29 de dez. de 2006,21:35
QUINTA LEVA

Foto: Ana Lúcia Meinhardt





CICERONEANDO



Acreditando cada vez mais na causa pela qual lutamos, chegamos à conclusão de mais uma Leva. Com ela, vem também o encerramento de um ano que trouxe descobertas muito valiosas no terreno cultural. A perspectiva de despertar a participação de mentes criativas para os intuitos da palavra e de outros feitos artísticos vem se juntar à vontade permanente de criar vínculos com novos criadores. Foram tantos encontros felizes, pautados pelas veredas dessa ferramenta útil chamada Internet. E a ela conferimos a qualidade de ser tida como o caminho eletrônico, possibilidade que, se for bem utilizada, gera excelentes chances de trocas e produções de sentidos. A Quinta Leva continua convocando mais gente a participar das realizações aqui mostradas. A poética trilha suas vias com o auxílio de João Pedro Roriz, Djalma Amorim de Santana, Paulino Vergetti e Vicente Franz Cecim. Abrimos espaço para uma pequena exposição de trabalhos da fotógrafa gaúcha Ana Lúcia Meinhardt. Affonso Romano de Sant’Anna situa alguns propósitos de seu mais novo livro, numa abordagem reflexiva em torno da nossa percepção sobre o mundo. O roteirista Marcos Penalva Silva nos propõe o decifrar de Vidas Reincidentes. Para aqueles que gostam de pesquisa musical, inauguramos o quadro Ouvidos abertos, onde falamos de descobertas musicais e discos que valem a pena conservarmos vivos em nós. Agradecemos a todos aqueles que leram, colaboraram e divulgaram conosco esta iniciativa. Vivas aos que se esmeram na árdua tarefa de mostrar seus trabalhos, seja qual for a mídia. Vivas aos anônimos! Vivas à arte!




JANELA POÉTICA (I)




ANO NOVO

Neuzamaria Kerner


Ergue-te monstro de esperança!

Adentra solene
por esta madrugada insone e fria
e aos gargalhos desperta a alegria
da nova aurora que se aproxima.

Ergue-te e vence esta guerra neurótica!

Caminha com passo coeso
perdoe o velho moribundo
a esvair-se, indefeso
e planta tua presença irrevogável.

Instala-te em tua nova morada
e reina em tua magnificência

até quando a ti for determinado
prolongar o relâmpago do gozo
e culminar com teu próprio fim.


*Do livro Fragmentos de Cristal, 1992.






Foto: Ana Lúcia Meinhardt








UM MISTÉRIO
CHAMADO PALAVRA

por Fabrício Brandão


Sigo percebendo, sentindo, olhando, procurando criar novas e diferentes perspectivas para a melhoria do ofício de minha escrita. É um terreno eivado de suas complexidades, do algo imprevisível talvez. Diria até que cheguei a ouvir estranhas vozes tentando me indicar por qual vereda seguir. Não vislumbro uma receita certa para a materialização das palavras. Para ser honesto, nem sei se isso existe, muito embora seja daqueles que negam tal tipo de determinismo.

A verdadeira matéria-prima de toda a produção literária, por exemplo, está na amplitude da leitura. Quando falo nesta vastidão, refiro-me a toda sorte de interpretações possíveis, sejam leituras visuais, sonoras ou frutos dos mais variados aspectos da abstração. Não acredito em produção autônoma, naquela totalmente isenta do diálogo essencial com os terceiros. Aquele que opera nos feitos de expressão, penso, abre os compartimentos mais escondidos de sua alma para tentar enxergar além do algo banalizado. Pergunto-me, então, o que caracterizaria a espinha dorsal do processo criativo. Daí, imagino tanta coisa desde impulsos inspirados em efusão até os mais tórridos estados de melancolia.

