CICERONEANDO
Basta um olhar atento e percebemos aquilo que flutua sobre a superfície de nossas imagens. Depois, recobramos o fôlego para o mergulho em busca de caras próprias e sentidos para as coisas que nos atravessam a vida. Há quem diga sempre que a visão diferenciada sobre traços da existência é faculdade apenas reservada aos artistas em geral. Não existem verdades absolutas nesse terreno incerto e míope. A cada um de nós, simples mortais, cabe um repertório de astros que giram inquietos em torno desse microuniverso chamado gente. E é de gente que pulsa a matéria-prima das criações aqui existentes. Nossa trajetória de início de ano, segue os traços e pactua segredos com a arte de Fao Carreira. De nervos expostos, somos poesia vasta e intensa em Mônica de Aquino, Juan Bautista Moran, Jorge Elias, Augusto da Maya e Leo Lobos. Sabatinando o escritor baiano Hélio Pólvora, entendemos razões de uma vida escondida na palavra. Somos esperança aos olhos do miniconto de Tânia Gazito, ao passo que, na crônica de Ana Rita Ferraz, tentamos absorver as ciladas entranhadas em nossas letras. O escritor André de Leones dá seqüência aos vestígios do que desconhecemos, discutindo obras e indicando outras vias literárias. Primeira Leva do ano, caro leitor! Estão abolidas possíveis ditaduras da interpretação. A cada um, seja dado o seu próprio signo. Boas leituras!
*Comentários podem ser feitos através do link EXPRESSARAM AFINIDADES no final da Leva.
Mas o amor:
arquipélago.
(A poeta mineira Mônica de Aquino já publicou seus escritos em antologias e em páginas eletrônicas do Brasil e do exterior. Seu primeiro livro, Sístole, foi lançado em junho de 2005 (Editora Bem-te-vi). Participou de vários eventos apresentando seus poemas, dentre eles o Terças Poéticas, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, a Primavera dos Livros, em São Paulo, e a Feira do Livro de Porto Alegre)
JOÃO DAS ÁGUAS
Tânia Gazito
Naquele pedaço do mundo, ninguém estranhava que o menino de três anos ainda não tivesse nome - a terra rachada em secura, o peito magro das mães, melhor mesmo era esperar e ver se a criança vingava. Vingou. Então o pai levou-o até o notário mais próximo, e já era tão longe. Deu-lhe o nome de João das Águas. O "João" foi escolha da Maria, para que o santo protegesse a cria; o "das Águas" o homem inventou no caminho - debaixo do sol ardido, vendo verde nenhum, se deu conta do lume nos olhos do menino, pareciam até refletir um rio de fecundas águas. Pois foi matutando que já era tempo da esperança voltar.
(A paulista Tânia de Souza Gazito se diz fascinada por gente, arte, cultura popular, natureza e pela vida. Os livros são seu amor antigo e ela não se considera escritora, apenas fica feliz em brincar no mundo das palavras, quase sempre para falar dessas pequenas histórias que vivem por aí, no encontro com as pessoas, em qualquer canto da cidade)
JANELA POÉTICA (II)
ODE A ESTAMIRA*
Fabrício Brandão
uma certa cara rajada
e eu cato verbos no monturo
para limpar as falsas purezas
abraço a companhia dos invisíveis
pois eles justificam a minha intensa vontade
de não entender o solo que esmago
a boca tritura a razão que inventei
quando sei berrar ao divino
minha sã doutrina
fui apedrejada pelos restos do cometa esperado
mas, mesmo assim,
sei amansar águas com os olhos
*Para Estamira, nobre catadora de sonhos.
