CICERONEANDO
JANELA POÉTICA (I)
EU, O OUTRO E O DESEJO POR SI
Maurício Pinheiro
Não quero a falta do coração do outro
Quero o outro sem o sexo na gaveta,
Quero a maleta aberta,
Quero o susto incerto,
E ainda quero o poeta.
Isso é tudo que quero,
Porque por hora, querer é tudo o que tenho.
Quando o querer for senhor
E o desejo puder exigir,
Aí sim, metade de mim pra você!
Metade de você pra mim!
Quem sabe esse desejo rude
Penetre esse coração inerte,
O desperte
E você se bote pra mim?
Do contrário, me calo
E aceito a voz do imaginário
A dizer...
Que o presente é a falta desse futuro em ti
(Maurício Pinheiro é ex-agitador cultural, ex-ativista do “grand monde”, ex-espectador do amor. Atualmente, exilado no campo, está em pleno exercício do Braille de si)
DECÊNIO
por Fabrício Brandão
E era em tudo um novo ambiente a se espalhar por dentro do ser. Aquele imenso quarto revestido de um empoeirado caminho verde, agora se me agigantava como um possível abrigo para outras visões. Além dos sombrios móveis a compor feições de uma antiguidade relativa, aquele quarto de sobrado da velha capital baiana ainda me propunha a espera. Ah! O que dizer de tal tarefa? Aguardar “cegamente” as regras da forçosa companhia de um estranho. O corpo cansado repousava em parte, apenas, e estava disposto a manter um pacto com a consciência viva de que a trégua só viria após os sinais patentes da normalidade.
A atitude vigilante era compreensível porque havia desembarcado em minha existência a certeza do espaço próprio de um mundo. Então, armado até a alma, mantive os olhos postos na escuridão tão míope da cela. Os pensamentos desordenados pareciam querer o meu descompasso, o meu desespero por não ter a receita para lidar com o imprevisível. Lá fora, o silêncio cortante anunciava o império da madrugada, sinal de que o combate tomava conta do lugar visível a um único ser. Foram tantos rostos imaginados, tantas expressões ensaiadas, tantas extrapolações pela primeira palavra, que me tornei transparente à real aparição de minha nova íntima companhia.
A porta se abriu, de fato, trazendo de fora os resquícios de uma luz amarelada e incômoda. Permaneci imóvel a toda seqüência de passos do trajeto habitual que absolutamente desconhecia. Nesta hora, pensei em quão agradável era saber do velho chão um aliado que reduzia os sons daquela invasão nunca sentida. Éramos ilustres desconhecidos travando o jogo mental das expectativas tensas. Fui respeitado por aquele ser em toda sua mais aparente estranheza, quando optou em manter a escuridão amiga como condutora das horas. Eu parecia enxergar seus olhos em meio ao intervalo da nossa troca de respirações cadenciadas. Afinal, nenhum de nós demonstrava querer se desnudar nos lapsos discretos de nossas possíveis hesitações.
A qualquer outro que observasse nossa melindrosa coexistência, poderia parecer que já havíamos desistido dos esforços de aproximação. Era possível sentir naquela presença estranha o interesse em me investigar, em mapear os contornos que abrigavam ocultas confissões. O misterioso ser avançava em torno de mim querendo me tomar de assalto. Meus sentidos sucumbiram à entrega sem que eu pudesse precisar o exato instante daquela conjunção. Eu, que me mantive inerte durante toda discreta sedução, emprestava a alma agora sem indagar a razão por tanta energia dispendida. Exercitamos sutilmente a descoberta de uma outra existência sem colocarmos no meio as dúvidas que ameaçam a intimidade. Dez anos nos separam desse encontro, mas até hoje aqueles olhos me contemplam com lealdade necessária. Nunca lhe exigi além do que poderia naturalmente me dar. Quando quer se aproximar novamente, convida minha percepção para um mundo no qual somente a luz habita.
JANELA POÉTICA (II)
CONVERSA COM O “DÉDALO” DE MARVILLA
Neuzamaria Kerner
Tu mesmo criaste o labirinto perdedeiro
onde preso em silêncios ficaste só
quando tudo parecia perdido.
Não queiras morrer, Dédalo,
sem lembrares a palavra esquecida
(peça faltante para asas voadoras).
Queres fugir para o futuro
mesmo sabendo que teu instante
é agora e aqui.
Colhe o vínculo, sem medo,
que a vida te oferece no hoje
e te manterás nela
em lembramentos de amor
que te farão presente e eterno...
Assim
não te sentirás atado
em teias frágeis
por teres o fio condutor
(dado a ti para voares solar).
Não te dês por vencido
porque em teu destino és tu o vencedor.
Se queres render-te
faze somente ao Amor
livradeiro dos teus precipícios interiores
dos teus inventos que sempre trouxeram
dissabores, perseguições, fantasmas mal-criados...
Dédalo
sou o Fio
caminho certeiro
asa que não derrete
(nem se acovarda diante do sol).
Vem, confia, desvicia e fica
por fim
porque sem ti, peregrino,
ficarei também sem mim.
Foto: Miriane Gleb
BIFURCAÇÃO
Paulo Sérgio Moreira
A tarde cairá sobre a cidade e, de algum lugar longínquo, virá o anjo com suas asas de fogo a me queimar. Sou, no entanto, um homem frio que não devo temer o fogo, mas vou temê-lo, eu sei. "Tu que amaste minha alma, mostra-me aonde me levas?", indagarei, sem perceber.
E as asas se bifurcarão como duas estradas: uma há de me levar a terras desconhecidas dos amores recentes, outra me traria de volta a boca que tanto beijei.