Tenho a impressão de que a arte anda se perdendo por entre exigências de uma vaidade descabida. A cada dia, por exemplo, percebo os embates travados pelas gentes à procura de reconhecimento, seja este merecido ou provocado a qualquer custo. Vejo alguns criando seus focos de resistência na tentativa de se manterem vivos, independente do tipo de mídia. Neste ínterim, no qual um considerável número de realizadores vaga à margem de “publicações oficiais”, outros tantos fuçam seus próprios espaços e alternativas. O desejo de ser tido como figura de um alto escalão artístico pode levar a uma noção equivocada de valor. Numa entrevista que assisti outro dia pela televisão, um reconhecido escritor falava do longo tempo que grandes nomes da literatura (Guimarães Rosa, por exemplo) levaram para serem devidamente respeitados enquanto autores significativos. Confesso que aquilo me deixou surpreso por sequer imaginar a dificuldade enfrentada por gente de tamanho gabarito.

É então que volto para a minha realidade, para a minha crença num fazer diário e talvez despretensioso de maiores apogeus. Escrever deve ser um processo voltado para o diálogo sincero com o outro, com um interlocutor por vezes invisível, distante. No meio do jogo tresloucado e perverso da busca por aplausos, fecham-se horizontes e círculos “intelectualóides” são criados sob uma aura pretensamente academicista. Sigo adiante, sem acreditar em concursos literários e outros tantos mecanismos imprecisos de valoração das obras. Palavras nascem para serem compartilhadas com um universo vasto de mentes e opiniões, não para permanecerem intocadas em estantes volumosas como meros objetos decorativos. O que sei é que agora, neste exato instante, vozes ocultas e brilhantes podem estar entregando suas almas às linhas sinceras de um papel qualquer.






OUVIDOS ABERTOS (I)

por Fabrício Brandão

MARIANA AYDAR – KAVITA 1





Mariana Aydar é uma dessas gratas surpresas de nossa MPB. Diria que o seu chamariz é uma voz recheada de personalidade, algo com característica própria mesmo. Kavita 1, seu disco de estréia, traz uma seleção apurada de músicas que transitam, sobretudo, em torno do samba. Trata-se de um disco dotado de bons arranjos e canções que servem como um bom cartão de visitas ao seu trabalho. Prova disso está na bela faixa Minha missão, cuja letra parece funcionar como uma espécie de apresentação para a cantora. Apesar de ser ainda desconhecida por muitos, Mariana tem, em seu histórico, parcerias com João Donato, Seu Jorge, Chico César e Leci Brandão. Vale a pena passar a escuta pela voz firme e vibrante desta promessa da boa música brasileira.









Foto: Ana Lúcia Meinhardt











SOBRE A CEGUEIRA E O SABER


por Affonso Romano de Sant’Anna*


Ler é ler o mundo. Ver é interpretar. Nossa sociedade está poluída com excesso de informação, o conhecimento está poluído. É necessário reaprender a ler e a ver. A metáfora da cegueira, do ver/não-ver que está em diversos mitos – Édipo, Orfeu, Lady Godiva, na história do “rei nu” de Andersen, num conto de H. G. Wells, em Saramago e outros – é ilustrativa de nossa época. Vivemos na cultura do visual, numa sociedade que se gaba de ser informacional e, no entanto, o nosso analfabetismo funcional nunca foi tão alarmante. Daí a epígrafe de L.L. White que uso no livro A Cegueira e o Saber: “Somos em verdade uma raça de cegos e a geração seguinte, cega à sua própria cegueira, se assombrará com a nossa”.

E se você quiser entender a minha postura como poeta, encontrará neste texto de Zigmunt Baumann uma chave de leitura: “Milan Kundera comenta (em L’art du roman, 1996): Escrever significa para o poeta romper a muralha atrás da qual se esconde alguma coisa que ‘sempre esteve lá’ (...) Para elevar-se a essa missão, o poeta deve recusar servir verdades conhecidas de antemão e bem usadas, verdades já ‘óbvias’ porque trazidas à superfície e aí deixadas a flutuar. Não importa que essas verdades ‘supostas de antemão’ sejam classificadas como revolucionárias ou dissidentes, cristãs ou atéias – ou quão corretas e apropriadas, nobres e justas sejam ou tenham sido proclamadas. Qualquer que seja sua denominação, essas ‘verdades’ não são as ‘coisas ocultas’ que o poeta é chamado a desvelar; são antes parte da muralha que é missão do poeta destruir”.