CU É LINDO
Ana Rita Ferraz
Durante muitos anos, orientei a minha vida pela máxima “quem tem cu tem medo”. Como ouvira dizer que a voz do povo é a voz de Deus, pensava ser este, talvez, mais um mandamento. Por dedução lógica: ora, se todos têm cu, todos têm medo. Medo de quê? Curiosa que sempre fui permaneci atenta a esta conversa de cu. “É foda no cu de Creuza”, “cu de ferro”, e ainda tinha gente que dava o “cu na praça”, diziam. Um dia recebi pela internet uma foto da capa de um LP de Tom Zé; era uma foto de um cu enfeitado por uma gude; chamava-se “Todos os olhos” - talvez aquele fosse o tal “olho do cu”, possibilidade de mirar a ditadura de outra perspectiva. E a galhofa foi aprovada - o poder não vê com todos os olhos, descobrimos. Literalmente um cu enfeitando vitrinas; um “cu piscando” e rindo dos generais.
Pois, esta história de cu tornou-se, para mim, tema de pesquisa. Sempre fui seduzida pela liberdade das palavras. Elas escapam, pensava. Um dia, diante de uma platéia com ares de intelectualidade, um amigo soletrou com cadência: "bo-ce-ta". E libertou a coitada da peja de palavrão. "Agora que os intelectuais da Folha de São Paulo a escreveram, todos vocês já podem falar", dizia ele. O recado estava dado:
- Desacomodem-se, senhores e senhoras, libertai-vos do virtuosismo, a língua do povo espoca nas ruas e nas nossas caras!
Um caso envolvendo o cu, aliás, muito pe(cu)liar, chamou-me a atenção. O mesmo amigo contou-me que quando pequeno seus irmãos mais velhos o pegavam à força para lhe cuspir o cu. Diziam que assim lhe roubavam a honra. Na verdade, não sei se perdeu a honra, mas esse sujeito é, para mim, muito especial; talvez o fato inusitado tenha lhe dado um certo charme e uma irreverência inconfundíveis. Conheço um outro que foi igualmente submetido por uma mulher; esse, num ritual de pura paixão. Até hoje sonha com ela.
Vejam que esta é uma preocupação antiga. Aos poucos, reparando aqui e acolá fui me deparando com situações que exigiam de mim uma posição firme (?) diante das palavras. Foi aí que vi grafado num muro o contraponto daquela máxima que me oprimia há tantos anos: “quem tem medo de cagar não come”. Puta que o pariu, pensei e mais que rápido fiz as associações que me pareciam devidas: “quem tem cu tem medo”, mas “quem tem medo de cagar não come”, e mesmo, “passarinho que come pedra sabe o cu que tem”. Aí reside a sabedoria popular. Com a minha adversativa criei o conflito que precisava para me (re)posicionar diante do mundo. Sim, tenho medo, mas preciso me alimentar; afinal, “saco vazio não se põe de pé”. E como diz Adélia Prado: “cu é lindo”.
(Sou Ana Rita Queiroz Ferraz, psicóloga por profissão. O que gosto muito é mexer com as palavras no mais profundo dos seus risos todos, com toda a irreverência que elas podem conter. Assim me fiz, assim me sou).
JANELA POÉTICA (III)
A REALIDADE DE CADA UM
Jorge Elias Neto
Desconheço a ordenação dos anjos,
mas sei das cores nas fachadas das casas.
Na foto antiga, as casas já receberam
O insofismável tom trazido pela areia do tempo.
Naqueles olhos ausentes,
que cruzaram desapercebidos
a falsa eternização do momento,
surpreendo o olhar humano.
Desconheço a verdade dos santos,
mas tenho aprendido sobre a mutilação do desejo.