Nenhuma escolherei, mas tão-somente aquela que o anjo e suas asas não me indicarão, aquela que se abre em direção infinita até perder-se de vista, aonde tudo o que resta é devastação, poeira, deserto.
(Paulo Sérgio Moreira é cirurgião-dentista e psicólogo. Contista, cronista, poeta, tem dois livros publicados: Mergulhos da Alma (2001) e Arquivos do Coração (2003), ambos pela Editora Catavento, de Maceió. É membro efetivo da Academia Maceioense de Letras, ocupando a cadeira 13, e também presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgiões-dentistas escritores.)
O Mundo é uma cabeça
JANELA POÉTICA (III)
MATEMÁTICA
Alexandre Câmara
Eu só sei que não sei
desvelarei a mim, a ti, a todos
envelhecerei
vou seguindo, intuindo
partindo e chegando
num barco bem ao meio
do caminho
nessa ou noutras vidas
flanarei em linha reta
experiente
quero encontrar
a certeza da não-dúvida
do não desabrochar pro novo
apenas
haverá o dia
em que já nascerei maduro
velho, quem sabe
para que todos os meus sonhos
já nasçam inteiros, imensos
intensos
e cheios de uma certezas
que me levem aos locais exatos
que me desabriguem
do umbigo, do ostracismo
do ventre, da casca do ovo
amanhecerei poeta profissional
e minha música sairá
desse estado de torpor abissal
serão anos dourados
em que meus cabelos florescerão frutos maduros
longos cachos de amor
num bar, numa praça
na praia à noite
cantando minha voz
mesclada ao cheiro de brisa marinha
bruma, bruma
para embriagar a humanidade
com um perfume certeiro
uma flechada segura com a exatidão da matemática
( Alexandre Câmara é jornalista e assessor de comunicação da Secretaria Executiva de Saúde de Alagoas. Escreve poemas e contos e tem como influência os poetas beats e simbolistas franceses. No início do ano que vem, estará lançando seu livro, intitulado Louco de Amor, pela editora Catavento.)
Há dez anos o encanto está ausente...
por Bolívar Landi
No dia 11 de outubro de 1996, morria, no Rio de Janeiro, Renato Manfredini Júnior, Renato Russo, líder da Legião Urbana, banda ícone dos anos 80. Muitos admiradores, assim como eu, foram pegos absolutamente de surpresa com a notícia. Nada se falava sobre o seu estado de saúde e o grupo, no mesmo mês, acabava de lançar um novo álbum: A Tempestade, emblemático título, que profético anunciava a turbulência que haveria de vir.
No ano passado, indo trabalhar em um bairro periférico de minha bela Ilhéus, fiquei encantado ao escutar o som do Legião Urbana, ali em meio a ruas mal desenhadas e sem calçada, competindo em pé de igualdade com o som que se esgueirava da casa vizinha. Nunca havia parado para pensar, mas encontro estas mesmas músicas ao passar em frente a prédios e condomínios de luxo, no repertório das mais variadas e inesperadas tribos. No seriado televisivo Cidade dos Homens, um de seus capítulos finais mostra o paralelo entre a vida de personagens do morro e da “cidade” embalado ao som de Tempo Perdido do Legião. Algo inexplicável travava a garganta e trazia sentimentos à flor da pele. Que força é esta que está presente neste som? O que une pensamentos e realidades tão distintas?
Caetano Veloso, em uma entrevista, se espantava com a facilidade com que o público aprendia músicas tão complexas. Quem não se lembra de Faroeste Caboclo com seus mais de 9 minutos de duração, 158 versos e sem nenhum refrão e, mesmo assim, muitos sabiam de cor a sua letra? O Legião foi um fenômeno, sendo a banda de rock brasileiro que mais vendeu, chegando à admirável marca de 15 milhões de discos vendidos.
Havia alguma coisa nesta banda que despertava os sentimentos e as reações mais profundas em quem ouvia e ali buscava um pouco de atenção, um pouco de alento para as suas inquietações e carências. Vivemos num mundo de respostas prontas, didático. O questionamento sobre a vida e as coisas passou apenas à uma esfera superficial dos fenômenos visíveis. O aprofundamento do nosso mundo interior, de nossos limites, contradições e tragédias foram completamente esquecidos. Ítalo Calvino já nos lembrava sobre os gregos que, ao encenarem as suas tragédias, conseguiam resgatar uma dimensão e uma compreensão do humano que perdemos completamente. Renato Russo encenava o homem e suas tragédias em suas canções.
Num mundo em que nos isolamos e somos condenados a mostrar força e decisão para que sejamos respeitados, Renato Russo ousou mostrar-se desnudo, frágil, humano e assim capacitado para falar e ser entendido pelo outro ser humano que o ouvia. Sua sinceridade desarmou a guarda de muitos que encontraram nele alguém com quem conversar... sem medo. Uma cumplicidade sem limites era criada. Em alguns momentos, a sua lucidez incitava à luta, à não aceitação aos padrões e velhas formas de fazer e sentir impostas. Bradava em alto e bom som: Ninguém vai me dizer o que sentir. Não sucumbia ao mundo e se este era mesmo parecido com o que via, preferia reinventar e acreditar em um mundo do seu jeito.
