Barco, Israel Scardua MEANDROS LITERÁRIOS
VOCÊ SE ABILITA?
por Neuzamaria Kerner
Este texto não se propõe a ser uma resenha, análise literária, a fazer propaganda, nada disso. Apenas a comentar ligeiramente alguns dos escritos do Aparecido Raimundo de Souza, contidos em seus livros publicados: Quem se abilita? Com os chifres à Flor da Cabeça, As Mentiras que as Mulheres Gostam de Ouvir (Ed. Papel Virtual, Rio de Janeiro).
Este escritor paranaense, jornalista, advogado e mais um monte de coisas, aportou em Vitória do Espírito Santo e vive trilhando pelo mundo afora, numa vida meio cigana, saindo por aí tentando descomplicar o que é difícil de ser entendido: a própria vida e suas circunstâncias.
Leitor apaixonado, observador do mundo, um tanto solitário para, talvez, afastar a solidão que está nele e em todos nós. Ler e escrever, portanto, é um dos grandes prazeres da solidão, como diz Harold Bloom. Com irreverência, marca forte na sua obra, Aparecido nos faz ficar atentos à ironia e indignação que perpassam seus textos, quando escreve crônicas aparentemente “inocentes” e nos põe diante do espelho da vida, do cotidiano, por mais banal que possa parecer, mas que conduz - o leitor - a buscar empatia com a natureza dos seus escritos e com a própria natureza humana.
A leitura nos livros da presunção acadêmica, dos críticos ideólogos, longe das normas todas a que fomos acostumados a ter, deve seguir um padrão gramatical e palavreado específico. Não espere isso nos livros de Aparecido Raimundo de Souza porque seu texto requer do leitor uma habilidade para perceber as idéias opostas às dele e que, às vezes, geram um “conflito enriquecedor” numa leitura, que só depende de quem lê e que se abre para a transformação e esta tem sempre um caráter universal.
A ironia pode ter diversos significados na literatura, no entanto implica dizer algo cujo real significado pode ser diferente do conteúdo óbvio, chegando mesmo a sugerir o oposto do que é dito. Por esse motivo, estar aberto é perceber a sutileza que permeia um texto, que nunca é neutro, visto que somente um olhar atento pode ver e sentir a intencionalidade de quem o escreveu. Tudo o que é escrito passa pelo filtro de quem escreve. É uma parte de si que se desprende e vai ao encontro do leitor em sua auto-escuta, levando-o a desenvolver um eu autônomo.
À maneira de Gregório de Matos, ele, Aparecido, provoca, irrita, instiga, diverte e faz refletir sobre a natureza humana quando troca e inventa nomes, mexe com a mídia, com os artistas, com as vaidades, com textos canônicos, com os mais altos dignitários do poder, até com o Zé-ninguém que dobra uma esquina sem saber que está sendo notado. Tudo isso num palavreado que por vezes choca e, por outras, faz gozar os nossos ouvidos, ao falar de bundas, peitos, cacetes duros e tudo mais que se esconde sob o tapete da falsa moralidade, da hipocrisia.
Ele fala de gente como eu, como você, dele próprio e de coisas (des)interessantes como na crônica As Relíquias que não envelhecem. Confira alguns itens:
- As duas únicas fraldas de pano (na verdade, cueiros) usadas no nascimento do Menino Jesus, sendo certo que, enquanto uma era lavada e secada ao sol, a outra, Maria colocava na bunda da criança.
- Um casal de mosquitos Aedes Aegypti mumificados, passageiros da Arca de Noé.
- Cálamo feito de pena de galo que cantou após Pedro ter negado Cristo por três vezes.
- O camelo sobre o qual cavalgou a intrépida Rebeca quando partiu para desposar Isaque, bem como a cópia do contrato milionário desse animal com a Rede Globo, para atuar na novela ‘O Clone’.
- Calcinhas com figuras de reis tarados – cujo uso era costume entre as prostitutas de prestígio de Sodoma e Gomorra – muitas delas com cheiro forte de enxofre grudado no nylon.
- A última combinação, toda em seda, da Madre Teresa de Calcutá, usada antes dela ser beatificada por Roma.
- A certidão de óbito de Matusalém.
- As 30 moedas de prata que Judas recebeu pela venda do Filho do Homem e o depósito dessa quantia numa poupança da Caixa Econômica Federal.