(Jorge Elias Neto é capixaba de Vitória - ES. Médico cardiologista, seu primeiro livro de poesias, denominado Verdes versos, será lançado ainda este ano. E o poeta nos diz: “Sou do tipo de poeta que não tem cisma de beijar o diabo na boca. Sou poeta; aprendi cedo a mordiscar os lábios de Deus”)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
AYO – JOYFUL
Basta prestar atenção em toda a beleza e suavidade presentes em Down on my knees, uma das faixas destaque desse disco, e logo é possível perceber o talento dessa alemã de alma nigeriana. Por essas e outras canções dispersas ao longo de Joyful, primeiro cd da artista, mergulhamos, não somente nas suas expressões pessoais, mas também em uma série de influências em cuja fonte bebeu a cantora. O álbum traz em si elementos que remontam principalmente ao reggae e ao soul, deixando exalar, em boa medida, um certo sotaque africanizado. Joyful agrada pelas nuances intensas que atravessam a escolha do repertório. Trata-se de um trabalho que conta com bons arranjos e, acima de tudo, com a voz doce e cheia de personalidade de Ayo. Sua interpretação é vigorosa em canções como Help is coming, Letter by letter e Life is real. Por trás das letras desse seu disco de estréia, a cantora percorre um caminho marcado pelo lirismo, traço fundamental de seu canto. Para quem gosta de boa música, eis um som que se encaixa perfeitamente quando a palavra de ordem é qualidade.
JANELA POÉTICA (IV)
REALIDAD SUMERGIDA
Juan Bautista Morán
El rostro negro que aparece en el sueño de un ciego.
El nacimiento humano que sucede
tras oír el silencio reiterado de dios,
donde el hombre herido se yergue
en la soledad ajena de los astros.
El poema que encontramos urdido en las entrañas
y que nunca es nuestro aunque nos adjudiquemos su autoría.
La mano invisible que nos arrebata
en la página de un libro abierto al azar
que dibuja los caminos
que conducen al jardín azul
debajo de las palabras.
Todo lo que nos entregaron en el silencio,
calidez, ternura y tiempo sin dueño,
que nos transciende y viaja
por nuestras manos y nuestros abrazos
a generaciones venideras.
El sueño que nos desnuda y deja su rastro
de verdad de zahorí sobre la orilla del alba
en la memoria de nuestra otra existencia.
El deseo como pájaro salvaje de llamas
que llega de continentes oscuros
a ser nuestra carne, nuestra fiebre y nuestra ansia.
El espejo roto convertido en ventana
que nos salva de nosotros mismos.
(Juan Bautista Morán, París, 1966: Si algo me define posiblemente sean mis pasiones, y tengo dos. Una es la educación contra la exclusión social y favorecedora de la asunción personal y la participación social. La educación como causa de cambio social (¡Cuánto le debo a Paulo Freire!). Mi otra pasión es la imagen entre la palabra poética y la imagen fotográfica, en el borde donde ambas dialogan y se complementan.)
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Neuzamaria Kerner
Saído do "ventre dos cacauais", nas terras grapiúnas de Itabuna, na Bahia, Hélio Pólvora firmou-se como escritor: cronista, contista, romancista e tradutor. Como se tudo isso não bastasse, ainda carrega a marca que tem no nome muito forte: o Sol personificado e a Pólvora em forma de palavras que deixam os leitores cheios de reflexões. No alto dos seus quase 80 anos, Hélio atravessa incessantemente seus dias imbuído do ofício de arquitetar as palavras, condição esta que o faz se utilizar da solidão como uma importante aliada de sua criação. É jornalista militante e escreve semanalmente para o Jornal A Tarde (Salvador – BA). Dentre suas obras, muitas delas enfocando histórias curtas e novelas, estão, Os Galos da Aurora (1958), Noites Vivas (1971), Mar de Azov (1986) e Xerazade (1990). Em meio ao seu operariado da palavra, pois labuta até hoje a escrita como principal sustento, Hélio Pólvora recebe a DA para uma breve conversa na qual se fundem, a um só tempo, opiniões lúcidas sobre vida, obra e algumas visões de mundo.
DA – Você e sua reclusão. É a receita para a sua intensa criação literária?
DA – Num contexto onde é muito complexa a luta do escritor por editoras, como você vê a questão dos novos autores eletrônicos?
DA – O que dizer, então, dessa enxurrada de textos literários publicados na web?