Um eterno jovem que morreu aos 36 anos de idade, Renato Russo conseguiu traduzir os anseios e as angústias de uma geração. Falava ao jovem e este se identificava com suas músicas de forma impressionante. Tempo Perdido se tornou um hino de uma geração em busca do seu espaço, de seu próprio tempo. Geração Coca-cola criticava a formação de seres programados, vítimas da sociedade de consumo. Em uma de suas mais belas canções, O Senhor da Guerra, expõe a nossa miopia, a nossa passividade que permite que inescrupulosos comandem o poder e as nossas vidas e produzam, em benefício próprio, as guerras. Na espiritual e tocante Índios, mostra toda a sua indignação diante de tanta atrocidade e desperdício no mundo e quer acreditar na possibilidade de um mundo perfeito, como a mais bela tribo, dos mais belos índios. Em Pais e Filhos, conseguiu o admirável feito de propor um diálogo e entendimento entre duas gerações, tão distintas e, no fundo, tão parecidas. Os textos de Renato resgatam a dimensão humana e, por um breve e lúcido instante, parecem suprimir as diferenças, pois ali nos reconhecemos como seres que sonham, sofrem, se revoltam, apaixonam, desiludem, desesperam... Em essência, nos redescobrimos os mesmos.
Sobre o amor, este fogo que o abrasava em tantas canções, serviu-se de Camões e São Paulo, do profano e do divino, para tentar traduzir o que não tem tradução. E diante de tão grande e inexplicável sentimento, e mesmo diante da dor e da desilusão, dizia não existir amor errado. Em Meninos e meninas revelou publicamente a forma do seu querer, em uma época em que o preconceito e o estigma eram ainda mais fortes.
Tentou muitas vezes abandonar o álcool e as drogas, mas estava sempre às voltas com as recaídas. Isto não o impedia, contudo, de expor a contradição do que vivia e a sua percepção sobre o assunto: Parece cocaína, mas é só tristeza... És o que tenho de suave e me fazes tão mal.
Nem mesmo a dor e a angústia dos seus últimos dias escaparam de ser eternizados na poesia de seus versos. A Tempestade é certamente o trabalho mais down do grupo e, nem mesmo por isto, deixa de ter a sua beleza. Algumas faixas mostram o seu estado de espírito: Meu coração não quer deixar meu corpo descansar... e soam como uma despedida: e meu desejo inverso é velho amigo... Muitos dizem que ele se entregou, talvez estejam certos. Rico em contradições, uma sensibilidade extremada, um espanto permanente diante da incompreensão e desrespeito no mundo, conseguiu ver, de forma desconcertante, o que quase ninguém via. Talvez ele estivesse realmente certo e não pertencesse a este mundo. E se é certo que tudo realmente passa, também é que nada conseguirá mudar o que ficou. A obra de Renato Russo permanece viva, atual, um alento aos velhos e novos jovens que resistem ao adoecimento do mundo e conserva ainda um sorriso aos que acaso ali procurem por abrigo e proteção.
( Bolívar Landi é colaborador ativo do Diversos Afins)
JANELA POÉTICA (IV)
EISQUELETRO
Heitor Brasileiro Filho
Esse edifício em que o corpo é soerguido
necessita de reparos
demiurgos sortilégios
mas além do âmago
os interstícios
negam a cura de remédios
A tomografia computadorizada
acusa olho gordo
Não se resolve em cataplasmas
a dor que habita este corpo
amplia-se em pira de nervos
não se dissolve em vapores
ou compressas de gelo
O lado esquerdo meio esquecido
o lóbulo direito retaliado
revelam coriscos de enigmas
Adeus, adeus, boa viagem...
(adeus estrada comprida
adeus à motocicleta
adeus minha capoeiragem)
A ressonância magnética
acusa olho gordo
discopatia degenerativa &
coisa feita na encruzilhada
Mas considero o abaulamento discal
como sinal de esgarçamento anular
& me ofereço em sacrifícios
a despeito de vodu combatem os orixás
indiferentes a curandeiros diplomados
Nem o silêncio sepulcro
nem a estridência do grito
eu me ofereço em sacrifício
pois a alma é inquilina neste edifício
& a qualquer hora vai se despejada
- pero, rechazo el tango argentino -
enquanto um balconista oferece
cicuta para a faina
& chumbinho & estricnina
para as coisas do espírito
(Heitor Brasileiro Filho é poeta, cronista e ensaísta. Gosta de mulheres, viagens de moto e pratica capoeira. Antes elegeu a poesia seu esporte radical, alguns poemas foram premiados, outros ainda não foram corrompidos.)
PALAVRA, LUZ, IMAGEM
Por Milton Sampaio
Para mim, que estou mais acostumado a “escrever com a luz”, conceito grego da palavra fotografia, é sempre difícil escrever com palavras.
Mas vamos lá!
Quando comecei a me envolver com fotografia vivenciei um grande dilema quando me deparava com as discussões sobre o “enquadramento” desta forma de comunicação no campo das artes. No final das contas, acabei não dando muita bola para a discussão, pois, o que importava - e importa - é o impacto visual e a comunicação que uma imagem pode produzir.
Minha linha de trabalho está ligada ao fotojornalismo, que creio ser a expressão mais verdadeira desta forma de comunicação, mesmo em tempos de fotografia digital e digitalização de imagens, onde existe toda uma hipótese de manipulação. Dentro desta perspectiva e trabalhando como docente de fotojornalismo em uma instituição de ensino, Faculdade Estácio de Sá, unidade de Vitória – ES, meus alunos e eu visitamos a Ilha das Caieiras para por em prática o exercício da atividade de repórter fotográfico.
Pude comprovar o quão gratificante é ver estes alunos recortarem um pedaço daquela realidade e com isso constatar a verdade escrita por Gisele Freund, autora de uma obra literária sobre fotografia. Ela diz que “com a fotografia, abre-se uma janela para o mundo. Com o alargamento do olhar o mundo encolhe-se. A palavra escrita é abstrata, mas a imagem é o reflexo concreto do mundo no qual cada um vive”.
