Depois da grande felicidade de poder celebrar um primeiro ano de existência, percorremos mais uma alameda onde novos e gratificantes encontros brindam sua arte conosco. Nossa Revista Eletrônica Cultural continua buscando outras nuances da palavra e, com certeza, esse é o maior desafio de todos. É fazendo apostas como essas que nos deparamos com os versos pungentes de poetas como Nelson Magalhães Filho, L.Rafael Nolli e do jovem Yuri Assis. A prosa subversiva de Jorge Mendes coloca sentidos à prova, ali bem expostos. O conto de Janaína Calaça encerra percalços de uma geração que se abriga nos costumes virtuais. Há uma Madalena vivendo esperas no texto da paraibana Dira Vieira. Numa conversa musical, a talentosa cantora mineira Selmma Carvalho exala otimismo quando o assunto é trilhar os sons. A charge do cartunista Cláudio Alecrim inaugura a porção bem-humorada de nosso novo espaço, o DESCONTRAINDO O VERBO. A ilustradora Vera Basile costura sua arte por entre os textos de nossa Décima Primeira Leva. Outras palavras ao alcance, sejam todos bem-vindos à leitura!
CONFISSÕES SEM GÊNERO
Fabrício Brandão
Contou-me do desatino dos dias passados num quarto qualquer. De um lado para outro, marcava passos ansiosos no assoalho do velho casarão. Curioso era termos como elo comum as lembranças todas de um tempo jamais dividido a dois. Falar e falar, repetindo coisas sem sentido até que o som do cansaço sumisse com todos os verbos vãos. O primeiro que calava punha a face mórbida da desesperança atrás das curvas instáveis do resto de vela ainda acesa. Não há fogo sem ar, dizem os científicos, mas a mão que sacode a luz é a mesma das correntes de fora, já que dentro circulam sentimentos que se chocam com paredes.
Então, quando caem os primeiros pingos de água no mundo, um dos dois se debruça na janela, deixando o olhar perdido em horas. Há um pequeno clarão na cela que divide esperas. Todos pensam baixo em tomar iniciativas de ataque. Quem sabe assim algo torna tudo menos morno. De repente, alguém se queixa que o outro nunca favoreceu o combate. Tudo se compreende até certo ponto. Ninguém é perfeito, quando o assunto é ouvir uma lista burocrática de reclamações anotadas num velho diário. Aliás, a desbotada mania de tornar a vida excessivamente objetiva afundava aos poucos aquele barco munido de racionalismos. O tempo que se gasta com as leituras quase cegas é bumerangue, vai, se afasta e quase some de vista. Depois, volta cinicamente, esquece fácil a coleção de misérias largadas pelos cantos e se acomoda debaixo do sol.
JANELA POÉTICA (I)
VIDA E MORTE
Neuzamaria Kerner
Na certeza
de encontrar o que se busca
voa-se.
sonha-se.
Na confiança
das próprias possibilidades
vive-se.
Na dúvida do querer
recua-se.
Nos medos
que nos impedem
de voar, de buscar, de querer, de viver
a cada momento
morre-se.
como uma novela das oito
Jorge Mendes
a maior e mais brutal violência contra as mulheres
é exatamente fazê-las acreditar que são apenas mulheres
foucault
o que estava errado com marilucy era o mesmo que estava errado com cerca de 99% da população feminina mundial (isso porque é sempre necessário guardar uma dama de copas na manga): olhar sem fúria, igreja católica e august comte. essa mistura é fatídica. provoca paralisia cerebral irreversível. o coração vira bombom estragado e você só consegue pensar merda depois disso. eu entendia o processo.
então, marilucy falava: "você não é romântico, nunca me mandou rosas, nunca me carregou no colo, nunca diz que me ama!", e eu concordava balançando a cabeça. isto é, como todo desesperado que precisa urgentemente se agarrar a alguma coisa, a estupidez também me enternecia. daí, nos momentos de lirismo compulsivo, eu chamar marilucy de "minha macabéa". ela se irritava. tinha certeza que a tal clarice lispector era minha amante. ficava puta, a cretina.