Sobre os percalços da carreira do escritor, às voltas com a folha em branco ou sucessivas recusas de editores à publicação, posso destacar: Marcel Proust, que precisou bancar a edição Em busca do tempo perdido por não encontrar uma editora disposta a fazê-lo. O autor dialoga ainda com a obra A grande recusa, de Mario Baudino. Em seu livro, o italiano conta a história das sucessivas negativas recebidas por grandes escritores como Scott Fitzgerald, James Joyce, D. H. Lawrence, Hemingway e muitos outros.



*Affonso Romano de Sant’Anna, autor do livro A Cegueira e o Saber (Rocco, 2006), é colaborador do Diversos Afins.









JANELA
POÉTICA (II)


BARCAROLA GREGA

João Pedro Roriz


Com seus cânticos de guerra,
O mar, guerreiro-atlântico,
Enfurece-se no horizonte.

Sob a arquitetura do cruzeiro,
Atrai para perto dos faróis
– Como um parco inseto a um luzeiro,
O barco de Odisseu e outros heróis.

O mar, embevecido de poder, feito um arconte,
Encerra a vida de alguns jovens marinheiros.
Atira-os às pedregosas encostas de uma cidade
E ao final da odisséia,
Encomenda ao grande Homero
– Gondoleiro de transporte à eternidade
Uma linda epopéia de caráter austero
Que os leve ao Reino da Morte.



(João Pedro Roriz é ator e escritor. Escreveu o musical “Carmen”, encenado em 2005 pela Cia de Teatro Arte em Voga. Escreveu as comédias “Perdas e Danos” e “O Hippie”. É autor de diversas composições musicais. Escreveu o livro/Cd “A Poesia Teatral” (editora Íbis Libris, 2006). É organizador do sarau “Um Castelo de Palavras”, no Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro, onde também ministra a Oficina Literária Novos Autores. Seus principais trabalhos como ator são a minissérie “A Muralha”, na Rede Globo, novela “Tecendo o Saber”, no Canal Futura; as peças “Violetas na Janela”, “Carmen” e “Auto da Compadecida”)


Mais textos do autor em:

Blog do João Pedro Roriz

Coluna Entre umas e outras






Foto: Ana Lúcia Meinhardt








O POETA VICENTE FRANZ CECIM NOS DESTACA UM SIGNO AOS 7 VENTOS



Foto: Bruno Cecim



"O que amas de verdade permanece,

o resto é resídua

O que amas de verdade não te será arrancado

O que amas de verdade é tua herança verdadeira"


Ezra Pound

Canto 81, fragmento


*****







OUVIDOS ABERTOS (II)

por Fabrício Brandão



SABRINA MALHEIROS – EQUILIBRIA




Desde pequena convivendo no meio musical, essa carioca de grande talento apresenta seu trabalho de estréia. Equilibria já foi considerado por alguns como um álbum contemporâneo brasileiro digno de ser comparado com clássicos do passado.O disco traz um mix de bossa eletrônica, hip hop e rhythm and blues. A bela voz de Sabrina se mostra bem acoplada aos arranjos que conferem a marca essencial de modernidade. Com repertório bem selecionado, Equilibria consegue dosar, em boa medida, os elementos que dão uma nova feição à MPB. Diria que se trata de um disco que faz a linha lounge, apropriado para vários momentos e ambientes.








Foto: Ana Lúcia Meinhardt





NADA DE NOVO

por Randolpho Gomes


Definitivamente sou um cidadão anos 90. Nos saudosos 80 era apenas uma criança com capacidade crítica suficiente para odiar os Menudos e reunir-me às escondidas com alguns “broderzinhos” infames para escutar “aquele disco que tem Silvia Piranha”, do Camisa de Vênus. Enfim, foi na década de 90 que descobri algumas coisas que ajudaram a delinear alguns traços marcantes da minha formação cultural e pseudo-intelectual. Foram experiências às vezes nem tão lícitas, mas que hoje em dia ainda servem, nem que sejam como excesso de bagagem, e que vez ou outra me remetem a um inevitável e quase questionável amadurecimento...

