28 de fev. de 2008,23:00
DÉCIMA OITAVA LEVA
Foto: Diogo Brasileiro






CICERONEANDO


“Gente é muito bom / Gente deve ser bom”, assim canta Caetano Veloso a sua “Gente” e assim cantamos nós as possibilidades em torno do humano. O nobre ofício de se comunicar sentimentos variados faz o retrato daquilo que somos. Questionamentos, prazeres, dores, signos íntimos e outras tantas epifanias são apenas uma ínfima parte daquilo que navega num imenso mar governado por mentes e corações. Por mais que tentemos explicar aquilo que nos ocorre, haverá sempre os apelos de um mistério a rondar nossos passos. Somos um plural admirável e, ao mesmo tempo, assustador. Somos as imagens captadas pelas expressões do fotógrafo Diogo Brasileiro em seu tratado de escrever pessoas com a luz. Somos a poética pulsante em Lívia Soares, Alba Liberato, Luiz Otávio Oliani, L. Rafael Nolli, todos embebidos da vontade de só ser. Somos ouvintes da contadora de histórias Benita Prieto quando devotamos ao verbo a sua força inestimável de abraçar multidões. Somos a vida escondida nas palavras e no testemunho cinematográfico de Bolívar Landi. Somos a vontade de correr desenfreadamente pelas galerias do mundo, tal como em Sérgio Luyz Rocha. Somos a saudade das elegâncias diluídas em nossa massa informe de contradições devidamente pinceladas por Affonso Romano de Sant’Anna. Somos a lembrança inadiável de um Dostoiévski na crônica de André de Leones. Somos Décima Oitava Leva. Definitivamente, caro leitor, gente é mais do que bom!


* Comentários podem ser feitos no link EXPRESSARAM AFINIDADES, no final da Leva.





JANELA POÉTICA (I)


Vaso

Alba Liberato


Conteúdo nas mãos contido
nenhuma gota a derramar em
desazo desmantelo descuido.
Cada um inteiro continente. Par
que a fonte elementar rodeia.
Banhados no corpo líquido
áurea substância, a gerar
borbulhas de ensejo
à sede dessedentar
em goles miúdos
suave marulho
saboreado
desejo.
Dois. Sós. Nós.


(Alba Liberato vem produzindo textos desde a década de 60, incluindo estórias populares do Nordeste para cinema de animação, tendo realizado inúmeros filmes curtos e o longa-metragem BOI ARUÁ, que carrega no seu lombo prêmios nacionais e internacionais)







Foto: Diogo Brasileiro








DIZERES

Sérgio Luyz Rocha


Quis dizer, talvez a chuva insistente, que a saída estivesse próxima escondida sob viadutos ou mesmo sublimada na forma de uma dona de casa enlouquecida com as novelinhas à mesa. Quis dizer, quem sabe, as entradas pouco apreciáveis e desjejuns de certo alcoolizados que já não era sem tempo e nem dinheiro ou que fizesse as malas em meio ao torvelinho de notícias e discos antigos. Quis dizer antigo sentindo-se iluminado por uma estranha mania de borboletas e mesmo que amanhecesse em seu peito uma fuga de personalidades os dias seriam menos estúpidos e os licores certamente mais saborosos. Quis dizer amém, mas a fornalha crepitou num verso de amor e melhor dormir antes que a vontade de gritar se espalhe e alcance os telhados onde a chuva resiste mesmo à falta de horizonte. Quis acordar sozinho olhando-se no fundo de xícaras imundas e arrebatar da tela o sorriso que nunca mentiu e mesmo apunhalado crer secretamente nas juras de uma imensidão que falta ao chão e despenca de todas as alturas e arrebentar-se nu nos capôs polidos dos carros que voando passam sem sentir dor alguma e imaginar que o sangue escorrerá com a chuva e descerá pelos bueiros e infestará as ventas dos ratos que invadirão a vastidão da mesma ausência desmoronada na brevidade de um fim de semana só porque hoje resolveu acocorar-se junto à possibilidade de fingir as vidas de quem viu sorrindo um dia entre os ramos de um jardim ressequido e a multidão em fuga. Quis dizer de um sol pouco filmado. Um sol pouco afortunado que se esconde em horizontes sem visitas, nem de longe apreciados, pois imprecisos recortes ao fundo das vidas passageiras dessa estória. Quis dizer de uma estória pouco contada, escorada em páginas puídas e rebentos devorados pela escrita; um súbito escriba de vontades encharcadas, que sorve muito dessas infusões imediatistas que balem piedade e cospem insensatez. Quis dizer que melhor deixar-se aqui recostado à guia, sobre o fiapo de esgoto que escorre morto sob o céu de promessas chulas; deixar-se, se for capaz, com a cara de aventuras impróprias e a maquiagem roubada da palidez dos condenados; deixar-se mesmo que os homens sigam seus caminhos e acabe sozinho sem saber que anoitece.