o negócio é que, no seu mundinho frio, marilucy construiu sua ilha de unhas pintadas de vermelho e escova japonesa (seis horas na manicure, na boa), calcinhas de renda negra, cabelos de propagandas de xampu, voz de elymar santos e santíssima trindade, ela era feliz assim. quer dizer, os aparelhos ideológicos do estado, as agências totais de socialização e todos os mecanismos de repressão da sagrada família conseguiram limpar todo o cérebro de marilucy. ela estava limpa como um salão fúnebre. a vida não possuía qualquer nódoa de mistério: uma casa mobiliada e asséptica, um marido - maridão romântico, compreensivo e canalha, claro - (trepadas homeopáticas com luzes apagadas, sob o cetim) e programas do raul gil aos domingos. a vida, assim, era mais do que perfeita. era insossa e terrivelmente segura.
a minha salvação, como não poderia deixar de ser, foi um príncipe encantado.
ocorre que marilucy - isso às custas dos programas de rádio am, hebe camargo, ofertas do pão de açúcar e manhãs putrefatas com ana maria braga - cultivava a memória de um príncipe morto no passado. então, marilucy me comparava ao seu príncipe com rosto de fábio assunção: "ele não era assim encucado como você! não vivia lendo livros que ninguém entende! não perdia tempo escrevendo besteiras sem sentido e nem falava palavras complicadas de dicionário! ele, sim, me pegava no colo e dizia que me amava!", e eu via o pássaro empalhado dos sonhos de marilucy ficar batendo suas asinhas de glacê mármore pelo quarto.
a minha esperança era que o tal príncipe levasse marilucy pra sua floresta de florzinhas de plástico, anjinhos de porcelana, toalhinhas bordadas sobre os móveis, bichinhos de pelúcia, rosários e pôster do padre marcelo na cabeceira da cama. ela merecia isso.
num final de tarde, marilucy apareceu toda arrumada. ela havia reencontrado o seu príncipe. ele estava casado, mas se sentia infeliz com a esposa. precisava desabafar com alguém e, por isso, havia convidado marilucy para o baile daquela noite (“sabe, jorge, gosto de você. mas você é muito esquisito, estranho e, pra ser sincera, só fiquei com você por causa do desenho da sua boca que é muito linda. bem, adeus”, ela me disse sem olhar nos meus olhos). “beleza!”, pensei fazendo cara de boi lavado.
quero dizer, fiz a cena da despedida no melhor estilo de stanilaswisk, isto é, com todos os sentimentos aflorados e sob controle. o pessoal da central globo de produções ficaria boquiaberto com minha performance, pode crer.
depois, marilucy foi embora e tranquei cuidadosamente a porta. abri uma cerveja, acendi um cigarro, deitei na cama e fiquei fazendo bolinhas de fumaça contra o teto: "fodidos de todo o mundo, uni-vos!", falei sozinho, erguendo minha latinha de cerveja pru alto, tão alegre e idiota como o último capítulo de um patético final feliz.
(Jorge Mendes é formado em história, "quase" pós-graduado em teoria da comunicação pela eca-usp (abandonou o mestrado pra viajar por aí), avesso a qualquer tipo de glamour, leitor voraz de brautigan, amante do vinho e da cachaça, pede pouco e recebe na cara e nunca tem ninguém por perto quando bate a vontade de cortar os pulsos)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
SELMMA CARVALHO – O QUE SERÁ QUE ESTÁ NA MODA?