Não desprezo a palavra escrita, porém, como fotógrafo e admirador da arte, vejo a imagem como a concretização da poesia produzida pelos poetas. A sensibilidade para capturar o instante transforma uma imagem num texto poético, apenas com o clicar de um botão. A vida parece que paralisa, o tempo afina seu compasso com o olhar do fotógrafo e o mundo pode ser visto, sob qualquer ângulo, em sua beleza mais plena... A serenidade da vida à beira-mar é o prenúncio do Paraíso.
A beleza está em qualquer lugar. Como diz Lívio Bertari “não há coisas novas para ver, mas há novos olhos para olhar”. E assim o mar, num diálogo amoroso e paciente espelho, refletem o momento da contemplação da Ilha das Caieiras. As imagens dos olhares todos, expressando o ideal de beleza na canoa que se equilibra sobre a maré a vazar suas águas para ir ao encontro de outras mais profundas.
“Não haverá memória das coisas que hão de suceder”, se não as eternizarmos pela obra do artista. Se em preto e branco, se colorida, não importa... Existe a presença ativa do coração humano. Há a perenização dos aprendizados da vida quando, de geração em geração, os ensinamentos são fontes para a criação do novo. A nuvem que passa e fica, a criança que mostra e nos ajuda a ver com olhar desmedido, os barcos que dormem... E a vida que acorda em nós.
Gostaria de colocar todas as fotos que foram tiradas e apresentadas numa exposição, mas infelizmente os espaços são curtos. No entanto todos os alunos que participaram do trabalho são a força que me faz continuar na lida de professor. Meus alunos, os poetas do olhar.
( Milton Sampaio tem uma vasta experiência no ensino em fotojornalismo. Foi repórter fotográfico da imprensa do Espírito Santo. Hoje dedica-se à docência de fotografia da Faculdade Estácio de Sá, de Vitória. As fotos expostas ao longo desta Quarta Leva, fazem parte de um ensaio fotográfico de alunos orientados por ele, o qual culminou numa exposição sobre a Ilha das Caieiras, em Vitória. Seu e-mail para contato é: miltonsampaio@hotmail.com )
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
Em meio ao universo múltiplo da música baiana, a banda de rap O Quadro abre novos horizontes no cenário cultural local. Ainda desconhecido do grande público nacional, o grupo ilheense, formado por Hãs (vocal), Freeza (vocal), Jeff (vocal), Rico (baixo), Victor (bateria), Reneudes (Dj) e Jax (percussão), vem desenvolvendo um trabalho autoral, com letras e arranjos próprios. Chama atenção, no processo criativo deles, a utilização de referências e elementos regionais, rompendo com certas resistências e lugares-comuns talvez peculiares do gênero musical a que se dedicam. Tudo começou em 1996, durante uma apresentação de valores artísticos da escola pública em que os componentes estudavam. Depois ficaram quatros anos sem tocar juntos, por conta de projetos paralelos. Retomaram o caminho em 2001 e hoje vivem a recompensadora expectativa de lançarem o primeiro disco de suas carreiras. Nesta conversa, os integrantes do grupo falam de suas características, influências, intenções, criação e, também, sobre o nascimento desse primeiro filho, seu disco, ainda sem nome.
DA - Como surgiu a idéia de criar uma banda desse gênero num cenário talvez atípico? Vocês conseguem se utilizar dos elementos culturais locais para incrementar a sonoridade?
O Quadro - A gente já ouvia e fazia rap, mesmo não sendo uma coisa comercial na época, em 1996. Independente de modismos, iniciamos os trabalhos pensando numa mudança. Criamos uma banda de rap com incrementos acústicos, fugindo um pouco da coisa MC/Dj. Apesar do cenário comercialmente atípico, a gente deu início aos trabalhos. Utilizamos elementos da música baiana, mas sem panfletarismo do tambor, do atabaque. Talvez muito mais algo Caymmi, Gerônimo, do que os tambores da Timbalada.
DA - No meio musical, quais seriam suas principais influências?
O Quadro - Tim Maia, The Mars Volta, Lee Perry, João Bosco, Kraftwerk, Elis Regina, Sepultura, etc. Ouvimos todos com a mesma intensidade e respeito, e isso tudo forma a nossa identidade musical, o que nos deixa bem abertos ao novo.
DA - Percebe-se, nesse estilo musical que é o rap, um comprometimento com a mensagem, com perspectivas de transformação nos mais variados níveis. A escolha em seguir este caminho corresponde a uma necessidade de chamar atenção para a mudança?
O Quadro - Nem sempre. Porque, enquanto banda, a gente não está cem por cento reclamando de alguma coisa. Estamos fazendo música, coisa que gostamos de fazer, algo que nos divertimos fazendo. Nosso compromisso com a parte política já é a nossa convivência. Na hora de reclamar, procuramos os lugares certos, as pessoas certas, ir direto ao assunto... No meio do rap ou na música de protesto, hoje, existem muitos “coitadinhos”, que são os caras que não apontam a saída e ficam reclamando das mesmas coisas, dos mesmos problemas, sendo que, às vezes o problema está acima do que se vê. Com isso, o sujeito fica se repetindo e não se expande nem no terreno do protesto nem no da arte. O negócio é chamar atenção por outras formas, fazendo arte de um jeito diferente, sob pontos de vista diferenciados, tendo o ponto de vista do “inimigo”, por exemplo.
