CICERONEANDO
Acreditando cada vez mais na causa pela qual lutamos, chegamos à conclusão de mais uma Leva. Com ela, vem também o encerramento de um ano que trouxe descobertas muito valiosas no terreno cultural. A perspectiva de despertar a participação de mentes criativas para os intuitos da palavra e de outros feitos artísticos vem se juntar à vontade permanente de criar vínculos com novos criadores. Foram tantos encontros felizes, pautados pelas veredas dessa ferramenta útil chamada Internet. E a ela conferimos a qualidade de ser tida como o caminho eletrônico, possibilidade que, se for bem utilizada, gera excelentes chances de trocas e produções de sentidos. A Quinta Leva continua convocando mais gente a participar das realizações aqui mostradas. A poética trilha suas vias com o auxílio de João Pedro Roriz, Djalma Amorim de Santana, Paulino Vergetti e Vicente Franz Cecim. Abrimos espaço para uma pequena exposição de trabalhos da fotógrafa gaúcha Ana Lúcia Meinhardt. Affonso Romano de Sant’Anna situa alguns propósitos de seu mais novo livro, numa abordagem reflexiva em torno da nossa percepção sobre o mundo. O roteirista Marcos Penalva Silva nos propõe o decifrar de Vidas Reincidentes. Para aqueles que gostam de pesquisa musical, inauguramos o quadro Ouvidos abertos, onde falamos de descobertas musicais e discos que valem a pena conservarmos vivos em nós. Agradecemos a todos aqueles que leram, colaboraram e divulgaram conosco esta iniciativa. Vivas aos que se esmeram na árdua tarefa de mostrar seus trabalhos, seja qual for a mídia. Vivas aos anônimos! Vivas à arte!
JANELA POÉTICA (I)
Ergue-te monstro de esperança!
por esta madrugada insone e fria
e aos gargalhos desperta a alegria
da nova aurora que se aproxima.
perdoe o velho moribundo
a esvair-se, indefeso
e planta tua presença irrevogável.
e reina em tua magnificência
até quando a ti for determinado
prolongar o relâmpago do gozo
e culminar com teu próprio fim.
Foto: Ana Lúcia Meinhardt
por Fabrício Brandão
Sigo percebendo, sentindo, olhando, procurando criar novas e diferentes perspectivas para a melhoria do ofício de minha escrita. É um terreno eivado de suas complexidades, do algo imprevisível talvez. Diria até que cheguei a ouvir estranhas vozes tentando me indicar por qual vereda seguir. Não vislumbro uma receita certa para a materialização das palavras. Para ser honesto, nem sei se isso existe, muito embora seja daqueles que negam tal tipo de determinismo.
OUVIDOS ABERTOS (I)
MARIANA AYDAR – KAVITA 1
Ler é ler o mundo. Ver é interpretar. Nossa sociedade está poluída com excesso de informação, o conhecimento está poluído. É necessário reaprender a ler e a ver. A metáfora da cegueira, do ver/não-ver que está em diversos mitos – Édipo, Orfeu, Lady Godiva, na história do “rei nu” de Andersen, num conto de H. G. Wells, em Saramago e outros – é ilustrativa de nossa época. Vivemos na cultura do visual, numa sociedade que se gaba de ser informacional e, no entanto, o nosso analfabetismo funcional nunca foi tão alarmante. Daí a epígrafe de L.L. White que uso no livro A Cegueira e o Saber: “Somos em verdade uma raça de cegos e a geração seguinte, cega à sua própria cegueira, se assombrará com a nossa”.
*Affonso Romano de Sant’Anna, autor do livro A Cegueira e o Saber (Rocco, 2006), é colaborador do Diversos Afins.
BARCAROLA GREGA
João Pedro Roriz
Com seus cânticos de guerra,
O mar, guerreiro-atlântico,
Enfurece-se no horizonte.
Sob a arquitetura do cruzeiro,
Atrai para perto dos faróis
– Como um parco inseto a um luzeiro,
O barco de Odisseu e outros heróis.
O mar, embevecido de poder, feito um arconte,
Encerra a vida de alguns jovens marinheiros.