Terceiro disco dessa talentosa artista mineira, O que será que está na moda? é um trabalho que serve para definir o fundamental da cantora Selmma Carvalho: uma voz de personalidade e cara próprias. Aliado ao seu canto firme, há um repertório de canções muito bem selecionado com letras que mesclam novos compositores e outros já consagrados de nossa MPB. A intensa e tocante faixa Túnel do Tempo é um verdadeiro presente aos ouvidos, trazendo uma letra sensível aliada a um belo arranjo de acordeon. Considero Sinal dos Tempos como sendo a canção que melhor define a pegada de Selmma, pois traz em si todo o vigor de sua interpretação, afirmando, ao mesmo tempo, tons de suavidade e força sugeridos pela mensagem otimista das palavras ali contidas. Canções de gente como Zeca Baleiro, Celso Fonseca, Verônica Sabino e Nando Reis ganham novos sentidos a partir da musicalidade de Selmma. Num trabalho que mescla gêneros variados, há a confirmação das escolhas bem feitas pela artista. Exemplo disso, é o caso da bela interpretação de Imitação, composição do sambista baiano Batatinha, aqui, bem adornada por precisos trompete e cuíca. O título do disco é batizado com uma pergunta que parece insistir em não ter resposta, mas o melhor de tudo mesmo é saber que os caminhos nem sempre apontam para um mesmo lugar.
JANELA POÉTICA (II)
Nelson Magalhães Filho
Teu cheiro amarfanho
durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário
tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos
certamente me salvarão
deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens
sem estrelas
entre bichos e flores como se não fossem
cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe
entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno
em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.
(Nelson Magalhães Filho nasceu em Cruz das Almas, Ba, em 1958. É artista plástico formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, onde foi Professor Substituto de Pintura. Premiado nas Bienais do Recôncavo, nos Salões Regionais de Artes Plásticas. Em 1999, ganhou o Prêmio Copene de Cultura e Arte (atual Braskem). Publicou poemas no Jornal A Tarde (BA), Leia (SP), Revista Exu, Reflexos, etc.)
Janaína Calaça
Queria ser rosto em comercial de xampu, os cabelos esvoaçantes pelos ventiladores do estúdio. Queria ser um corpo conhecido, curvas discutidas na hora do recreio pelos meninos virgens da escola. Queria ser o rosto lembrado entre o vai-vém dos dedos dos meninos à noite, depois do sanduíche de queijo e da coca-cola. Queria mais que os acessos ao seu fotolog, queria ser mais que uma webcelebridade. Queria seu rosto nos comerciais, nas novelas, nos seriados de tv. Queria ser.
Entre o celular com capa de pelúcia, o gloss, dinheiro e absorventes, a menina carregava sua câmera slim com cartão de memória suficiente para mais de 300 fotos, que, somadas às 300 fotos de cada uma de suas amigas, gerava sempre um total de umas 1500 fotos por noite nas baladas. Fotografias com poses ensaiadas, carinha sexy, carinha séria, carinha de lado, carinha de baixo para cima, calcinha à mostra descuidadosamente no subir das escadas. As noites eram uma mistura de flashs, caipiroskas, língua-língua com os meninos, língua-língua com as meninas, uns amassos no canto escuro das boates, retoques de batom nos banheiros cheios, e mais fotos, mais jogo de espelhos.
Deixou recado na geladeira, ao lado da lista de compras da semana. A cor da unha combinando com a cor do sapato. A mãe só chegaria depois das dez, depois do plantão completo. O pai vivia em outro estado, com outra família, mobília e outros gatos. Pegou a bolsa e saiu. A noite seguiu seu script rotineiro, com o gelo do copo dissolvendo entre a língua da menina e o vidro, entre o olhar do menino malhadinho e de sua cerveja long neck. Logo-logo estariam tocando sexo-sexo com os dedos por cima das roupas. O gosto do morango e da vodka misturava-se ao gosto da cerveja. As amigas serpenteavam na pista de dança, atraindo Najas outros malhadinhos e suas long necks. Ele chamou: “Vamos?”. Ela disse: “Vamos”. Na segunda-feira, entre gritinhos, ela contaria como ele era bom de cama ou um fracasso e contaria também se as dicas da revista 10 maneiras de dar prazer ao parceiro funcionavam ou não. Pediu licença, falou com as amigas, uma disse que não fosse, outra disse “vai logo”, outra estava bêbada demais para dizer alguma coisa. Fez mais umas poses com as amigas para mostrar à mãe mais tarde e acompanhou o menino malhadinho com sua inseparável long neck.