DA - Vocês fazem um trabalho autoral, com letras que denotam uma crítica, um certo engajamento com as questões sociais. Como é possível falar em tom de protesto sem, no entanto, correr o risco de criar um discurso panfletário?
O Quadro - Pelo bom-humor. Segundo alguém que não lembramos agora, o bom-humor é sinônimo de inteligência, o que não significa ser engraçadinho. Hoje se tem muito a coisa do rap “marrento”, fechadão. O grupo Racionais, por exemplo, que tem um estilo próprio e são pioneiros, tem algo particular que parte de uma vivência deles, de uma realidade mesmo. No entanto, muitos grupos tendem a imitá-los, tendo a banda como uma cartilha ABC de como se faz rap. Isso fica chato porque gera a repetição.
DA - Certa vez, um notório crítico e estudioso musical afirmou que estilos como o rap e o hip hop se originaram da tradicional embolada, gênero musical típico do Nordeste. Concordam com tal opinião?
O Quadro - Sim, porém, ao mesmo tempo, na Jamaica e nos EUA o mesmo povo negro se organizava musicalmente de forma parecida. Os ritmos se parecem e devem ter outro nome porque nasceram em lugares diferentes, com línguas diferentes. Então é plausível a coisa do rap ter nascido no Nordeste.
DA - Como é o processo criativo de vocês? Vocês se interessam em dialogar com outras esferas da arte para acrescentarem coisas novas ao trabalho?
O Quadro - Um compõe a letra, outro a música e daí combinamos os dois. Todos escrevem, conversam muito. Tempos como influência grandes nomes da literatura e pequenos também. Há também um interesse pelas artes plásticas, pelo design. Mesclando tudo isso, acabam surgindo idéias modernas, inusitadas. Sem querermos ser pretensiosos, mas já sendo (risos), uma movimentação vanguardista.
DA - Agora vocês estão próximos de gravarem o primeiro disco. Qual é a perspectiva para a repercussão desse trabalho? O disco já tem nome e uma característica própria?
O Quadro - O disco ainda não tem nome. A perspectiva é a de uma banda nova que tem alguns bons contatos e acredita na própria força, visto que a gente não está numa grande gravadora. Não é um disco ou uma banda que se parece com uma outra banda. Pode se parecer com várias, mas não com as de rap que existem hoje no Brasil.
Conheça um pouco mais sobre O Quadro, acessando:
http://www.bocadaforte.com.br/ ( Clipe Valor de x2 )
www.myspace.com/oquadro
http://www.oquadro.palcomp3.cifraclub.terra.com.br/
UMA CANÇÃO
ANDREA DORIA
Renato Russo
Às vezes parecia que, de tanto acreditar
Em tudo que achávamos tão certo,
Teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais
Faríamos floresta do deserto
E diamantes de pedaços de vidro.
Mas percebo agora
Que o teu sorriso
Vem diferente,
Quase parecendo te ferir
Não queria te ver assim
Quero a tua força como era antes
O que tens é só teu
E de nada vale fugir
E não sentir mais nada
Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo, então, seria um livro aberto
Até chegar o dia em que tentamos ter de mais
Vendendo fácil o que não tinha preço
Eu sei – é tudo sem sentido
Quero ter alguém com quem conversar
Alguém que depois não use o que eu disse
Contra mim
Nada mais vai me ferir
É que eu já me acostumei
Com a estrada errada que eu segui
E com a minha própria lei
Tenho o que ficou
E tenho sorte até demais
Como sei que tens também...
( Canção integrante do álbum Dois, do Legião Urbana)
(quase) ANÔNIMO – O POETA DAS RUAS
por Neuzamaria Kerner
Aqui encontramos um poeta diferente, isso porque seus poemas não podem ser caracterizados como poesia convencional, nem na forma de como se apresenta e muito menos na forma como chega até nós.
O poeta Gustavo Caverzan Vasconcelos fragmenta-se para tornar-se uno com a poesia. Tudo surpreende em seu texto a partir das imagens que cria num vocabulário rebuscado, mas provocador de sensações em quem vigia na vigília a poesia filosófica que passeia nas noites.
Fazer poesia pode até ser fácil para alguns, mas se dispor a compartilhá-la da forma como Gustavo o faz, é muito difícil porque ele é
“testemunha de uma linguagem oculta, somente decifrada nas baixas freqüências adjacentes do sono”.
Sim, do sono de quem passa a vida em estado de letargia sem perceber que nas ruas há um poeta solto, acordando com a trombeta dos seus versos os dormidores inveterados ou convenientes, visto que poesia é difícil de ser enxergada pelos que se recusam a abrir os olhos.
Conheci este poeta (quase) anônimo numa noite enquanto me deliciava na Banca da Regina, Pérola da Bahia, na Praia de Camburi, comendo acarajé para matar as saudades do gosto da minha velha Salvador.
Chegou de mansinho, alguns livros nas mãos, aguardou que eu saboreasse um último pedaço do gosto da minha cidade... Colocou seu livro – CRAVELHA – sobre a mesa e, nesse momento, vi a possibilidade de ampliar o meu prazer: ler poesia. Uma poesia diferente que me chegava aos olhos de uma forma inusitada. Encantei-me de primeira e o poeta, antes tímido, abriu seu verbo poético.
SEDA
Ventos tranqüilos nascem perante
o primeiro pôr-do-sol...
Estou mais sozinho do que pensava.
Parece que a poesia decidiu me deixar
Por um tempo. Não sei até quando.
Até ela, o tempo me esconde.
E tudo que me resta é a espera,
uma desacordada esperança.