Hoje, após faculdades, trabalhos, suores e experiência matrimonial “estável”, ando meio que desiludido musicalmente com essa primeira década do século 21, que chamarei carinhosamente de Anos 00. Confesso que acreditava que até a metade de cada década que se sucedia, teria que aparecer alguma manifestação artística que viesse a definir por onde os fluídos criativos musicais do momento trilhariam. Algo que o saudoso Science e sua Nação fizeram nos 90, guardadas as devidas proporções do marcante ano de 86 para o então cenário rock nacional. Pergunto-me, e agora? O que há de inovador no campo da música nacional inteligível?

Admito que tenho algumas limitações em matéria de ímpeto investigativo em questão de música. Posso listar alguns camaradas meus que, auxiliados pelos avanços computacionais, andam fuçando boas coisas nesse mar. E aqui em Terras Brasilis ? Nada de novo? Nada de intrigantemente revolucionário? Quem souber de algo que me acuda, porque até o momento o que de mais experimental se apresentou aos meus sofridos tímpanos foi um tal de bolero eletrônico com a batida acelerada. Nascido nos confins periféricos de Candeias–BA, eis o Arrocha. Sem maiores comentários...

Eis a trilha sonora dos points universitários regionais. Acadêmicos entusiasmados ao som de: “mexer, mexer, ai mamãe, aí mamãe...” “arrocha, abraça, aperta e amassa”. Ou estou virando um velho metido a intelectualóide de merda, ou algo está errado no âmbito das Academias. Só me falta Paulo coelho ser considerado escritor na terra de Dostoiewsky. Chiiiii...



(Randolpho Gomes, vulgo Rãs, autodenominado Spectro 80, é um ser que anda tentando. Tenta ser músico, tenta ser escritor factual, tenta ser um bom marido e tenta ser um bom filho. “Nasci chorando, morrerei tentando”.)

19-12-06

Da Sucursal de Gothan City.






JANELA POÉTICA (III)


TEMPO*

Djalma Amorim de Santana


Largas passadas me trouxeram ao tempo,
mas faltou o tempo para caminhar...
Eu fico sentado, olhando o relógio

não vejo o tempo, que é ouro, passar.
Foi em gestação que fiquei guardado
um tempo grande, mas tempo esperado...
Houve algum tempo que tempo sobrava

mas faltava tempo para saber.
Hoje eu quero tempo para viver
e falta o tempo para trabalhar.
Eu já quis um tempo para esquecer,
abundava tempo para lembrar.
Gasto muito tempo para escrever
e falta o “tempo” para publicar...
Tenho passado o tempo observando
como os homens vivem cronometrados:
Para o trabalho se dão grande tempo,
para o lazer um pequenino tempo,

nos estudos, meio tempo de vida,
para o lar, se dão tempo de dormir.
Não há tempo para aprender a rir
sobra a eternidade para chorar.


* Poema extraído do livro Gritos, Ed. Caravelas/Instituto Cultural Português, Porto Alegre, 1986.


(Djalma Amorim de Santana, poeta nascido em Ilhéus-BA, faz parte de instituições literárias de São Paulo, Rio, Bahia, Goiás e Paraíba, além de ser membro da Academia de Letras de Londres. Dentre prêmios recebidos, destacam-se Menções Honrosas e Medalha de Prata no concurso nacional da Revista Brasília (1985). Começou seu ofício de escritor na pequena localidade de Banco Central, distrito de sua cidade natal, e, ao ser enxotado de lá (política de época), viveu o seu período de “branco”, que parece estar sendo tingido agora)








Foto: Ana Lúcia Meinhardt






VIDAS REINCIDENTES, UM CONVITE À LEITURA VISUAL

por Marcos Penalva Silva


É certo que vivemos de pretensões. Somos sempre um embrião tardio do que pretendemos ser, quando não o somos pelas pretensões dos outros. Pensando bem, o somos pela união das duas coisas.