Abriu o carro, que pegou emprestado do pai orgulhoso do filho baladeiro. Chave, marcha e o som ligado.
A menina tocando o pau do menino por cima da calça. Zíper lá embaixo. Viu essas cenas em tantos filmes. Ele dizendo “uow, gatinha” e deixando o pé pesar no acelerador do carro. A menina brincava com os dedos e com o vermelho entre o jeans. Os pés pesados no acelerador. Ela tira a mão. Faz pose como se fosse tirar mais uma foto para o fotolog. Ele vira o rosto para a menina. Outros meninos e outras meninas também saem de pontos distintos da cidade. Todos com os carros emprestados dos pais, long necks e brincadeirinhas aprendidas nos filmes, entre paus e dedos. Ele só ouve o pneu cantar alto na estrada, um freio retardatário, um farol apagado, três pancadas fortes e o silêncio. Quem dormia, acorda. Quem não dormia, apenas acende as luzes de casa e as pessoas vão chegando sonolentas. Outras discam números no telefone. E enquanto as sirenes não chegam, os meninos e as meninas continuam quietos nos carros. Amanhã, a mãe plantonista vai escolher uma fotografia brilhante da filha que queria ser rosto conhecido. Amanhã, ela vai discar o número do ex-marido, que mora longe entre outra família e outros gatos. As amigas postam as últimas fotos nos seus fotologs, criam comunidade “saudades de…” no Orkut e em horário nobre sua fotografia sorridente é colocada sucessivas vezes no ar, enquanto alguém refaz as contas e transforma a menina e os outros em estatísticas e relatórios. E nada interrompe os ciclos.
(Janaína Calaça nasceu em Salvador, Bahia, mas vive hoje em São Paulo. É graduada em Letras e escreve para o projeto Selva. Seu blog, no site Selva, é o Casa de Burlesco e escreve aos domingos para o Brutti)
DESCONTRAINDO O VERBO
O carioca Cláudio Alecrim Costa é cartunista e ilustrador. Participou de publicações como Pasquim, Bundas e Jornal do Brasil, dentre outras.
JANELA POÉTICA (III)
QUADRO DA ALMA
Yuri Assis
Não se engane, rapaz
Pois que sou maior que o mundo
Esse corpo é fantasia que visto
Pra brincar de carnaval na rua.
Tenho três e tanto de tamanho
e me desnovelo em mente vigorosa.
Porém me escondo
Pra caber no mundo
e o mundo caber em mim de santo doido.
(Yuri Assis é estudante, baiano e vive em Recife. Atualmente, define-se como alguém que não-é. No máximo, uma sombra que passa de relance no espelho. Timidamente, poema o mundo com seus mitos e medos de iniciante)
SUAVEMENTE EM CONCHAS
Dira Vieira
Eu a vi sentada em um bar
As pernas cruzadas em um contorno suave guardavam os mistérios do não que ela teimava fingir. O celular, dentro da bolsa enorme que pousava sobre uma cadeira, tocava insistentemente no tom do Bolero de Ravel. Madalena demorou a encontrá-lo, e quando o tocou, o moço desistira de chamar. Fim de tarde em Copacabana e ao lado do velho Buk, Madalena brilhava os olhos, iluminados por algumas doses de Gin.
Guardava na boca o gosto de um ontem presente. E tremia quando pensava nele. Sentei com ela. Trocamos beijinhos. Descruzou as pernas, perguntou-me o que queria beber. Chamou o garçom, pediu algo para mim, superior, com a sua mania de tomar sempre, a iniciativa. O celular tornou a tocar. Madalena pediu licença, abriu o aparelhinho e viu o nome dele na tela. O professor. Estremeceu. Desconcertou-se visivelmente e mesmo que me pedisse licença, ficou sem jeito para atender. Sei que ela queria ficar a sós com aquela voz. O professor e a generosidade da vida que trazia até aquele momento aquela voz e aquele desejo. Não sabia o que dizer a ele. Nos minutos que passou a olhar o celular, o professor desistiu. Talvez nem ele tivesse certeza do que dizer. O que seria no minuto após o oi inicial?