(Paulistano dos Altos de Santana, escreve porque as palavras assim o querem; ele mesmo não tem querer algum. Filósofo de formação (deformação?), ganha algum trocado como consultor educacional e nada com suas oficinas literárias. Não crê em deus, mas suspeita de sua existência (o que não fará a mínima diferença)








Foto: Diogo Brasileiro









JANELA POÉTICA (II)



O QUE ME DISSE A MANDRÁGORA

Lívia Soares


...defloramento, por exemplo, é uma palavra
linda. Convida a violar o lacre de uma flor
de carne. Uma vez aberta, a flor
simulará resistência ao avanço daquele
que pretende entrar. Mas nem tudo
será verdade. Quando o abismo chama,
há que contar com anedotas do destino,
ritos que se cumprem sem pergunta.
A flor de carne, pétalas se movendo
em círculos concêntricos por força do
instante - matrimônio de luz e trevas -
devolve o menino ao mundo.
"Pequena morte, pequeno monstro,
que poder nos traz aqui?" Isso
diria o menino, se pudesse. Não pode.
E, no entanto, move-se.


(Lívia Mara Araújo Soares nasceu em Caicó/RN e vive hoje em Natal, a capital do estado. Trabalha e sonha entre o sertão e o mar, não exatamente nessa ordem. Prepara um livro de poesia, outro de contos e outro de ensaios, exatamente nessa ordem)





Foto: Diogo Brasileiro






APERITIVO DA PALAVRA


O DEMÔNIO FIÓDOR

Por André de Leones (*)



1. Em Operação Shylock: Uma Confissão (Cia. das Letras), uma das obras-primas do escritor norte-americano Philip Roth, há uma passagem maravilhosa em que o autor, ali também personagem e narrador do romance, conversa com o escritor israelense Aaron Appelfeld sobre o que ele, Roth, considera “a maior frase de Dostoiévski”. Transcrevo a passagem na íntegra:

“Você se lembra, em Crime e Castigo, quando a irmã de Raskólnikov, Dúnia, é atraída ao apartamento de Svidrigáilov? Ele a tranca consigo, põe a chave no bolso e, então, como uma serpente, parte para seduzi-la, à força se necessário. Mas, para seu espanto, no momento em que a tem acuada, a linda e bem-educada Dúnia tira um revólver da bolsa e aponta para o coração dele. A maior frase de Dostoiévski vem quando Svidrigáilov vê o revólver.”

“Diga”, disse Aaron.

“”Isso, disse Svidrigáilov, muda tudo.’”

2. Os romances de Fiódor Dostoiévski são como bombas de efeito retardado, pelo menos para mim. Eu me lembro de quando lia Os Demônios (ed. 34) pela primeira vez. Estava ainda no começo do volume e um amigo me disse: “A passagem com a confissão de Stavróguin é uma das coisas mais horripilantes que já li. Espere só até chegar lá”. De fato, quando li essa passagem, fiquei bastante impressionado, mas não a ponto de achar aquilo uma das “coisas mais horripilantes” em que já tivesse posto os olhos. No entanto, semanas e meses após terminar a leitura, mesmo já tendo lido outros livros desde então, aquela e outras passagens de Os Demônios ocupavam a minha cabeça e os meus pesadelos. E o crime de Stavroguin, aquele crime que ele, especificamente, “confessa” a certa altura, passou, de fato, a configurar em minha memória como uma das coisas mais terríveis e profundissimamente humanas (na pior acepção possível do termo “humanas”) de que tomei conhecimento em toda a minha vida.