Atira-os às pedregosas encostas de uma cidade
E ao final da odisséia,
Encomenda ao grande Homero
– Gondoleiro de transporte à eternidade
Uma linda epopéia de caráter austero
Que os leve ao Reino da Morte.
(João Pedro Roriz é ator e escritor. Escreveu o musical “Carmen”, encenado em 2005 pela Cia de Teatro Arte em Voga. Escreveu as comédias “Perdas e Danos” e “O Hippie”. É autor de diversas composições musicais. Escreveu o livro/Cd “A Poesia Teatral” (editora Íbis Libris, 2006). É organizador do sarau “Um Castelo de Palavras”, no Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro, onde também ministra a Oficina Literária Novos Autores. Seus principais trabalhos como ator são a minissérie “A Muralha”, na Rede Globo, novela “Tecendo o Saber”, no Canal Futura; as peças “Violetas na Janela”, “Carmen” e “Auto da Compadecida”)
O POETA VICENTE FRANZ CECIM NOS DESTACA UM SIGNO AOS 7 VENTOS
"O que amas de verdade permanece,
o resto é resídua
O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira"
Ezra Pound
Canto 81, fragmento
*****
OUVIDOS ABERTOS (II)
SABRINA MALHEIROS – EQUILIBRIA
NADA DE NOVO
por Randolpho Gomes
Definitivamente sou um cidadão anos 90. Nos saudosos 80 era apenas uma criança com capacidade crítica suficiente para odiar os Menudos e reunir-me às escondidas com alguns “broderzinhos” infames para escutar “aquele disco que tem Silvia Piranha”, do Camisa de Vênus. Enfim, foi na década de 90 que descobri algumas coisas que ajudaram a delinear alguns traços marcantes da minha formação cultural e pseudo-intelectual. Foram experiências às vezes nem tão lícitas, mas que hoje em dia ainda servem, nem que sejam como excesso de bagagem, e que vez ou outra me remetem a um inevitável e quase questionável amadurecimento...
Hoje, após faculdades, trabalhos, suores e experiência matrimonial “estável”, ando meio que desiludido musicalmente com essa primeira década do século 21, que chamarei carinhosamente de Anos 00. Confesso que acreditava que até a metade de cada década que se sucedia, teria que aparecer alguma manifestação artística que viesse a definir por onde os fluídos criativos musicais do momento trilhariam. Algo que o saudoso Science e sua Nação fizeram nos 90, guardadas as devidas proporções do marcante ano de 86 para o então cenário rock nacional. Pergunto-me, e agora? O que há de inovador no campo da música nacional inteligível?
Admito que tenho algumas limitações em matéria de ímpeto investigativo em questão de música. Posso listar alguns camaradas meus que, auxiliados pelos avanços computacionais, andam fuçando boas coisas nesse mar. E aqui em Terras Brasilis ? Nada de novo? Nada de intrigantemente revolucionário? Quem souber de algo que me acuda, porque até o momento o que de mais experimental se apresentou aos meus sofridos tímpanos foi um tal de bolero eletrônico com a batida acelerada. Nascido nos confins periféricos de Candeias–BA, eis o Arrocha. Sem maiores comentários...
Eis a trilha sonora dos points universitários regionais. Acadêmicos entusiasmados ao som de: “mexer, mexer, ai mamãe, aí mamãe...” “arrocha, abraça, aperta e amassa”. Ou estou virando um velho metido a intelectualóide de merda, ou algo está errado no âmbito das Academias. Só me falta Paulo coelho ser considerado escritor na terra de Dostoiewsky. Chiiiii...
(Randolpho Gomes, vulgo Rãs, autodenominado Spectro 80, é um ser que anda tentando. Tenta ser músico, tenta ser escritor factual, tenta ser um bom marido e tenta ser um bom filho. “Nasci chorando, morrerei tentando”.)
19-12-06
Da Sucursal de Gothan City.
JANELA POÉTICA (III)
TEMPO*
mas faltou o tempo para caminhar...
Eu fico sentado, olhando o relógio
não vejo o tempo, que é ouro, passar.
Foi em gestação que fiquei guardado
um tempo grande, mas tempo esperado...