Madalena sorriu sem graça. As mãos envolvendo o ar faziam gestos inseguros. Uma menina, agora, desconcertada e tímida que pilotava tempestades de uma só vez. Eu quis rir. Quis sair dali para deixá-la senhora.
Madalena fechou o livro, depositando-o sobre a cadeira. Ocupava todas as cadeiras da mesa, espalhava-se para tentar preencher as faltas. Se eu pudesse pintar o seu quadro naquele momento, desenharia chuvas caindo sobre os ombros daquela mulher tão ingênua e lírica. Os seus olhos eram mistério de águas coloridas e brilhantes, e diziam tanto, ninguém a conteria para si em laços eternamente. Difícil e árdua sua tarefa de guardar a si mesma de posseiros e aventureiros.
Inventei uma desculpa, levantei deixando mais uma cadeira para que ela se espalhasse. Madalena trazia pequenas histórias entre as mãos e nas unhas, esmeradamente pintadas, que cantavam seduções enfeitiçando suas noites em Copa.
De longe, vi que rabiscava um guardanapo e entregava ao garçom enquanto a chuva começava a cair. Jogava os cabelos para trás sedutoramente e sorria suave. Fim de tarde. Cruzou as pernas a espera do retorno do moço ao celular, pediu outro Gin entregando-se novamente ao velho Buk, até esse momento largado na cadeira.
Aproveitou a neblina leve, enquanto ele não ligava e levantou para ir embora. Guardou um punhado de chuva nas mãos em conchas e passeou silenciosamente pelo rosto. Estava linda. Deslizava chuva com a criança que guardara dentro de si. Em cada tropeço em uma poça de água mais funda, gargalhava exibindo os dentes pequeninos e infantis.
Agora sim, sozinha, adornava a alma para ouvir a voz grave do moço e a ele se entregaria em outra tempestade que certamente viria quando fechasse os olhos já bêbeda de tanto desejar.
(Dira Vieira é jornalista , radialista e socióloga. Escreveu textos para vários jornais de João Pessoa, tendo participado do grupo literário "Oficina Literária". Publicou, pela Diretoria Geral de Cultura - Edições Macunaíma, uma coletânea de poemas chamada "Certos Pontos Incomuns". Atualmente, faz parte do Clube do Conto de João Pessoa.)
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
DA - Para alguém com formação clássica como você, foi difícil enveredar-se pelos caminhos da MPB?
SELMMA CARVALHO - De forma alguma. Vim de uma família musical, cresci ouvindo música, aprendendo música, respirando música. Acho que todo tipo de arte está interligada, seja ela qual for. Esse leque de possibilidades me encantou. Sem falar que o conhecimento técnico e teórico nos dá segurança para transitar em diversos estilos. E isso só acrescenta.
DA - O intérprete tem uma tarefa, digamos, complexa. Pesquisa e sente aquilo que melhor se adequa a seu estilo e concepções. Como você lida com isso para a construção de seu repertório?
JANELA POÉTICA (IV)
NUM CANTO DA TARDE
Fabrício Brandão
Esgotar a pilha de canções do poetinha,
Enquanto se espera alguém chegar.
Entre versos e planos,
É bom ter a cabeça apoiada no inverso da cama.
Os xamãs que percorrem o quarto
Incensam preces disfarçadas em poemas de amor.
A gente que anda por aqui agora
Faz companhia aos círculos de fogo acesos no chão da mente.
Ainda uma cidade de bons tons atravessando janelas.
Há cor no cheiro daquele que fica.