DA – Se é que existe, o que é uma obra editorialmente correta?
HÉLIO PÓLVORA – É a que tinha de ser escrita e editada, porque, se ficasse engasgada na garganta, produziria morte por asfixia. Creio que esta é a melhor definição de obra-prima.
DA – Na crônica Charles Atlas, você faz uma comparação dos músculos físicos da personagem com o desenvolvimento dos músculos do cérebro. Você diria que a leitura é a grande ginástica para manter a lucidez?
HÉLIO PÓLVORA – Nós, escritores, somos atletas mentais. E é lendo que se desenvolve a musculatura necessária ao "phisique du rôle". A leitura é a véspera da escrita. Um bom escritor deflagra outro. Quem não lê ou mal lê não aprende nunca a escrever ou pensar bem. E, depois, o livro é o melhor amigo que temos: silencioso, estóico, fiel. Quando sábio, sempre terá algo a revelar — e não o faz de uma vez. Na verdade, exige várias leituras. É um arcano.
DA – Cronista, contista, tradutor, crítico literário. Pode fazer um balanço de sua carreira?
HÉLIO PÓLVORA – Eu gostaria de fazer aquele balanço de Stendhal, que imaginou esta inscrição para seu túmulo: "Visse, scrisse, amò" (Viveu, escreveu, amou). Não necessariamente nessa ordem: ao mesmo tempo. Mas eu diria que, se há felicidade, então eu dela tive lampejos, porque, afinal, fiz em grande parte aquilo de que gosto, e me embrenhei na aventura de me conhecer, que é — podem crer — a mais dura das missões, embora algumas vezes nos dê a impressão de havermos tocado a fímbria da verdade.
JANELA POÉTICA (V)
Foto: Leila Lopes
NOVOS DIAS
Leila Lopes
Quando o sol bater
Na janela do teu quarto,
Lembra e vê
Que o caminho é um só.
Renato Russo
Pois que não há volta. Há recomeço.
O mundo dentro revisitado,
o som da voz interna.
A briga intensa, os velhos moldes.
Muitos perdidos por vias de dentro
e dispersos nas ruas do mundo.
Uma busca constante de equilíbrio raro
no eterno renascer de sóis infinitos.
APERITIVO DA PALAVRA
4.
A vida está melhorando.
5.
Mas o primeiro romance de Cecília Giannetti, Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi (Agir), é um descalabro literário do tamanho do descalabro social do Rio de Janeiro do tamanho do descalabro psicológico de sua protagonista. Assim: a moça é uma repórter. Num belo dia (ou não), presencia um acontecimento brutalíssimo. Claro, ela pira legal. Boa parte do livro é a piração da moça, mais lá do que cá. E é isso que torna o livro bacana. Porque a realidade se tornou um troço tão surreal que, caracolas, só mesmo pirando legal pra conseguir abarcar esse playground demoníaco em que o Rio e o mundo se transformaram.
6.
Mas o Rio de Janeiro continua lindo, claro.
7.
O lance do livro da Cecília, um dos lances, é: alguém que readquire a capacidade de se chocar. Porque tudo está tão banalizado, né? O turista italiano que sai no tapa com o ladrão e acaba atropelado por um ônibus. A menina que ficou presa numa cela com uma porrada de homens por um mês. Trocentos mortos em Bagdá no dia de Natal. Tudo é tão normal que, caramba.
8.
A normalidade é aberrante.
9.
Perdi a chave de casa. Dizendo de outra maneira: o romance A Chave de Casa (Record), de Tatiana Salem Levy, não me empolgou. Pode ser que eu tenha problemas (risos), mas o lance é que o livro me pareceu insosso, morto. Não gostei nem um pouco mesmo. E é curioso como, estruturalmente, ele me parece redondo. Antes um livro com problemas dessa ou de outra natureza, mas vivo. E o pior é que muita gente me disse maravilhas sobre ele. Pode ser que eu tenha problemas (risos). Ou: o problema não é o livro, sou eu. Se for este o caso, quero continuar tendo problemas.
