maiores:
A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.
Quarta versão. No poema Fuga:
E escuto
passos me acompanhando: são meus
próprios passos – de ontem e antes
e hoje. Talvez de amanhã.
Salmo 138: Senhor, (...) vós me vedes, observais todos os meus passos. A palavra ainda me não chegou à língua e já a conheceis toda.
Quarta versão. No poema Aqui, antes da noite, num de seus mais belos trechos:
Antigamente era janeiro.
Agora também é janeiro, mas só uma palavra,
porque não pode ser janeiro sem os longos
verdes ondulantes que iluminam a memória
e ela, branca,
da janela da casa
branca,
na branca manhã de domingo
(que era sempre domingo em janeiro
e certa vez – aquela, essa vez – foi janeiro
por muitos anos).
Quinta versão. No poema Fuga. A completitude que se queria:
Deito-me na relva e sonho
com isto mesmo: estar deitado na relva.
A vida está completa, estou completo,
pois os anos que vieram ainda não
vieram.
Sexta versão. No poema As sombras luminosas:
Os canários mortos
voando na sala,
através do tempo,
das coisas, de mim.
Sétima versão. No poema Aniversário. O detalhe em negrito é soberbo:
Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.
Oitava versão. No poema Um poeta, uma vez. Espinheira (final dos anos 80) faz clara referência ao belo conto de Cortázar Todos los fuegos el fuego, de 66.
(...) e abre
a carta-todas-as-cartas.
É isso, parece-me, que faz de seu Cristo o homem-todos-os-homens. Inclusive, claro, o Poeta.
Nona versão. No poema Um baile da infância. Espinheira tira a grandiloquência do Eclesiastes (1:7), no qual Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr.Tira-lhe também, entretanto, a ênfase ao enfado, trocando-a pelo do enigma paulino:
Tremes e não queres
pensar
e pensas (não queres pensar e pensas
para não pensar) no pó
varrido todas as manhãs
e todas as manhãs reencontrado
principalmente sob os móveis.
E te perguntas
de onde ele vem, esse
inesgotável.
Todas as manhãs
as mulheres varrem
varrem
e todas as manhãs
recomeçam
e não há fim:
o pó se amontoa
sempre. Esse
inexorável.
Décima versão. No poema O Pai. O trecho é inesquecível:
caminho
aos vinte e três dias da tua ausência
na mão esquerda o frio da alça do caixão
que não soltei
nem quando cimentaram a pedra sobre ti.
Décima primeira versão. No poema Tardes. Aqui o poeta se torna ainda mais denso. Vamos reencontrar nestas suas linhas um eco de Borges quando o argentino diz, em 1952 (“Nueva Refutación del Tiempo”): Chuang Tzu (Herbert Allen Giles: Chuang Tzu, 1889) soñó que era una mariposa y no sabía al despertar si era un hombre que había soñado ser una mariposa o una mariposa que ahora soñaba ser un hombre. Faz eco, também, ao filme 2001, uma odisseia no espaço, de Clark/Kubrik (1968), em que, na sequência final, o jovem David Bowman, depois de viajar pelo espaço na velocidade da luz, vê-se de repente já com meia idade, embora ainda na mesma roupa espacial, num quarto contemporâneo a Luís XVI, em que um homem muito velho – que é ele mesmo – faz uma refeição até parar ouvindo algo, que não detecta, depois do que aparece agonizando numa cama, ante a qual ressurge o enigmático monólito negro visto, no início do filme, pelos homens pré-históricos. Todos-os-homens-o-homem. Em seguida ele se torna um feto que flutua no espaço, aproximando-se da Terra, onde tudo começará outra vez.
Veja em Espinheira:
Nesta tarde há outra tarde
sem este quarto tão cheio
de livros;
sem este homem
quase velho, que escreve
estas palavras;
há outra
tarde, de um tempo sereno,
casuarinas, cães ladrando
na distância;
e um menino
andando – o passo tão leve –
na rua em que mora um anjo,
enquanto sonha uma tarde
onde um homem quase velho,
num quarto cheio de livros,
vai escrevendo esta história.
Décima segunda versão. No poema A menina e o anjo. Note-se que, aqui, o Poeta retoma um trecho da quarta versão, acima, onde se lê
e ela, branca,
da janela da casa
branca,
na branca manhã de domingo
Veja:
O que fazia o teu Anjo da Guarda,
que te deixou assim branca branca,
neste vestido branco,
neste caixão tão branco que me dói nos olhos
há tantos anos?
CONCLUSÃO
Drummond estava mais do que certo quando disse, ante o primeiro livro de Ruy Espinheira Filho – Heléboro, de 1974:
- Poesia concentrada e de sutil expressão.
Claro:
Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.
(W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal. Recentemente, publicou seu mais novo romance, Arkáditch, pela Ideia Editora)
Ilustração: Baga Defente
JANELA POÉTICA (VII)
DEPOIS
Cilene Canda
Só te enxerguei
Quando deixaste de ser poema,
Quando a fantasia tirou o véu
E brotou a realidade.
Só restam:
A sombra perfumada da saudade,
o desejo saciado
e a certeza do impossível.
O segredo é aprender com a chuva:
Molha, germina, passa
e antes de ser esquecida,
se transforma
em poesia.
(Cilene Nascimento Canda é professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB. Possui mestrado em Educação na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (UFBA). É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem, Arte, Cultura e Educação (EntreLACE) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)
Ilustração: Baga Defente
* Tendo como guia seu incisivo olhar sobre o caos cotidiano, o artista plástico Baga Defentedefine sua obra como sendo o resultado da mescla entre poesia, metafísica e acaso. Suas ilustrações aqui presentes reúnem também colagens e desenhos cujas formas promovem uma instigante e, ao mesmo tempo, provocativa intervenção na realidade.
De posse de uma trajetória que também agrega incursões pela literatura e pelo vídeo, Baga deixa saltar aos nossos olhos o caráter eclético de seus traços, manifestando um diálogo com os mais diversos campos da arte. Nele, chama atenção o modo como as visões do mundo frenético e fragmentado no qual vivemos são exibidas. Diante de uma ideia de ordem no caos, certamente somos levados a crer que ambos são elementos indissociáveis.