Houve algum tempo que tempo sobrava
mas faltava tempo para saber.
Hoje eu quero tempo para viver
e falta o tempo para trabalhar.
Eu já quis um tempo para esquecer,
abundava tempo para lembrar.
Gasto muito tempo para escrever
e falta o “tempo” para publicar...
Tenho passado o tempo observando
como os homens vivem cronometrados:
Para o trabalho se dão grande tempo,
para o lazer um pequenino tempo,
nos estudos, meio tempo de vida,
para o lar, se dão tempo de dormir.
Não há tempo para aprender a rir
sobra a eternidade para chorar.
VIDAS REINCIDENTES, UM CONVITE À LEITURA VISUAL
É certo que vivemos de pretensões. Somos sempre um embrião tardio do que pretendemos ser, quando não o somos pelas pretensões dos outros. Pensando bem, o somos pela união das duas coisas.
(Marcos Penalva Silva, roteirista de Vidas Reincidentes, é estudante de Comunicação Social e também se dedica aos feitos literários)
OUVIDOS ABERTOS (III)
DIAS CLAROS, TÃO NECESSÁRIOS...
Dia claro, de sol incandescente. Trafego pelas ruas de minha cidade. Invade-me uma poesia forte e intensa. Um som conhecido, uma mensagem de amor à vida, às pessoas, à natureza, ao mundo. Penso nas perdas e nas conquistas. Penso nas alegrias e nas tristezas que desfrutamos vida afora. Penso na capacidade que temos de recomeçar do zero, do menos um. Recomeçar sempre, independente das feridas, independente do tempo de cicatrização.
Eu penso o quanto é preciso ter coragem de recomeçar a cada vez, depois de derrotas, perdas, tristezas infinitas, lutos imprevistos. Às vezes, penso que isso é tão fácil de dizer e tão imensamente difícil de fazer. Concorda comigo?
Eu penso que todas as manhãs pelo mundo afora, pessoas acordam com esse desejo de recomeço, enfrentando o dilema: por onde e como encontrar forças pra recomeçar, buscar o brilho no olhar, a alegria de viver, com todos os riscos que esse ato significa.
Eu penso que é preciso enlaçar as tristezas, num laço bem apertado e jogá-las no desfiladeiro, que só tem o eco como companheiro.
Eu penso que é preciso enfrentar o inimigo maior, nosso eu interior, e torná-lo nosso cúmplice. Lembra de Cazuza? "Quando a gente conversa contando casos, besteiras. Tanta coisa em comum, deixando escapar segredos. E eu nem sei em que hora dizer me dá um medo. E o tempo passa arrastado só pra ficar do teu lado. Você me chora dores de outro amor, se abre e acaba comigo. E nessa novela eu não quero ser teu amigo!"
Eu penso que é preciso achar o trilho perdido, nesta nossa vidinha de cada dia, de estradas nem sempre tão planas, nem sempre bem sinalizadas, que se repartem em múltiplos caminhos sem setas de chegada.
É necessário, muitas vezes, juntar os cacos partidos de um coração que de alguma forma foi estraçalhado. Lembra de Cazuza? "Eu quero a sorte de um amor tranqüilo, com sabor de fruta mordida, matando a sede na saliva. Ser teu pão, ser tua comida, todo amor que houver nessa vida. E algum remédio que me dê alegria..."
Abrir a janela e perceber que o sol brilha a cada manhã, não apenas por nossa causa, mas apesar de nós. Saber que a vida continua quer queiramos ou não! Estejamos alegres, ou estejamos tristes. Lembra de Cazuza? "Noite estrelada, peito feliz, olho no olho, bocas úmidas. Isso é amor. Amor quente, cama de casal, luz bem baixinha pra ver gemidos de dor e alegria. Sair de si por três minutos. Isso é amor!"
A vida caminha, esteja nossa alma leve ou pesada!
Estamos vivos e, enquanto houver vida dentro de nós, temos que ter coragem e esperança de começar de novo, acreditando que vai valer a pena ter amanhecido.