10.
Tempo de embebedar cavalos e de fazer listas (escrevo em dezembro, a três dias do reveillon). Então: os melhores livros de literatura brasileira que li em 2007 foram Rakushisha (Rocco), de Adriana Lisboa, os volumes de Inferno Provisório (Record), de Luiz Ruffato, Toda terça (Cia. das Letras), de Carola Saavedra, e Palimpsestos (UFG), poemas de Wesley Peres. E os melhores livros de literatura estrangeira que li em 2007 foram: Nas peles da cebola (Record), de Günter Grass, Mason & Dixon (Cia. das Letras), de Thomas Pynchon, Todos os Belos Cavalos (Cia. das Letras), de Cormac McCarthy, O Avesso da Vida (Cia. das Letras), de Philip Roth, e Os Jogos da Atração (Rocco), de Bret Easton Ellis.
11.
Devo ter me esquecido de citar um monte de coisas, mas quem se importa?
(André de Leones, acreditem, é escritor. Escreveu um romance, Hoje está um dia morto (Record), e depois outro, que ainda não foi publicado (mas será logo, logo), e um livro de contos, Paz na Terra entre os monstros, que a Record vai lançar em meados de 2008)
JANELA POÉTICA (VI)
Augusto da Maya
Ela é o meu avesso
e trago-a como toda coisa traz, em si, o seu.
no mais dentro
o avesso que ela encarna
é como o da pedra, espesso, todo miolo
sem vazios no corpo,
Mas, como toda existência só se concreta,
se outra adversa.
(lhe empresta sentido,
completa)
Por: tanto sendo ela o meu contrário
vivo de mim cheio, sem espaços.
(O autor diz: De mim não arrisco um risco. Rio de mim. E Riu. No mais, menos noves fora nada. "Viver é muito perigoso". E eu não tenho espelho em casa. Narciso às avessas. O lago que olho só vejo de venda nos olhos. Saravá. “Só sei q sou quem n sei”. De outra vez me acho e me trago. Prum maior dedo de prosa. Por enquanto só poema)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Fabrício Brandão
Senhores do Crime (Eastern Promises). EUA/Canadá/Inglaterra. 2007.
É bem possível que, quando se fale na palavra “máfia”, pensemos logo em ambientações cinematográficas que nos remetam ao lugar comum dos crimes pelos crimes, das relações de poder e de toda uma gama de fatores bem próprios desse submundo. Mais do que expor ações em torno das ciladas causadas pelos desmandos de chefões criminosos e de seus códigos tradicionais, os roteiros convencionais dos muitos filmes já vistos por aí carecem de um encontro com novos significados, algo que lhes dê a substância necessária para afastarem uma certa sombra repetitiva tão própria do gênero em questão.
Partindo para uma exposição que privilegia as facetas carregadas da dualidade do ser humano, o diretor David Cronenberg (Spider e Marcas da Violência) usa a trama em torno da máfia russa como pano de fundo para abordar conflitos ligados à identidade dos seus personagens. Em Senhores do Crime, seu mais recente trabalho, Cronenberg assinala uma outra perspectiva para os signos que perpassam o crime organizado. Os primeiros passos do filme apontam para a enfermeira Anna (Naomi Watts), que realiza o parto delicado de uma jovem. Com a morte da mãe do bebê, a protagonista se vê obstinada a tentar encontrar a família da criança. No entanto, a única fonte de informações possível está num diário totalmente escrito em russo, idioma do qual ela não entende. Com a ajuda das traduções do seu tio, Anna inicia sua procura, chegando até um restaurante londrino cujo proprietário, Semyon (Armin Mueller-Stahl), esconde bem mais do que boas intenções de ajuda.
A trama envolvendo Senhores do Crime possui um núcleo de personagens que ressaltam certos destemperos humanos. Um deles, Nikolai, personagem de Viggo Mortensen (Senhor dos Anéis), consegue sintetizar precisamente o arquétipo do desencontro das identidades. Revestido de chofer da família de Semyon, Nikolai é também uma espécie de homem de confiança do clã russo e sua performance é toda pautada em investidas de frieza e mistério em torno de sua real personalidade.
O grande mérito do filme é saber tecer a narrativa em torno do contraponto entre o jogo de aparências e tudo o que nos é revelado em cima dos segredos entranhados no roteiro. A intensidade de certas cenas que mostram os contornos da violência não serve como mero adereço, mas como representação de um universo que sabe arrancar motivações na razão de ser de uma lógica perversa. Não há um protagonista apenas e todos eles dialogam com as faces obscuras de um mundo que, mesmo parecendo ser algo à parte, acaba se diluindo com as marcas daquilo que percebemos em nossa aldeia global.
JANELA POÉTICA (VII)
POETAR
Neuzamaria Kerner
poeta na palavra
e a palavra se poeta por ele...
Mas enquanto se poemiza
o poema escorre líquido vivo
pelo papel incauto.
APRENDENDO A VER
Por Affonso Romano de Sant'Anna
Meu primeiro aprendizado sobre a cegueira foi no ginásio. De repente, apareceu na sala de aula uma aluna cega. Cega e com o nome de Luzia - a santa protetora dos cegos. Esse fato nos fez abrir os olhos. Sem enxergar, tateando os livros em braile, Luzia era uma boa aluna.
Vou me lembrando disto quando me pedem que escreva uma introdução ao livro que conta os 150 anos do Instituto Benjamin Constant. E vendo a história da instituição descubro que em 1954, quando o Instituto fez cem anos, Ayres da Matta Machado fez, aqui no Rio, a conferência "A educabilidade dos cegos". Mestre Ayres era praticamente cego, foi meu professor, dava aulas de Filologia Românica na UFMG, era especialista em gramática e folclore, e, sendo de Diamantina, bem humorado, era também um seresteiro. Foi um dos examinadores de minha tese de doutoramento, e viu no texto coisas que outros não perceberam.
Tive um aluno na PUC-RJ, dos mais brilhantes, que batalhava contra sua cegueira progressiva - José Eduardo Bezerra Cavalcanti. Desafiadoramente transformou-se em critico de arte e ensaísta. Um dia dediquei-lhe um poema quando soube que estava lendo "Grande Sertão: veredas", em braile. Pelos dedos, em braile, meu amigo colhia o sertão na palma da mão.
Há uns 15 nos estava indo ao Chile e ao meu lado, no avião, sentou-se um cego. Fiquei observando como ele ia lidar com aquela situação. Pois veio a comida, a aeromoça explicou-lhe o que continha a bandeja e segurando sua mão mostrou onde estava a carne, a sobremesa, etc. Mas, quando ela se afastou, ele virou-se para mim e perguntou: “Mas, qual a comida?”. Era a informação que lhe faltava. E começamos a conversar. Mal comecei a falar ele me identificou pela minha voz. Havia ouvido uma entrevista minha no “Sem Censura”, etc. Que ouvido, meu Deus! Descobri, então, que ao meu lado estava o professor Edson Ribeiro Lemos, que ia com uma comitiva a um encontro internacional de cegos no Chile. Pois consultando a história dos cegos no país, descubro que, em 1950, ele foi um dos três pioneiros no ensino integrado, ao inscrever-se no conceituado Colégio Mallet Soares, no Rio.
Há uns 20 anos, ao escrever uma crônica onde havia impensadamente usado uma dessas expressões, tipo - “pior cego é aquele que não quer ver”, Marco Antônio Queirós, jovem escritor que havia perdido a visão por causa da diabetes, mandou-me uma carta. A partir daí, surgiu uma amizade e fiz o prefácio de seu livro - “Sopro no corpo” - onde narrava as peripécias que o levaram à cegueira e como, jovial e criativamente, chegou a ser um técnico em informática e criou na internet o site "bengalalegal”.