Talvez eu não seja poeta
e acho que nunca serei.
Mas com o pouco que me resta,
eu ainda consigo dizer te amo.
Eu te amo.
*
(...)
o vento será um pedaço quase nu, na resina artificial
de uma refeição quase humana. Com talheres quase novos.
Nós também temos apetite.
E por isso despimos o paladar febril que nos alimenta
sempre a preço de custo. Sempre a custo de tudo.
......................................................................................
*
CRUZ
Há uma imensa cidade
Em ruínas dentro de mim.
Um vácuo anmnésico
coagulado numa ruptura antimatéria,
jamais interpretada
pelos invisíveis olhares da percepção.
A destruição
é um ponto forte em sua presença
que me desorienta,
feito uma sinfonia de corvos.
A cidade é um cemitério desonesto
e o meu corpo, uma cruz.
*
(...)
Agora elas estavam a sós.
Aquelas duas criaturas espiritualmente condenadas
pela eternidade, definitivamente agora, estavam sós.
Duas facções inimigas do pânico, desespero, ali...
frente a frente.
Nunca vi algo se entregar daquela estranha forma.
Para mim, um suicídio silencioso,
mórbido, bárbaro, doloroso...
Doloroso sim, até que a vida nos separe.
E sem mais tardar, naquele exato instante
lembrei-me do tempo em que fui um pacato embrião
enclausurado na placenta secreta do infinito.
Então ali – chorei... chorei pela última vez.
Aquela alma sentiu em mim
toda a dor da face escura do fim
e o espírito contido naquele impenetrável universo
já vagava morto para o Pai,
enquanto a Gralha certificava-se atentamente
da inexistência do que havia dizimado.
E nada mais existia.
e nada, e nada...
nem meu corpo, nem minha alma
e nem o meu espírito.
... Ela enfim, perambulava vagarosamente pela escuridão
da minha existência, como um anjo pagão
à captura da paz. Apagando assim a minha história.
Como era no princípio e para todo o sempre...
... e o dia amanheceu.
Editores não lhe conhecem porque não se dispõem a caçar anônimos. Não haverá retorno financeiro – pensam -, muito menos ibopes nas listas dos mais lidos. Mas o poeta não desanima, não adoece de tristeza e vai para as ruas noturnas porque...
Em toda cura há um versículo de amor.
E o poeta continua a falar com os ainda acordados para deixar sua marca numa folha de papel que deixa de ser apenas uma folha em branco, deixa de ser nada para ser a mensagem contida na poesia e...
À noite fico estranho.
Eu também fico estranho quando...
toda noite,
ela inteira.
CRAVELHA – nome do livro – pode ter muitos significados num dicionário, mas neste momento Cravelha é o livro do poeta anônimo, caminheiro das noites de Vitória do Espírito Santo. É a arma com a poesia no gatilho, pronta para acordar o mundo com seu estrondo.
(Em 2005, o próprio Gustavo Caverzan cuidou da montagem gráfica de seu livro. Seu contato está disponível através do e-mail: guvoz@bol.com.br)
MAIS UMA VIAGEM HOLOGRÁFICA
por Luiz Felipe da Palma*
Quero deixar bem claro desde o início “que não tenho nada com isso!”
Diz o ditado que se eu penso, logo existo, e se existo, eu protesto e se protesto acho que sou honesto! Então reflito... E se reflito, não me omito! E tudo isso a que me refiro, uma coisa é certa: de que nada tenho com isso!
Apenas quando vou à praia, respiro! Ouço rocks tantos e tantos que a cada suspiro, me inspiro! Ufa!!! Me policio para não repetir os erros que insisto
em cometer, meter, meter, meter...
De volta à praia, imprudente, me exponho ao sol sem pensar se há buracos no ozônio. E sem prever o câncer, demônio deformador
dor, dor, dor...
Não quero esquecer de ter fé. Ter esperança é lucidez, para novamente dizer
“nada tenho com isso!”
Mas na areia da praia espero teu beijo que nada tem de desejo, mas sim de solidão, que nada tem de amor, mas sim tem tesão, que desbota a cor, como no céu um avião anuncia:
“chegou o verão!”
ora bolas!!! Isso eu já sabia!!!
Mas mesmo assim não desisto e apesar do porre, repito:
- Não olhem para mim, que nada tenho com isso!
* Luis Felipe da Palma é Planetarista na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Contato: felipedapalma@gmail.com
Mais informações sobre o autor, vide Terceira Leva.
JANELA POÉTICA (V)
BODAS DE SANGUE
(Para Cristina Hoyos)
José Inácio Vieira de Melo
Que beleza é essa que tanto me incomoda?
Que olhar de tâmara – sâmaras que se semeiam –
transborda dos cântaros de tua íris?
O que anunciam teus inquisidores e translúcidos olhos?
Tudo em ti é duplo, senhora do amor bruxo.
De tuas mãos multiplicam-se os gestos e as bênçãos
e com tuas mãos dizes mais que cem mil bocas juntas
e essas mesmas mãos prenunciam a beleza de tuas ancas.
Mas mais do que tudo, o que impera em ti
são esses milagres que são tuas tetas,
dois punhais que a cada instante furam minha paz
e que me ensinaram a amargar a verdadeira sede.
Ah Cristina Hoyos, deusa de Espanha,
vem bailando em nuvens e em versos de Garcia Lorca,
vem com teus punhais para a minha peixeira de 12 polegadas,
pois as nossas bodas só podem ser de sangue.