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Composto por sete curtas-metragens de diferentes países, Crianças invisíveis cumpre o papel de mostrar duras realidades enfrentadas pelo universo infantil, de forma sensível e muito bem construída. Em todas as películas, vemos a infância tendo que ser forçosamente substituída pelas necessidades impostas por uma vida difícil. Seja no Brasil ou na Itália, em Burkina Faso ou na Sérvia, nos EUA ou na Inglaterra, as crianças lidam com suas vivências combatendo as agruras de frente ou reinventando um novo espaço para o sonho. O Brasil aparece representado pelo filme Bilu e João (dirigido por Kátia Lund, que também assinou a direção de Cidade de Deus), onde duas crianças catadoras de lixo reciclável perfazem sua odisséia pelas ruas de uma complexa e perturbadora São Paulo. O curta brasileiro aponta para as marcas da exploração do trabalho infantil, condição que se inicia pela própria família dos menores e que desemboca inevitavelmente num mundo externo. Merecem destaque também o simbólico e intenso Tanza, do diretor Mehdi Charef, o belíssimo Song Song & Little Mao, de John Woo, e o pungente Jesus Children of America, do incomodado Spike Lee. Cada uma das sete obras consegue marcar um ambiente de características que converge para as temáticas sociais. E aqui se opera uma relação de coexistência entre as adversidades de um mundo imposto pelos adultos e a capacidade, mesmo aparentemente reduzida, das crianças de se libertarem através dos imperativos da fantasia.
Compõem o Crianças Invisíveis*:
- Bilu e João (Brasil)- Dir: Kátia Lund
- Tanza (Burkina Faso) – Dir: Mehdi Charef
- Blue Gypsy (Sérvia) – Dir: Emir Kusturica
- Jesus Children of
- Jonathan (Inglaterra) – Dir:
- Ciro (Itália) – Dir: Stefano Veneruso
- Song Song & Little Mao (
Álbum de remixes do primeiro disco dessa grande cantora (Garota moderna), Garota diferente é de uma roupagem fabulosa. Chama atenção a magnífica pegada jazzística, somada aos elementos da bossa eletrônica e do drum ‘n bass. Talvez seja até uma redundância tentar distinguir aspectos tão integrados, mas estas influências fazem com que a obra seja algo bem característico da renovação de nosso cancioneiro. Garota diferente reúne um time de nomes expressivos do meio eletrônico, tais como Truby Trio, Raw Deal, Buscemi, The Dining Room e Gerardo Friscina. Um verdadeiro convite à boa música, digno de arranjos regados a trompete, sax, piano, batidas de samba e, é claro, uma grande interpretação.
A água diz ao impuro: "Venha cá."
O impuro responde: "Tenho vergonha."
A água replica: "Como poderá se purificar dos seus pecados sem mim?"
JANELA POÉTICA (IV)
A LUA NÃO RESPONDE
Paulino Vergetti Neto
Amortiçam-me os olhos tristes
que não mais tiverem como a lua,
essa linda flor nua do céu,
graciosa e livre de tão grande jardim.
Aporto-me ao fim de forte trago ao peito.
Sou este falso naúfrago rarefeito,
perdido do cais ao ninho
que, sem quaisquer asas ter,
voa como leve passarinho a buscar amor em tudo.
Alienou-me um certo amor
que tudo me proibiu
e entre a fereza e a meiguice
do céu que amamos, nada me disse
na estrada de um certo céu que fiz
só para vê-lo passar.
Encantam-me o céu e a lua,
enlouquece-me essa ausência tua
cadaverizando o amor que sinto.
UMA CANÇÃO
Leva a chave, me deixa trancado o dia inteiro
Não ligo, deito sobre os trilhos
Vejo o trem passar
O Tesouro da Juventude em não sei quantos volumes
E quando canto
Deixo a imaginação voar
Ela me disse: Meu bem, não tenha medo
No verão que vem
Nós vamos à praia
(Canção eternizada na bela interpretação de Elis Regina, em seu álbum Luz das Estrelas)
OUVIDOS ABERTOS (V)
“Se deveras tratam-se os livros
com um mínimo amor táctil,
tal como disse aquele outro,
melhor seria atirá-los à cabeça das multidões.”