3. Sempre que termino de ler ou reler um romance de Dostoiévski, faço como Svidrigáilov e digo: “Isso muda tudo”. Porque nada fica no lugar. O demônio Fiódor captura instantes da mais negra humanidade, provando com todas as letras e frases, por meio de seu estilo pedregoso, rascante e ríspido, que, desgraçadamente, o que melhor define o ser humano é mesmo a sua enorme capacidade de perpetrar a violência contra os outros e contra si.

4. Cada assassinato em cada livro de Dostoiévski é, na verdade, o assassinato da humanidade inteira. Cada estupro é o estupro da humanidade inteira.

(*) Escritor, nascido na Rússia em 1880. Foi educado em uma abadia francesa. Fugiu para o Brasil em 1922, mas não se lembra o motivo. Uma primeira versão do texto acima saiu no Diário de Cuiabá. A versão publicada aqui contém várias alterações, mas o autor não sabe dizer qual delas é a menos pior.





Foto: Diogo Brasileiro




JANELA POÉTICA (III)

Sobre o amor

L. Rafael Nolli

Faço para ti um colar de cobra coral Orno teus pés com chocalhos de cascavel – tua foto sorri no sorriso da boca do sapo Oferto teu boneco de vodu às pás do arado (revivo tuas cicatrizes de criança reescrevendo em braille o idioma de sua dor) Selo um verso para ti com a brasa de meu cigarro: um buraco é o seu ponto final


(L. Rafael Nolli, nascido em Araxá, MG, é poeta de orientação marxista. Publicou Memórias à Beira de um Estopim, 2005. Encontra-se no prelo, Comerciais de Metralhadora, seu novo livro de poemas. É membro do Movimento Potencialista)





OUVIDOS ABERTOS (I)

Por Fabrício Brandão



BIA KRIEGER - COEUR VAGABOND / CORAÇÃO VAGABUNDO




Pelo nome que batiza o disco já dá para perceber um pouco as sugestões embutidas nele. A atmosfera bilíngüe desse belo trabalho faz com que as paridades caminhem lado a lado, seja na escolha do repertório, seja no apuro em se trilhar arranjos que nos conduzem pelas trilhas sensíveis da boa música. Coeur Vagabond divisa a suavidade da voz de Bia Krieger em meio a versões de canções francesas e brasileiras, empregando um ritmo no qual a música reina soberana e independente das supostas fronteiras trazidas pelas diferenças entre idiomas. Há um pouco de um tudo neste álbum. Pelas bandas brasileiras, deparamo-nos com canções do porte de Retrato em Branco e Preto (Tom Jobim/Chico Buarque), Coração Vagabundo (Caetano Veloso) e a batida bem ritmada de Lavadeira do rio, composição de Lenine. O percurso francês passa por sonoridades expressas em Jardim D’hiver , composição de Henri Salvador e que aqui faz par perfeito com precisos arranjos de flauta, Belle Ille en Mer (Voulzy), e pela intensa Foule Sentimentale (Alain Souchon), canção cuja versão em português dialoga com uma certa nuance sentimental do povo brasileiro. Depois que se ouve esse bem cuidado disco, temos a certeza de que são muitas as virtudes de se ter um coração verdadeiramente vagabundo. É que os sentidos precisam se dispersar pela vida, desapegar-se das amarras para depois habitar nos jardins suspensos das coisas leves da alma.





Foto: Diogo Brasileiro









JANELA POÉTICA (IV)



TERRITÓRIO

Luiz Otávio Oliani



“O que não sei fazer desmancho em frases”
Manoel de Barros



brota em mim o verbo
com suas pessoas

desconjugá-las não posso

em mim
a palavra
se faz morada


(Luiz Otávio Oliani é natural do Rio de Janeiro, graduado em Letras e Direito. Participou de diversas antologias e tem poemas publicados em jornais do País e do exterior. Com incursões no teatro e no jornalismo, freqüentou oficinas e atua no movimento literário da cidade carioca desde 1990, período em que obteve mais de 40 premiações. Publicou “Fora de órbita”, Editora da Palavra, poesia, 2007)