(José Inácio Vieira de Melo é poeta e jornalista. Publicou os livros Decifração de Abismos (2002) e A Terceira Romaria (2005), dentre outros. É co-editor da revista Iararana e colunista da revista Cronópios. Coordena o projeto Poesia na Boca da Noite, em Salvador.)
UNIVERSO MUSICAL
por Neuzamaria Kerner
Mariá Pinkusfeld foi descoberta cantora, por seu pai, no momento em que nasceu: “que instrumento vocal tem esta menina, vai ser cantora!”, disse ele. A meninazinha foi crescendo e já foi tendo seu contato com o palco quando acompanhava o pai, Eugênio (Xangai) Avelino nas Cantorias.
As primeiras experiências com palco – lembro – uma garotinha de uns 4 para 5 anos, risonha, leve, angelical e muito compenetrada da importância do seu papel, doce voz que somente as crianças têm, cantava “menino vem brincar no mar, ó mar, vem lavar pé de menino...”
No Rio de Janeiro, estudou canto com a professora Fátima Regina. Em Salvador, no Pelourinho, trabalhou numa casa de show, adornando o espírito de quem a ouvia, cantando numa voz já madura e cada vez mais bela. E como é uma artista completa, hoje aos 21 anos, faz teatro desde que estreou na peça Mulheres Populares Brasileiras. Atualmente possui uma banda formadas por garotas da sua idade, cantante-contente, onde tem a oportunidade de mostrar todo o seu talento. Também tem um clip onde canta uma música de Targino Gondin, Manuka Almeida e Alexandre Leão.
Mariá ainda não gravou um CD sozinha, por se dizer muito exigente, mas quem quiser vê-la, pode fazê-lo no DVD ESTAMPAS EUCALOL (Xangai), cantando Enfeite das Caboclas, que ela considera um presente de Juraildes da Cruz (ou da Luz? – ele é tão iluminado!).
DROPS DA SÉTIMA ARTE
por Fabrício Brandão
O Mundo é uma cabeça. Brasil. 2004.
Valioso registro da verdadeira revolução musical oriunda de Pernambuco, O Mundo é uma cabeça capta momentos que assinalaram o movimento Manguebeat como sendo a mola propulsora de uma nova ordem cultural. Dirigido por Cláudio Barroso e Bidu Queiroz, o documentário percorre a efervescente Recife em busca dos traços e elementos que ajudaram a marcar o inusitado gênero. Chico Science, o mais importante precursor do Manguebeat, aparece, como um cicerone, em depoimentos que pontuam as manifestações originais daquele movimento. Alguns outros expoentes, tais como Fred 04(Mundo Livre S/A), Otto, Helder e Siba, Mestre Salustiano e Gilberto Gil emprestam suas opiniões sobre a importância do novo cenário. Os relatos dos entrevistados apontam para o reconhecimento de um ambiente musical dotado de vida própria, misturando elementos regionais e globais que formam uma identidade. Neste filme, uma das virtudes do panorama cultural brasileiro acaba sendo bem destacada: a afirmação das forças locais. Mais do que simplesmente exaltar o sucesso de um eixo em especial, O Mundo é uma cabeça abre outras perspectivas, quais sejam as de perceber, em cada canto do país, uma vasta possibilidade de transformação das pessoas e lugares pela arte.
(O Mundo é uma cabeça pode ser visto pelo site http://www.portacurtas.com.br/)
Ponto Final (Match Point). Reino Unido/EUA. 2005.
Escrito e dirigido por Woody Allen, Match Point está longe de ser o lugar neurótico usual das comédias inteligentes desse diretor. O filme, além de não aderir ao cômico, faz com que os diálogos habituais de Allen dêem lugar a um percurso mais psicológico dos personagens, algo um tanto mais profundo, existencial mesmo. Prova disso está na conduta do protagonista Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers), um ex-tenista que abandona a profissão por não se sentir seguro o bastante para enfrentá-la. Chris, então, passa a ser professor de tênis numa escola para ricos londrinos. Lá, ele conhece Tom (Mathew Goode), membro de uma abastada família e que lhe abre as portas para um novo mundo. A imersão de Chris noutro ambiente começa quando ele passa a namorar a irmã de Tom, Chloe (Emily Mortmer). A partir daí, ele assume um cargo nas empresas do sogro e casa-se com Chloe. No meio disso tudo, ainda existe a figura crucial de uma namorada de Tom, Nola (Scarlett Johansson), que acaba tendo um caso com Chris. Os fatos ganham uma condução de feições angustiantes quando o cerco vai se fechando sobre o protagonista. Ele tem que decidir entre arrastar um casamento inconsistente ou deixar tudo para assumir a paixão avassaladora por Nola.
Há um intertexto presente no filme de Woody Allen no que se refere ao comportamento dilemático do personagem principal. Quem leu Crime e Castigo, de Dostoievski, pode achar alguma semelhança entre o Chris, de Allen, e o conflituoso Raskolnikof, protagonista da obra do escritor russo. Uma certa proximidade de conduta entre os dois é patente e poderia dizer que, em alguns momentos, parece idêntica. A alusão à obra literária também aparece quando vemos Chris lendo Crime e Castigo. Através dessa conexão, o diretor opera uma verdadeira inversão de ações, fazendo com que a trama assuma um desfecho surpreendente. Numa boa medida, cinema e literatura compõem a base desta envolvente história.
FRAGMENTO
DE CABEÇA PENSADA
Marina Colasanti
Tinha 30 anos quando decidiu: a partir de hoje, nunca mais lavarei a cabeça. Passou o pente devagar nos cabelos, pela última vez molhados. E começou a construir sua maturidade. Tinha 50, e o marido já não pedia, os filhos haviam deixado de suplicar. Asseada, limpa, perfumada, só a cabeça preservada, intacta com seus humores, seus humanos óleos. Nem jamais se deixou tentar por penteados novos ou anúncios de xampu. Preso na nuca, o cabelo crescia quase intocado, sem que nada além do volume do coque acusasse o constante brotar.