Este texto também é uma pretensão, a de ser uma representação sinóptica do vídeo Vidas Reincidentes. Certamente, não o conseguirá! Ele é maior que isto! Ele é ainda maior do que pretenderam ou pretendem seus criadores, como o é a arte! Então, desembaraçaremos algumas palavras pródigas, pretensamente pródigas, com a clara expectativa de corromper a indiferença dos que esperam por uma surpresa improvável em toda massa informe de trechos complementares, no tácito terreno da comparação no universo alheio.

Às vezes, esquecemos da autonomia irrepreensível das nossas expectativas e nos perdemos nas nossas próprias ilusões, ou nas ilusões coletivas, com os recalques trazidos da nossa ancestralidade, atônitos por nossas vias sem fim e presas em um maremoto de frustrações, como um Tântalo submerso no volume simbólico do Eu e do Alter Ego. Vivemos sob a égide dos axiomas dubitáveis e das repetições inconseqüentes. Morremos voluntariamente pela pretensão de sermos eternamente alguém que se opõe a nossa natureza. Este é o foco centrípeto no enredo do mundo fragmentado do vídeo Vidas Reincidentes.


(Marcos Penalva Silva, roteirista de Vidas Reincidentes, é estudante de Comunicação Social e também se dedica aos feitos literários)

Assista VIDAS REINCIDENTES







OUVIDOS ABERTOS (III)

por Fabrício Brandão




AMY WINEHOUSE – BLACK TO BLACK




Quem olha a moça branca na capa do disco sequer imagina o que vem pela frente. Fechando os olhos e escutando seu canto, dificilmente eu acertaria a cor da sua pele, pois acreditava que era uma negra daquelas que arrepia. Poderia até jurar que se tratava de uma das divas da black music. Mas não, Amy Winehouse é o que está na capa e, melhor ainda, o que se pode ouvir dela.
Black to black é um trabalho finíssimo, marcado pelos bons arranjos e, sobretudo, pela voz imponente dessa grande cantora. O disco tem uma pegada de jazz, funk e soul fabulosa. Vale a pena conferir este som.








Foto: Ana Lúcia Meinhardt







DIAS CLAROS, TÃO NECESSÁRIOS...

por Paulo Sérgio Moreira


Dia claro, de sol incandescente. Trafego pelas ruas de minha cidade. Invade-me uma poesia forte e intensa. Um som conhecido, uma mensagem de amor à vida, às pessoas, à natureza, ao mundo. Penso nas perdas e nas conquistas. Penso nas alegrias e nas tristezas que desfrutamos vida afora. Penso na capacidade que temos de recomeçar do zero, do menos um. Recomeçar sempre, independente das feridas, independente do tempo de cicatrização.

Eu penso o quanto é preciso ter coragem de recomeçar a cada vez, depois de derrotas, perdas, tristezas infinitas, lutos imprevistos. Às vezes, penso que isso é tão fácil de dizer e tão imensamente difícil de fazer. Concorda comigo?

Eu penso que todas as manhãs pelo mundo afora, pessoas acordam com esse desejo de recomeço, enfrentando o dilema: por onde e como encontrar forças pra recomeçar, buscar o brilho no olhar, a alegria de viver, com todos os riscos que esse ato significa.

Eu penso que é preciso enlaçar as tristezas, num laço bem apertado e jogá-las no desfiladeiro, que só tem o eco como companheiro.

Eu penso que é preciso enfrentar o inimigo maior, nosso eu interior, e torná-lo nosso cúmplice. Lembra de Cazuza? "Quando a gente conversa contando casos, besteiras. Tanta coisa em comum, deixando escapar segredos. E eu nem sei em que hora dizer me dá um medo. E o tempo passa arrastado só pra ficar do teu lado. Você me chora dores de outro amor, se abre e acaba comigo. E nessa novela eu não quero ser teu amigo!"

Eu penso que é preciso achar o trilho perdido, nesta nossa vidinha de cada dia, de estradas nem sempre tão planas, nem sempre bem sinalizadas, que se repartem em múltiplos caminhos sem setas de chegada.

É necessário, muitas vezes, juntar os cacos partidos de um coração que de alguma forma foi estraçalhado. Lembra de Cazuza? "Eu quero a sorte de um amor tranqüilo, com sabor de fruta mordida, matando a sede na saliva. Ser teu pão, ser tua comida, todo amor que houver nessa vida. E algum remédio que me dê alegria..."

Abrir a janela e perceber que o sol brilha a cada manhã, não apenas por nossa causa, mas apesar de nós. Saber que a vida continua quer queiramos ou não! Estejamos alegres, ou estejamos tristes. Lembra de Cazuza? "Noite estrelada, peito feliz, olho no olho, bocas úmidas. Isso é amor. Amor quente, cama de casal, luz bem baixinha pra ver gemidos de dor e alegria. Sair de si por três minutos. Isso é amor!"

A vida caminha, esteja nossa alma leve ou pesada!

Estamos vivos e, enquanto houver vida dentro de nós, temos que ter coragem e esperança de começar de novo, acreditando que vai valer a pena ter amanhecido.


( Paulo Sérgio Moreira é colaborador do Diversos Afins)





DROPS DA SÉTIMA ARTE

por Fabrício Brandão




Crianças invisíveis. Brasil/ Burkina Faso/ Itália/ Inglaterra/ Sérvia/ China/ EUA. 2005.


Composto por sete curtas-metragens de diferentes países, Crianças invisíveis cumpre o papel de mostrar duras realidades enfrentadas pelo universo infantil, de forma sensível e muito bem construída. Em todas as películas, vemos a infância tendo que ser forçosamente substituída pelas necessidades impostas por uma vida difícil. Seja no Brasil ou na Itália, em Burkina Faso ou na Sérvia, nos EUA ou na Inglaterra, as crianças lidam com suas vivências combatendo as agruras de frente ou reinventando um novo espaço para o sonho. O Brasil aparece representado pelo filme Bilu e João (dirigido por Kátia Lund, que também assinou a direção de Cidade de Deus), onde duas crianças catadoras de lixo reciclável perfazem sua odisséia pelas ruas de uma complexa e perturbadora São Paulo. O curta brasileiro aponta para as marcas da exploração do trabalho infantil, condição que se inicia pela própria família dos menores e que desemboca inevitavelmente num mundo externo. Merecem destaque também o simbólico e intenso Tanza, do diretor Mehdi Charef, o belíssimo Song Song & Little Mao, de John Woo, e o pungente Jesus Children of America, do incomodado Spike Lee. Cada uma das sete obras consegue marcar um ambiente de características que converge para as temáticas sociais. E aqui se opera uma relação de coexistência entre as adversidades de um mundo imposto pelos adultos e a capacidade, mesmo aparentemente reduzida, das crianças de se libertarem através dos imperativos da fantasia.



Compõem o Crianças Invisíveis*:

- Bilu e João (Brasil)- Dir: Kátia Lund

- Tanza (Burkina Faso) – Dir: Mehdi Charef

- Blue Gypsy (Sérvia) – Dir: Emir Kusturica

- Jesus Children of America (EUA) – Dir: Spike Lee

- Jonathan (Inglaterra) – Dir: Jordan e Ridley Scott

- Ciro (Itália) – Dir: Stefano Veneruso

- Song Song & Little Mao (China) – Dir: John Woo


* As verbas do filme foram destinadas ao Unicef e ao Programa Mundial de Alimentos.






OUVIDOS ABERTOS (IV)

por Fabrício Brandão




ROSALIA DE SOUZA – GAROTA DIFERENTE




Álbum de remixes do primeiro disco dessa grande cantora (Garota moderna), Garota diferente é de uma roupagem fabulosa. Chama atenção a magnífica pegada jazzística, somada aos elementos da bossa eletrônica e do drum ‘n bass. Talvez seja até uma redundância tentar distinguir aspectos tão integrados, mas estas influências fazem com que a obra seja algo bem característico da renovação de nosso cancioneiro. Garota diferente reúne um time de nomes expressivos do meio eletrônico, tais como Truby Trio, Raw Deal, Buscemi, The Dining Room e Gerardo Friscina. Um verdadeiro convite à boa música, digno de arranjos regados a trompete, sax, piano, batidas de samba e, é claro, uma grande interpretação.






Foto: Ana Lúcia Meinhardt


A água diz ao impuro: "Venha cá."

O impuro responde: "Tenho vergonha."

A água replica: "Como poderá se purificar dos seus pecados sem mim?"


( Extraído da obra O Livreiro de Cabul, de Asne Seierstad, Ed. Record)






JANELA POÉTICA (IV)



A LUA NÃO RESPONDE


Paulino Vergetti Neto




Amortiçam-me os olhos tristes
que não mais tiverem como a lua,
essa linda flor nua do céu,
graciosa e livre de tão grande jardim.

Aporto-me ao fim de forte trago ao peito.
Sou este falso naúfrago rarefeito,
perdido do cais ao ninho
que, sem quaisquer asas ter,
voa como leve
passarinho a buscar amor em tudo.

Alienou-me um certo amor
que tudo me proibiu
e entre a fereza e a meiguice
do céu que amamos, nada me disse
na estrada de um certo céu que fiz
só para vê-lo passar.

Encantam-me o céu e a lua,
enlouquece-me essa ausência tua
cadaverizando o amor que sinto.



(Paulino Vergetti, médico-escritor, alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Maria. Publicou trinta e duas obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura)






Foto: Ana Lúcia Meinhardt







UMA CANÇÃO


DOENTE MORENA

Gilberto Gil/Duda Machado



De manhã cedo ela sai
Leva a chave, me deixa trancado o dia inteiro
Não ligo, deito sobre os trilhos
Vejo o trem passar

Entre brinquedos, cigarros
O Tesouro da Juventude em não sei quantos volumes
E quando canto
Deixo a imaginação voar

Mas ontem à noite, a mão sobre meus cabelos
Ela me disse: Meu bem, não tenha medo
No verão que vem
Nós vamos à praia


(Canção eternizada na bela interpretação de Elis Regina, em seu álbum Luz das Estrelas)





OUVIDOS ABERTOS (V)

por Fabrício Brandão




ELIS E TOM – 1974




Mais do que um disco, Elis e Tom é o encontro feliz e acertado de dois ícones de nossa música. Um clássico de peso, sem dúvida alguma. Uma reunião feliz entre o maestro soberano e a densa interpretação de uma de nossas maiores vozes. Elis, com sua intensa capacidade de nos levar a outros tantos lugares, conduz as canções como se fossem o algo que atravessa os nossos sentidos. A singularidade característica de sua bela voz passeia por entre pérolas como tinha de ser com você, Triste, Corcovado, Retrato em branco e preto, Fotografia, Inútil paisagem e outros tantas obras-primas. Aliados à grandiosa interpretação da cantora, estão os magníficos arranjos compostos por Tom Jobim. Elis e Tom, uma conjugação necessária aos ouvidos dos apreciadores da MPB. Vou mais além e digo que, um sem o outro não fariam disco tão perfeito. O ano da gravação, 1974, mas não importa, pois a verdadeira música é atemporal. Além disso, a gravadora Trama recentemente remasterizou esse disco, incluindo offs das conversas em estúdio. Coisa fina!






Foto: Ana Lúcia Meinhardt



“Se deveras tratam-se os livros
com um mínimo amor táctil,

tal como disse aquele outro,
melhor seria atirá-los à cabeça das multidões.”


(Trecho de Na periferia do pensamento, poema de Fabrício Brandão)



Para apreciar outros trabalhos da fotógrafa Ana Lúcia Meinhardt, acesse:

http://public.fotki.com/anaportfolio/


 
publicado por Fabrício Brandão
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