A HISTÓRIA DO TEATRO E O PAPEL DO ATOR
João Pedro Roriz
A história do teatro se confunde com a própria história da humanidade. A arte de representar advém das situações mais diversas vividas pelos seres humanos, que, por culto, celebração, prestígio, entretenimento, registro ou pura paixão pela experiência artística, expressam seus sentimentos em um mundo de fantasia que se assemelha à realidade.
A sociedade evolui e a arte de representar acompanha esta evolução. Ao longo de mais de vinte séculos desde a Antigüidade, o Homem exorta suas relações interpessoais, o passado de seu povo, suas expectativas para com o futuro, seus receios, seus ideais e seus desejos através dessa arte.
As primeiras representações teatrais datam do século VI a.C., porém, pensando mais profundamente, o Homem vinha desenvolvendo suas relações com elas, muito antes do surgimento do teatro, como uma cerimônia religiosa grega. As primeiras civilizações se formaram em ambiente hostil. Sua visão de mundo e suas descobertas estavam diretamente relacionadas à sobrevivência. Como o macaco que bate palmas e arreganha os dentes, os homens primitivos já utilizavam a representação em rituais de acasalamento, em danças para evocar a chuva ou celebrar a fertilidade da terra e nas demonstrações de poder. Portanto, como disse Aristóteles, representar um personagem ou imitar outro ser "é uma prerrogativa do próprio homem".
O tempo é fundamental para o amadurecimento das idéias. E, com o passar dos anos, algumas das mentes mais ilustres da História contribuíram enormemente em relação à arte de representar. Desde então, o homem se armou de filosofias e técnicas cada vez mais depuradas, seguindo um inesgotável processo de criação. Surgiu, com isso, a constante necessidade de estudarmos a história do teatro de modo cronológico.
O teatrólogo enxerga a vida, investiga a alma humana e exorta seu brilhantismo calcado na observação do comportamento de sua gente – e é isto, exatamente, que determina a diferença. Observar o mundo é fácil, mas há de se ter olhos para isso! Quantas riquezas existem ao nosso redor e, mesmo assim, muitos ainda não vêem, não querem enxergar, pois estão confinados sob uma grossa casca, que só lhes permite perceber dificuldades e a rotina.
O objetivo do artista é promover uma revolução ideológica e impor sua arte, sem pretender-se um gênio, porém sendo genial no que faz. Os artistas, os lunáticos, os filósofos e os sábios são os que captam da atmosfera o inefável e o transmitem por meio de sua arte, de modo coeso e concreto. Os pensadores são responsáveis pela revelação do que há de mais obscuro na experiência humana, por atender aos anseios mais profundos do Homem e permitindo o seu avanço ideológico, social e cultural, impedindo o vazio das idéias e a conseqüente estagnação de toda a sociedade humana.
JANELA POÉTICA (V)
Leila Lopes
Foto: Leila Lopes
Conservo janela aberta para a noite
repetidas vezes o som é turvo.
A sensação ofuscada por outras vidas que dormem
por medos e mentiras.
São os sonhos displicentes da má sorte,
beijando a testa e acobertando intenções.
Luzes frias, misturadas ao calor íntimo e breve
emprestado dos deuses que habitaram em mim.
No meio da rua, acordado, o mistério da mente,
incansável, mostra as marcas profundas do tempo
e insiste em incomodar mais cedo os fantasmas diurnos.
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Fabrício Brandão
Os Amantes do Círculo Polar (Los Amantes del Círculo Polar). Espanha. 1998.