Aos 80, a velhice a deixou entregue a uma enfermeira. A qual, a bem da higiene, levou-a um dia para debaixo do chuveiro, abrindo o jato sobre a cabeça branca.
E tudo o que ela mais havia temido aconteceu.
Levadas pela água, escorrendo liquefeitas ao longo dos fios para perderem-se no ralo sem que nada pudesse retê-las, lá se foram, uma a uma, as suas lembranças.
( Extraído do livro Contos de Amor Rasgados, de Marina Colasanti, Editora Rocco, 1986, Rio de Janeiro)
JANELA POÉTICA (VI)
SOBRE AS ÓRBITAS DE TANZA
Fabrício Brandão
Teus pés calçados em produto vil
Ousaram cruzar as linhas do confronto das gentes
Daqueles povos embebidos no temor civil,
Fantasma que assola as gerações de sempre,
Marca inconteste da ignorância humana.
Desde cedo,
Infante,
Empunhas a arma sobre o peito
E te projetas alheio às razões da luta que pertence ao nada.
Tu e teus companheiros,
Outros tantos meninos-homens,
Buscam os signos perdidos da fantasia
Em meio à surda discordância dos embrutecidos.
E não podemos condenar os tais homens
Embotados em trilhas de ódio tolo,
Pois eles herdaram, solitários,
Os imperativos de uma existência indesejada.
Um dia,
Estes foram também outras tantas legiões
De pequenos seres com o mesmo medo que sentes agora.
Resta-me, então,
A lembrança viva de tua cabeça inclinada,
Serena por assumir que sabes,
Melhor do que ninguém,
Dar significado às lágrimas da pureza
que vejo brotar em teu rosto.
( Inspirado na leitura emocionada do filme Tanza, de Mehdi Charef)
MAIS (EX) ANÔNIMOS DAS RUAS
por Neuzamaria Kerner
“Se ler livros geralmente se aprende nos bancos das escolas, outras leituras se aprendem por aí, na chamada escola da vida: a leitura do vôo das arribações que indicam a seca – como sabe quem lê Vidas Secas de Graciliano Ramos – independe da aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros”. É assim que Marisa Lajolo introduz um estudo sobre leituras: Do mundo da leitura para a leitura do mundo – Ática, 2002.
Muitos têm vícios, não importam quais. Muitos têm manias, não importam quais. Todos temos loucuras e alguns momentos de sanidade. Eu tenho de tudo: vícios que no meu ponto de vista são saudáveis; manias que devem irritar os que convivem comigo de perto; loucuras mil; sanidade? Oxente, o que é isso? Mas eu tenho uma mania retada: observar a vida alheia!
Acontece, porém, que ainda não fui internada nem processada por observar e falar da vida alheia porque meus olhos se esforçam somente para ver o bem, o que é bom e bonito. Não observo os outros simplesmente. Eu leio tudo o que está à minha volta... ventos, cheiros, palavras, gentes, gestos, olhos, movimentos, céu, lua (já até a bebi), e leio um monte de coisas mais. Em verdade eu leio o mundo. Os gestos das gentes que se movimentam nesse espaço coletivo da vida. E penso! Em qualquer lugar e hora. É na leitura de mundo que aprendemos mais, visto que é nele que as coisas estão e acontecem.
Bem, fui almoçar na Praia do Canto, em Vitória do Espírito Santo. De repente, um violão andino invadiu o quase-silêncio do restaurante. Era junho, 1999. Uma voz castelhana não teve escolha e acompanhou a música que as cordas do violão insistiam em espalhar. Por minha vez fui tomada por aquele sentimento de pertencença ao mundo e ao momento. A voz era de um anônimo cantador itinerante de bares e restaurantes, Juanito Ovelar, componente dos grupos Los Inkamaru, América 4 e Pachamama. Entre outras músicas cantou a que está abaixo transcrita – do grande poeta dos Andes, Ataualpa Yupanki. O cantor ia passando de mesa em mesa, com um sorriso que só os vitoriosos possuem, e apresentava um CD de selo independente, Record Andino. Era sentir a América Latina unida pelos instrumentos quena, zampoña, charango e bombo leguero.
LOS HERMANOS
Que nos lo puedo contar
En el valle y la montaña
En la pampa y el mar
Cada cual com su trabajo
Com su sueño cada cual
Com la esperanza adelante
Com sus recuerdos atras
Yo tenho tantos hermanos
que nos lo puedo contar
Gente mano caliente
Por eso de la amistad
Com un lloro pa’llorarllo
Com un rezo pa’rezar
Com un horizonte abierto
Que siempre esta mas alla
E esa fuerza pa’buscarlo
Com teson e voluntad
Qdo parece mas cara
Es quando se aleja mas
Yo tengo tantos hermanos
Que nos lo puedo contar
Y asi seguimos por el mundo
Nos volvemos a encontrar
Y asi nos reconecemos
por el lajano mirar
Por las coplas que mordemos
Semillas de inmensidad
Y asi seguimos andando
Curtidos de soledad
Y en nosostros nuestros muertos
Pa’ que nadie quede atras
Yo tengo tantos hermanos
Que no lo puedo contar
Y una hermana muy hermosa
Que se llama libertade
(Contato com o grupo América 4, Pachamama e Los Inkamaru: