CICERONEANDO
Sem uma correspondência verdadeira e fiel a sentimentos vividos, as expressões artísticas parecem não encontrar razões maiores de sobrevivência. Emprestar aos feitos culturais as devidas escutas pessoais torna os caminhos mais dignos de serem apreciados. Afinal, muitos olhares preferem se debruçar sobre as leituras que lhes permitam fazer parte do universo de coisas abordadas. E certos autores têm esse poder de sintetizar, em vivas linhas e obras, sensações tão nossas. As visões deixam de parecer inatingíveis e vêm dialogar com a realidade que pulsa até mesmo escondida entre nós. Nesse lugar, o sangue se desnuda e, posto à prova, percorre os verbos de gente como Maurício Pinheiro, Floriano Martins, Alice Sant’Anna, Sérgio Inácio, Miguel Angel Muñoz, Douglas Dias, Adelaide Amorim e Gilmar Salatiel. O traço essencial de nosso bate-papo com o músico Paulinho Moska é o de como a percepção adequada de nossa maturidade é capaz de firmar a busca por caminhos coerentes de vida. A plástica de um mundo se faz presente nas telas de Gilbert Antonio, criando outros tons entre as manifestações de nossa Décima Quinta Leva. Sejam todos bem-vindos a mais um mergulho em outros cantos da existência!
JANELA POÉTICA (I)
E também o suspiro dos sonhos,
Pois estive em visita aos nossos ambientes primeiros
Numa lembrança viva dos prazeres divididos.
Agora a continuação do sopro
É só uma horda imprevisível de coisas.
Esforço-me para esquecer quem fui,
Tentando entender o jogo emotivo das inutilidades.
Quem investirá sobre um novo encontro?
Alguém a criar uma máscara sedutora
Tentará deixar para trás suas desventuras
E desfilará um novo papel nesse palco hedônico.
Outro ser talvez ajude a fabricar novos vícios
Iluminando o caminho com requintes de farsa.
Então deverei ser forasteiro nesta mesma existência,
Descortinando o véu que oculta todas as minhas faces.
De teu desejoso corpo, agregarei novas formas.
Da tua imagem, uma nova visão.
E, depois do encantamento,
Lutarei contra a quase certa colisão de duas vidas,
Buscando a cura em terras que se esquecem da dor.
Neuzamaria Kerner
E eu que vim de tão longe para lhe ver. E eu que atravessei tantas nuvens para lhe ver. Sabe quantas eternidades furei para chegar no lugar exato onde você estaria para me encontrar? Pareço em atrasos. Pereço nos prazos, só pareço. Aqui estou diante da boca dos favos de beijos que nos tempos passados você prometeu. Vim pegá-los. Vim colocá-los neste corpo almado que ainda é seu.
Cheguei! Vim com livro e com liberdade. O livro-arbítrio meu.
E agora me paro na frente do homem que sei pelo faro, o homem que é meu. Fale, respire, se vire, me tome a si. Estou tão cansada do tanto que andei. Asas dormentes do quanto voei.
Venha, pegue a moringa com água fresca e dê-me de beber... Vamos, o que há com você? Por que seu silêncio me olha assim? Minha aparência está tão ruim? Desculpe, na pressa esqueci de pentear os cabelos. Estou em frangalhos? Desculpe, é que tropecei nas mil bolas do universo, me feri e nem vi... em cada pancada eu fazia um verso...
Você está me ouvindo? Não olhe o céu agora, não veja o sangue que mora no entardecer deste momento. Eu sei, esqueci de passar batom. Deve ser isso o assombro nos seus olhos. Desculpe, foram os deslocamentos das ventanias nas minhas passagens que me deixaram de mãos vazias. Lá é assim. Venta.
Cadê o bálsamo para minhas olheiras? Venha, faça o descanso dos meus olhos. Feche-os devagar porque doem. Não lhe vejo!
Meus ouvidos se aguçam. Ouço a música, mas está tão longe e eu vim de tão longe para ouvi-la outra vez. Sabe, eu vim de tão longe... Sabe, o ar... ponha sopro em minhas narinas... seu hálito ainda é o mesmo.
Segure em mim. Estou Pégaso indócil. Não, não precisa de cangalha. Vamos, coragem. Não tem falha, não há tralha que nos valha por lá. Vamos, monte devagar. É que eu vim de tão longe e pensei que pudesse ficar...
Pronto? Que bom! Voemos antes de o dia acordar.
JANELA POÉTICA (II)
mia caminha no central park
com um vestido curtinho
sente frio nas panturrilhas
e se esquenta num abraço
esticado pensa como deve ser
doloroso arranjar uma tendinite
aguda mia não é hipocondríaca
mas às vezes sente os olhos
pesarem e se esforça para acompanhar
o menino que desliza rápido demais
sobre os patins enquanto ela
procura terminar o último parágrafo
da novela que comprou
na banca de jornal
mia toda segunda-feira se sente
lenta com um incômodo
no topo da cabeça assim um foco
só que tem medo de oftalmologista
e por isso disfarça com um
par de óculos escuros um saco
de biscoitos e um vestido
que comprou na seção infantil
(Alice Sant'Anna é carioca, tem 19 anos, estuda jornalismo, toca teclado na banda Os Subterrâneos, gosta de nhá benta, vestidos e livrarias)
INDÓCIL CAMINHO
Maurício Pinheiro
Na paixão, a lucidez toma férias e viaja por fora de si. Na órbita da pessoa onde está escrito: “PERIGO”. E o coração vai e entra. Essa é a hora em que a alma sai rumo às sete maravilhas do outro, enquanto você, ocupado, joga sua agenda existencial no lixo. Toda a sua atenção está voltada para a generosidade de conquistar no outro a flanela que vai polir o seu ego. Porque, enfim, apareceu a pessoa perfeita para o descompasso do seu ritmo. Visão clareada, miopia da vez que lhe garante a chance de dominar a gramática do que você lê ali. E você acredita! Afinal, a vida lhe devia isso.
Daí em diante, no fundo de nós se revela a saudade. Uma saudade que resiste à presença do outro. Saudade do que sobra e saudade do que falta
Assim, prefiro o amor. Deitar com amigos é melhor que deitar com amantes. O que busco aqui é a mera compreensão daquele que se dá em gozo, tranqüilidade que não desfaz a ereção. Continuo a ser o que sobra, o que falta ao mesmo tempo. Mas aqui eu sei que o outro não tem nada com isso. Mas tem ombro! E ainda tem, boca, mãos, língua, peito e coração!
(Maurício Pinheiro é um poeta insistente na desconstrução dos caminhos que surgem, quiçá fáceis, em suas mãos, mas suas linhas, não raro, desordenam o caminhante desavisado)
JANELA POÉTICA (III)
UM TEMPLO
Sérgio Inácio
Ando medindo-me a cada passo.
Meu caminho não se mede com nenhum rastro.
Sou distância de mim mesmo
e parede indevassável...
Meço minha fala-palavra
com o silêncio dos templos adormecidos...
E vou oferecendo-te procissão:
longos cânticos de ruína
E uns ganidos de fé sem rima
(Sérgio Inácio é professor de história em Salvador e, nas horas vagas, arrisca-se na poesia e na fotografia)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
CIBELLE CAVALLI – CIBELLE
Ainda desconhecida por muita gente, Cibelle Cavalli é um desses verdadeiros achados para quem aprecia, em muito, a boa música. Mostrando que talento é muito mais do que possuir uma bela voz, Cibelle extravasa e se funde com as escolhas de repertório presentes nesse que é seu primeiro álbum solo, lançado em 2003. O trabalho marca as visões de certas paisagens da origem paulistana da artista, atualmente radicada em Londres. E é esse entendimento do que seja o universo da cena musical de São Paulo quem consegue construir um panorama repleto de estilos diferentes para o disco. Abraçada à sua precisa forma de interpretar as canções, Cibelle visita, num só caldeirão, gêneros como o samba, eletrônica, jazz, bossa e outros. Em sintonia com a suavidade dos arranjos que mesclam sons de vinil antigo, acordes de guitarra e melodias eletrônicas, os ouvidos parecem ser transportados para lugares que, mesmo parecendo serem muito diferentes, coexistem harmoniosamente. Num álbum onde qualidade é artigo que se esbanja de sobra, é tarefa difícil destacar faixas. Mesmo assim, falam alto canções como Deixa, Só sei viver no samba, Waiting, I’ll be e Pequenos olhos. Como se não bastasse, o que dizer da intensa interpretação da emblemática Inútil Paisagem, ainda por cima com a participação de Johnny Alf? De certo, muita coisa para ser sentida numa atmosfera onde a sonoridade adorna o humano em sua maestria, sugerindo nuances sublimes de vida.
JANELA POÉTICA (IV)
LÍNEAS
Miguel Ángel Muñoz
Rumor de aires nocturnos,
líneas en bordes sombríos.
Espacio
El oleaje divide y cae,
las rocas – lenguaje
que el espacio quiebra.
Vacío, sombra divisoria,
ágil ladera.
La noche humedece.
Es el silencio.
(Miguel Ángel Muñoz é mexicano, poeta, historiador e crítico de arte. Além de diversos ensaios sobre arte, é autor dos livros de poesia Gravitaciones (1999), Ritual de signos (2000), Geometría de espacios (2003), Espacio y luz (2003), Convergencia (2003), Cinco espacios para Rafael Canogar, (Madrid, 2004). Participou de várias publicações no México, Espanha e América Latina. É diretor da revista literária Tinta Seca e colaborador das revistas Metérika (Costa Rica) y Agulha (Brasil))
AS PÁLPEBRAS QUEIMANTES DO ÚLTIMO RELÂMPAGO
Floriano Martins
Porém vejamos, onde me encontro exatamente?
No desejo ou no deserto?
Maurice Blanchard
Não há nada que nos desoriente mais a memória do que a inadvertência de querer retornar a algum ponto alcançado no passado. Como o teimoso viajante traído por sua obsessão de regressar a uma cidade cuja lembrança lhe seduz. Ou aquele outro que teme reabrir as páginas dos livros lidos de onde lhe socorrera o acaso a completar os versos de um poema. Jamais reencontraria ali a mesma imagem antes sugerida. A todo instante a memória nos faz perguntas que sabe não poderemos precisar. As viagens são todas elas um grande truque do tempo.
Chegamos em Luarca de mãos dadas com a noite e uma chuvarada. De longe, na estrada, recordo como fascinante a visão de uma cidade engastada em um despenhadeiro. Talvez apenas eu tenha visto tal cidade, porque sempre que falo em Luarca, amigos que lá já estiveram recordam o farol e as marinas. Em Luarca, eu tive uma estranha febre que me fez tremer a noite inteira. Lá fora do hotel, eu ouvia o pesado timbre incansável da chuva. E não recordo qual razão me fez ir embora dali logo bem cedo da manhã seguinte. Trouxe comigo, na mala da memória, a sensação de jamais haver estado em Luarca, uma imagem encaixada em um precipício à qual decerto não conseguiria localizar outra vez, caso ali ousasse voltar.
Ao contrário de Luarca, recordo com assombrosa nitidez as pequenas ruas de Santillana del Mar, onde estive dias antes. As varandas, as pedras, a sinuosidade dos caminhos. Os potes, as flores nas janelas, os arcos. Tudo me parecia encher de alegria cada momento percorrido. Esta cidade sim, eu posso dizer que a conheci. Orgulhava-me de dizê-lo. E até poucos dias estava certo de ter comigo algumas fotos dessa viagem. Porém, quando fui buscá-las, não estavam ali, simplesmente não. Uma outra ardileza da memória. Teriam existido em algum momento essas fotos?
Quando meus pais mudaram uma única vez de bairro eu tinha 14 anos e para a nova casa não foram os milhares de livros que percorreram comigo todos aqueles anos vividos no centro de Fortaleza. Três décadas depois, uma amiga, ao me ouvir falar da biblioteca desaparecida, pôs em dúvida a sua existência. Eu jamais reli em toda a minha vida a obra de Dostoievski, que tinha presente e sempre revisitada naquela casa da infância.
É bem possível que em algum lugar resguardem-se de mim Luarca, as fotos de Santillana del Mar e os romances de Dostoievski. Eu sei que não voltarei a revê-los nunca. Eu posso encontrar – isto sim – um bom motivo, essencialmente poético, para as evasões anotadas. Um amor que se desfazia em meio à chuvarada nas Astúrias. Os sinais desse amor desfeito no acervo fotográfico da Cantábria. A morte do único irmão a coincidir com a mudança de casa no Ceará.
Há sempre algo que perdemos e que nos leva a memória, por onde passamos. Um enigma que pode muito bem mostrar-nos um semblante dolorido, mas que de alguma maneira aponta em outra direção. Não importam as perdas que não convertemos em pedras preciosas. Não adianta buscar a terceira sílaba da noite. Algo nos leva de uma parte a outra. Há que escutar esses disparos mágicos do abismo.
As viagens não existem para um álbum de retratos. Tampouco os livros nasceram para a construção de uma biblioteca na sala dos pais. Os amores compreendem isto ao irem embora, despidos de todo ressentimento, quando souberam beber as centelhas de cada instante vivido. As viagens nos fazem ir do desejo ao deserto, e não nos trazem de volta para nenhum dos dois pontos, de chegada ou partida, que a rigor se confundem.
(Floriano Martins é cearense e já publicou alguns livros, entre poemas, ensaios, traduções e preparação de antologias alheias. Edita uma revista virtualíssima, a Agulha. Tem uma incorrigível inclinação para envolver outras pessoas em tudo que faz, em decorrência do que certamente estejam em curso projetos dentro e fora do país, envolvendo a publicação de livros e a organização de eventos)
JANELA POÉTICA (V)
ESTANTE
Adelaide Amorim
Às vezes fecho o livro que estou lendo
para expurgar fantasmas
que como deuses me invadem.
Os livros têm licença de mentir
ou sufocar de verdades quem se arrisca.
Explicam nossas culpas
ou tocam sem cortesia na alma de quem lê
e atingem irreverentes os sentidos.
Às vezes me percebo nas palavras
outras, sofro
quando sem compaixão nem saída
a vida escrita esmaga um personagem.
Palavras que se atraem mutuamente,
escritos e leitores dão-se as mãos
a evocar instâncias
e bifurcar-se num jardim de Borges
multiplicados enfim,
outras histórias,
sobre segredos, memórias, sons e sonhos.
Perseverantes e inertes nas estantes
estão vivos:
habitam-nos razões inesperadas
canais de lágrimas e motes para o riso.
Em sua secreta música encapada
uns são baladas
outros sinfonias
outros ainda notas dissonantes
mutantes harmonias em palavras.
(Adelaide Amorim costumava escrever muito mais prosa do que poesia, mas ultimamente descobriu um atalho que a levou em outra direção. Aprecia demais esse novo caminho e confessa que ele mudou seu jeito de ver o mundo, trazendo descobertas novas a cada dia, a cada hora. Para ela, os poemas são expressão de um contato imediato de terceiro grau com a vida, o mundo, as coisas e as pessoas)
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Valéria Freitas e Fabrício Brandão
PAULINHO MOSKA - A certeza de que minha arte não tem cara é que me faz continuar a procurá-la. A cara... verdadeira ou falsa, ainda terei o prazer de encontrá-la.
JANELA POÉTICA (VI)
Héber Sales
o sentido.
há os rastros do silêncio nas palavras
: eu sinto o predador informe que nos
respira: uma selvageria me percorre:
eu adivinho o êxtase da refrega: o verso
que me acomete de vertigens: o olhar
(imponderável) da mais antiga fera.
AS MARÉS E A CULTURA
Affonso Romano de Sant'Anna
Estou na janela deste hotel em São Luís olhando a preamar. As suaves ondas vêm cobrindo mais de um quilômetro de areia. Isto leva umas nove horas. Depois de ocupar, por uns quinze minutos, todo o espaço até a murada junto ao Palácio dos Leões, começa a baixa-mar e por mais nove horas, o mar se distancia. Não é nenhuma tsunami. Em São Luís é assim. Um ir e vir das águas, um soar constante de tambores no horizonte.
Também estou num ir e vir por aqui nesses trinta anos. Mas a cidade nunca me impressionou tanto. Está com sua estrutura pronta para um moderno turismo. Dizem que pouco depois da descoberta de Cabral, já piratas nórdicos, além dos franceses, desembarcavam aqui para buscar especiarias. Os franceses foram donos dessa ilha por três anos e por três anos, depois, os holandeses. E pouca gente sabe que é numa dessas igrejas que está enterrado Joaquim Silvério dos Reis, o que nos traiu Tiradentes.
Maranhão é um páreo duro para a Bahia. A singularidade de seus rituais em torno do boi e dos grupos de tambor é tocante. Vejo a palestra do Babalorixá José Itaparandy sobre o Caixeiro do Divino Espírito Santo do Terreiro de Mina Pedra da Encantaria. Que riqueza simbólica! Ali estão três velhas senhoras cantando e batendo seus tambores. Ali está aquela linda menina de uns seis anos, vestida de rainha em vermelho, com coroa, manto real, ladeada pelo porta-bandeira. Que exuberância nossa arte popular. A cultura é maior que a teoria. O Brasil é maior que os brasileiros. Parece um contra-senso, mas é isto é que nos salva.
Aqui vim para a 1a. Feira do Livro de São Luis. Homenageiam Josué Montelo, que foi quem botou melhor na ficção a cultura dessa região. Aqui estão, entre outros, Ana Miranda, Thiago de Mello, Moacyr Scliar, Bartolomeu de Campos Queirós, Ignácio de Loyola Brandão e Ariano Suassuna. Mas o que singulariza essa feira é outra coisa. É a ênfase no estudo das tradições locais, a valorização dos autores do estado e sobretudo dezenas de oficinas voltadas para a leitura. Reencontro amigos, ex-alunas e, entre os escritores, o casal Arlete Cruz e Nauro Machado, duas referências maranhenses.
Entendeu o prefeito Tadeu Palácio, ouvindo Lucia Nascimento Carvalho, de que é através da criação de programas sistemáticos de promoção da leitura, que se transforma uma comunidade. Por isto, se associaram a Fabiano dos Santos, que está realizando no Ceará uma das mais notáveis façanhas em torno do que chamamos de “agentes de leitura".
Hoje, esses “agentes" são um fato desdobrado das experiências pioneiras do antigo Proler, da FBN. Entrem no Google, botem lá “agentes de leitura" e vão ver o que se pode fazer com pouco dinheiro, mas com vontade política e criatividade. Não estranha que o Ministério da Cultura queira adotar nacionalmente essa iniciativa.
A Feira foi montada ao ar livre na praça Maria Aragão, onde há obras de Niemeyer e o sofisticado cenário construído por Edirson Veloso e Edgar Rocha destaca a portentosa escadaria onde ocorrem performances, enquanto ao fundo esplende a fachada iluminada de uma igreja antiga.
Os tambores de São Luís continuam tocando em incontáveis pontos do estado. A preamar vem, a baixa-mar vai. A cultura também vem em ondas, entre um governo e outro, e quem souber pescar ou se lançar ao mar virá com a rede cheia.
(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador ativo da Diversos Afins)
JANELA POÉTICA (VII)
Douglas Dias
há pássaros
que não fogem
ao sol poente
observam
o que as estrelas trarão
sem ninguém saber
a eles pertence
a iluminura incontida
d’outras auroras
(Douglas Dias é poeta em Belém do Pará. Na Web, apresenta-se na diversidade dos seus escritos em blogs como o Vomitando Imagens e Eu, espantalho)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Fabrício Brandão
2:37. Austrália. 2006.
A raiz que evoca certos sentimentos muitas vezes se nutre de silêncio. Em torno de um sem fim de aparências, giram vidas que se vestem de um mundo que só conhece a si mesmo. 2:37 é uma espécie de instante crucial de certas revelações solitárias da alma humana. Seis são os destinos que correm paralelos para depois se entrecruzarem no palco comum de desencaixes pessoais. Seis jovens estudantes travam seus diálogos mentais num ambiente onde verdades escondidas funcionam como válvula de escape inversa. Cada um deles deixa exalar seus fardos de sofrimento apenas para os olhos de quem assiste ao filme. Do contrário, e lá fora, um outro lugar explode com ritos de vida pretensamente normal.
Com um roteiro muito bem trabalhado, o diretor Murali K. Thalluri investe nas ações que permeiam a dor existencial de cada um dos protagonistas. Poderia ser mais um daqueles enfadonhos filmes que tratam, banalmente, dos dramas de jovens colegiais envoltos em questões familiares e comportamentais. No entanto, assim como a câmera que inicia a obra num percurso sereno sobre a folhagem indefinida, assim também o é a sucessão de cenas que deflagram o ralo para onde escoa o fluxo de dores da trama: uma aura suicida rondando a densa atmosfera individual daqueles estudantes. Cada um dos jovens em questão se defronta com um limite quase insuportável para lidar com seus fantasmas. No meio de tudo isso, é possível perceber o acerto do diretor estreante com relação à condução da narrativa, pois há um quê de documental, apoiado em depoimentos dos personagens, a traçar uma linha de causa e efeito para as ações. É esse tom confessional quem dá sustento às imagens, pondo à margem certos estereótipos típicos desse tipo de situação.
Certas sensações trazidas pela obra parecem ficar suspensas, à espera de quem lhes empreste devidas atenções. Talvez essa idéia das coisas soltas num sentido mais parecido com redomas pessoais e inalcançáveis das dores humanas seja o que torne o filme algo interessante. Ao que parece, somos compelidos a crer que nossas misérias e equívocos são sempre maiores do que os dos outros. Por ora, deitamos a cabeça no travesseiro, dormindo apenas com aquilo que nos consome e, portanto, nos basta.
JANELA POÉTICA (VIII)
DIVERSOS
Gilmar Salatiel
Talvez bastasse só um olhar, mas tivemos quatro e tantos...
E eu caminharia em qualquer direção, ávido, seco, desperto e envolto no pequeno branco...
Talvez bastasse uma música ou as mais doces e quentes músicas da alma, da saudade, do coração, de sempre...
E eu dançaria como louco e perdido por entre águas e pedras, naqueles caminhos desenhados ao acaso...
Talvez bastasse um ou vários, que me despertassem o ciclo, o cio, o prazer...
E eu me entregaria a todos os olhares como bússola, a todas as mãos como garras.
Bastaria uma luz, mas viriam relâmpagos, trovões e chuva.
E eu me deixaria iluminar, assustar, lavar toda a alma com a certeza de que nada se esvairia...
Bastaria um dia, mas tivemos mais que isto; noite e dia, dia e noite.
E eu seguiria o pulsar forte dos sangues, dos corpos suados, de vidas distantes e tão íntimas.
Bastaria um ano de todas as vidas juntas, mas são tantos!
Bastaria ser uma cidade, mas somos tantas.
Bastaria que fosse um vento, uma brisa...
E poderia ser um sonho, um amor.
(Nascido no Crato, Ceará, Gilmar Salatiel foi criado em Salvador, Bahia. Formado em Agronomia pela UFBA, com Mestrado em Fitopatologia pela UnB, desde cedo, iniciou-se na escrita de poemas, crônicas e textos poéticos nunca publicados, mas em fase de estudo de publicações)
ALMAS DE GAVETA
Fabrício Brandão
Eu poderia escrever sobre qualquer coisa, mas preferi desarrumar antigas vestes mofadas. De um tempo em que se acreditava no traço pueril de entulhos, coisas todas foram deixadas de lado por falta de quem lhes desse crédito. É que nunca desejei embarcar naquela onda de conselho útil trazida pela voz de outrora. E como ela (talvez outra também) fosse suficiente para desenhar essa tal ojeriza tatuada bem no meio da cara. “Dona da razão”, ela rebolou freneticamente em cima das minhas tímidas certezas para depois anotar cada equívoco meu num velho caderninho espiral de linhas perdidas. E, ainda por cima, a tolice do ser humano é acreditar que existem manuais dos bons modos. Veja só! Foi então que esbarrei de cara no labirinto sujo de esquecimentos. É impossível competir com gente que se chafurda no lamaçal da perfeição. Agora ela pode sair. A porta está trancada do lado de fora, mas é preciso tomar cuidado com a chuva forte que rebenta, pois esta dissolve bem mais do que fantasmas.
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
JUSSARA SILVEIRA – ENTRE O AMOR E O MAR
Já faz um bom tempo que a melodia doce da voz de Jussara Silveira instalou-se pelos meus sentidos. O primeiro e grato encontro dos ouvidos com a arte dessa mineira de alma baiana deu-se justamente no disco de estréia dela, Jussara Silveira (1997), álbum cuja interpretação da artista se agiganta em canções como Dama do Cassino (Caetano Veloso) e Congênito(Luiz Melodia). Então, passaram-se alguns anos e, nesse intervalo, que compreendeu a feitura de mais alguns discos, Jussara trilhou sua condição de artista devotada ao canto sereno e sublime das coisas da vida. Entre o amor e o mar, seu álbum atual, mescla sentimentos e emoções que falam com leveza sobre certos lugares das relações. Ao mesmo tempo, o mar entra em cena como uma espécie de abrigo onde se instala o amor, percepção que fica bem clara em canções como Braço de Mar, Morena do Mar, Oferenda e na bela faixa que leva o nome do disco. Outro ponto forte do álbum está em Só, música que sugere uma redenção de nossas dores através da atenção a gestos simples de nossa existência. Estes e outros tantos signos, conduzidos pela suave voz de Jussara, funcionam como um verdadeiro contraponto aos nossos ímpetos desvairados de vida, provando que primeiros e melhores passos de nossa cura estão em lugares menos complexos do que imaginamos.
JANELA POÉTICA (IX)
Foto: Leila Lopes
MIRAGEM
Leila Lopes
O espelho destas águas envolve,
além do mar, preces vulgares
e este ofício por onde circula o silêncio.
Loucos nós, quando não nos permitimos
ser fisgados pela rede dos homens.
E há esta velha ferida
nos impedindo de seguir adiante,
mágoa que cala,
lama nos pés domesticados.
Quem sabe por esta inexatidão de águas densas,
tal lógica em nossos negros poços,
mergulharíamos sem sermos notados,
conheceríamos, humildemente,
do nosso espírito sagrado,
a cura que salva o próprio corpo na vastidão.
Mas o sonho submerso e repetido
é o de sermos fisgados pela rede dos Deuses:
linha emaranhada de insensatez e glória.
*O trabalho de Gilbert Antonio, enquanto artista plástico, transita entre o factual e o subjetivo. Funde em si diversos elementos plásticos e artísticos. O próprio artista ousa dizer que há incidência de diferentes recortes e impressões pessoais, urbanas e psicossociais. As andanças e sensações estão impressas em todos os trabalhos e ganham força quando entram em contato com o expectador - revelam e comungam sintonia e sinestesia. Deste encontro, culmina o inusitado e indômitas percepções acontecem incondicionalmente, emprestando, assim, uma nova abordagem no olhar e sua concepção.