De que visões são feitas as relações amorosas? Talvez daquilo que cada um queira enxergar do outro como sendo a cena ideal, o algo excessivamente projetado. Afora os retoques de nossas fantasias, uma visão possível para a leitura do amor é muita bem enfocada neste denso drama do diretor espanhol Julio Medem (Lúcia e o Sexo). Anna e Otto, Otto e Anna, mundos que giram nos círculos ilimitados do sentimento, vaivém de visões construídas pelo desejo atemporal. Desde crianças, os dois protagonistas se descobrem envolvidos pelos signos de uma paixão que aprende a ter vida própria, espécie de pacto apoiado numa vontade de se cumprir uma sina eterna. Mas, o que poderia parecer, aos olhos de muitos, um impulso pueril, passa a ser algo bem sedimentado quando o pai de Otto decide morar com a mãe de Anna. Otto, mesmo vivendo com sua mãe, começa a ter uma convivência mais próxima de Anna, arrumando pretextos para passar períodos no novo lar de seu pai. O ponto de destaque dessa fase está na beleza dos jogos eróticos juvenis travados entre os dois, algo que se traduz numa forma autônoma de conhecerem seu próprio desejo.
JANELA POÉTICA (VI)
DESEJO
Héber Sales
Há algo de tísico
no aparelho feito para silenciar a noite.
Lá fora a biquilha
goteja os segundos na ânsia das horas.
O fôlego do último hematófago
seria quase imperceptível,
mas em seu sonho gorgoleja um vermelho.
O leito estranha os costumes do corpo.
A carne coroa-se a mais lúcida
e cada olho carrega um meio-dia:
o sono amarelou-se daquilo que não quer se calar.
(Héber Sales é colaborador ativo do Diversos Afins)
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
ADRIANA MACIEL – POEIRA LEVE
Suavizar o samba: eis a receita para o ótimo resultado do trabalho dessa brasiliense. Com um repertório muito bem selecionado, Adriana Maciel faz um percurso valioso pelas alamedas de nosso samba. Só para citar, encontramos em Poeira Leve, seu terceiro disco, composições de gente como Nelson Cavaquinho, Chico Buarque, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Cartola, Tom Zé e Jorge Mautner. Há um casamento perfeito entre a voz doce de Adriana e os belos arranjos muito bem encaixados nas músicas. Aliás, esses são os dois elementos que devem fazer par harmonioso quando o assunto é interpretar grandes canções de nossa MPB. Acabou Chorare, canção ponto forte da carreira dos Novos Baianos, e Samba no Asfalto contam com a presença vigorosa do violão de Moraes Moreira. A beleza desfila pela releitura de Juízo Final, de Nelson Cavaquinho, com um arranjo magnífico composto pela junção de violino e percussão. Outro grande momento desse disco está em Mora na Filosofia, de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, já gravada por Caetano Veloso em seu álbum Transa. Poeira Leve ainda conta com as participações de Celso Fonseca, Moska e Zeca Baleiro, dentre outros. É, com certeza, um grande disco no qual o samba bem trabalhado levanta suavemente outras poeiras escondidas pelos cantos da vida.
JANELA POÉTICA (VII)
BALADA HOMICIDA
L.Rafael Nolli
É preciso matar o vizinho com um tiro de fuzil
antes que ele compreenda os textos sagrados
e venha, como irmão, a seu lar,
comer do seu pão e beber do seu vinho.
É preciso degolar os amigos,
ou enforcá-los em seus cadarços
(eles não usam gravatas),
antes que eles entendam Marx,
decretem o fim da era dos desiguais
e venham exigir que você participe do combate,
deixando para trás sua coleção de tampinhas
de refrigerantes
e de caixinhas de Marlboro.
É preciso matar os homens
-contrariando Drummond-
antes que eles entendam a poesia que há nas coisas
e comecem a distribuí-la em seus gestos diários.
Assassiná-los antes que liguem para a sua casa
e convidem-no para ver a lua
ou um mosquito de Proust,
retirando você de seu conforto militar, remediado.
É preciso se matar, sobretudo se matar,
antes que a vida se refaça no interior dos lares
e a alegria volte a corar a face dos homens:
antes que eles se compreendam, venha à sua porta
e a derrubem, por acreditarem-na obsoleta.
(L. Rafael Nolli, nascido
Vera Basile é artista plástica e vive em São Paulo. É ilustradora da Editora Scipione desde 1997, onde trabalha com a arte de livros didáticos. Prefere a criação e diz que a arte final é apenas uma conseqüência.