Nesta semana, subi a escadaria do imponente Instituto Benjamin Constant para o lançamento do mencionado livro. Essa instituição originalmente chamava-se “Imperial Instituto dos Meninos Cegos". Não havia meninas cegas? Claro que havia, mas éramos cegos à questão dos gêneros. A palavra “homem" até pouco tempo era genérico de homem e mulher e, portanto, aquele " meninos cegos" devia encobrir as "meninas".
Hoje, os cegos estão se incluindo no mercado de trabalho e até participam de olimpíadas. Estão aí as equipes do Benjamin Constant, ganhando medalhas, sagrando-se, em 1997, no Paraguai, campeã de futsal, ou, em 2001, como equipe campeã brasileira de natação. Essa inclusão, que se torna cada vez mais evidente, não é fácil. Pensar que só em 1932 começou-se no Brasil a permitir o voto do deficiente de visão, é registrar como a noção de cidadania percorreu um lento caminho neste setor.
Muitos cegos estão conduzindo outros cegos para um conhecimento maior e melhor do mundo. Muitos portadores de baixa visão estão elevando o nível de participação de seus semelhantes na sociedade. Compete aos outros, a nós que julgamos ver normalmente, abrir os olhos e participar da revisão do papel dos cegos e deficientes físicos na sociedade do século XXI.
(O chileno Leo Lobos é poeta, ensaísta, tradutor e artista visual. Contemplado com o UNESCO-Aschberg de Literatura 2002, realiza uma residência criativa em CAMAC, Centre d'Art Marnay Art Center, em Marnay-sur-Seine, França. Publicou entre outros: “Cartas de más abajo” (1992), “+Poesía” (1995), “Ángeles eléctricos” (1997), “Turbosílabas. Poesía Reunida 1986-2003” (2003). Tem escrito para diversas revistas e lido seus textos de arte e literatura no Chile, Argentina, Peru, Brasil, Cuba, Estados Unidos, Espanha, França e Alemanha)
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
NU BRAZ – SONHO BOSSA
O vasto universo de opções pertencentes à música brasileira noz faz, vez ou outra, deparar com trabalhos que revisitam de forma acertada aquilo que temos de melhor em matéria de som. Esse é o caso do Nu Braz, projeto capitaneado pelo cantor, músico e DJ italiano Emmanuelle Cucchi, e que também conta com as participações dos músicos José Mascolo, Lo Greco Bros. e da cantora Dilene Ferraz. O álbum contempla um percurso muito bem feito em torno da Bossa Nova sessentista e do Jazz, aspecto reforçado pelos belos arranjos feitos para as canções. Além da veia ítalo-brasileira que atravessa Sonho Bossa na voz de Emmanuelle, chama atenção no disco a precisa fusão estabelecida entre o clássico e o moderno. Faixas como Escravo da alegria (composição de Toquinho), Saudade (introduzida por um sampler da voz saudosa de Vinícius de Moraes) e Serrado (canção de Djavan) servem como uma pequena demonstração da qualidade do repertório selecionado. Em Borboleta da cidade, ouvimos a união entre bossa e música eletrônica, enquanto que Roda, além de contar com um canto efusivo, traz uma bela combinação entre violão e trompete. Pela forma como é tratada a sonoridade por aqui, o Nu Braz certamente merece as devidas atenções e escutas. A atmosfera lounge pede passagem, meu caro leitor!
JANELA POÉTICA (IX)
LONGA METRAGEM
Fao Carreira
*O paulista Fao Carreira é artista plástico e formado em Letras. Extremamente original em linhas, palavras e cores, deixa evidente em seus traços uma essencial liberdade, um teor lúdico, além de impressionante poder criativo. Uma certa irreverência sutil percorre o traçado de suas imagens, mostrando-nos que, por trás do humano, existem outros tantos mistérios governados pela alma.