Foto: Diogo Brasileiro










PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Neuzamaria Kerner


Já houve quem dissesse que a tradição milenar de contar histórias teria o seu derradeiro destino. Ledo engano. Mesmo numa época em que aparatos tecnológicos aos montes apontam soluções e contornos prontos para um tudo, a força ilimitada da oralidade resiste como arma poderosa e símbolo notável de preservação da memória humana. Ao contrário do que possa parecer, existe muita gente engajada nessa nobre missão de contar histórias. Em meio a esse ambiente, onde palavra e imaginação fazem par constante, encontramos gente como Benita Prieto, que, além de integrar o grupo de contadores de história Morandubetá, também é atriz, produtora cultural e escritora. Verdadeira militante da palavra, Benita tem em seu currículo mais de 2000 apresentações por todo o Brasil e em diversos países. Formou mais de 20 grupos de contadores de histórias e, como produtora cultural, idealizou e realiza diversos eventos na área de leitura, literatura e narração oral, podendo destacar o Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, que acontece no Rio de Janeiro, desde 2002, ininterruptamente. É debatedora fixa do programa Sem Censura, da TVE, desde 2003, e tem três livros publicados. Conversando com a DA, Benita nos conta um pouco de sua trajetória, opiniões e vivências pelas trilhas de uma arte na qual as letras funcionam como um significativo espaço de construção do imaginário de nossas existências.



Benita Prieto


DA – Os tempos são outros em muitos aspectos. Mesmo assim, as pessoas ainda gostam de ouvir histórias?

BENITA PRIETO - Ouvir e contar histórias é a melhor e mais barata forma de comunicação entre os humanos. Funcionou com todos os nossos ancestrais e se perpetuará para sempre. O problema é que as pessoas muitas vezes acreditam que esta é apenas uma atividade ligada ao universo infantil, mas quando se encontram frente a frente com um bom narrador oral ficam encantadas.

DA - Qual a importância do seu trabalho nesse momento em que muito pouca gente lê no Brasil? Como a atividade é realizada?

BENITA PRIETO - Desde que comecei a contar histórias, já foi para utilizar a narração como uma estratégia de aproximação do leitor e do livro. Essa ação está respaldada por uma série de autores nacionais e estrangeiros que escreveram tratados, crônicas, contos, mostrando a importância dessa atividade para a promoção da leitura. Por isso, desde que passei a exercer esse ofício, comecei a realizar projetos que ampliassem a percepção do público para a importância do narrar. Assim, criei o Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, que, no ano de 2008, vai para sua sétima edição, ininterrupta. Produzi o “Histórias”, primeiro documentário de contadores de histórias realizado no Brasil. Fiz espetáculos de narração, ministrei oficinas e palestras. Passados quase 20 anos, creio que o trabalho frutificou, visto a quantidade de contadores de histórias profissionais que temos em nosso país, e a importância dessa arte em todos os segmentos da sociedade.

DA – Sherazade salvou a própria vida por causa das histórias que contava. Há algo comum entre você e essa personagem milenar?

BENITA PRIETO – Sim. Mesmo sendo atriz desde pequena, acabei me graduando em Engenharia Eletrônica. Dá pra imaginar qual seria meu futuro! Um dia, a literatura infantil e juvenil caiu de pára-quedas na minha cabeça, quando me tornei supervisora do projeto “Meu Livro, Meu Companheiro”, da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. O que a princípio seria apenas um trabalho para ganhar algum dinheiro no momento em que o teatro em minha vida estava em crise, transformou-se na salvação do meu corpo, minha alma, ao encontrar os companheiros do grupo Morandubetá de contadores de histórias. Composto por Celso Sisto, Eliana Yunes, e Lúcia Fidalgo, esses cavaleiros andantes me convidaram para compartilhar o sonho de ajudar no processo de transformação da sociedade, usando a narração oral. Foi assim que me tornei uma Sherazade moderna e urbana.

DA – Contar histórias é uma Arte para poucos?

BENITA PRIETO – De maneira nenhuma. Todos podem e devem contar histórias. Nada melhor que ouvir a voz amada de nossos familiares, contando histórias inventadas, da ficção, ou até de antepassados. E aquela professora que vai ficar para sempre no nosso imaginário porque era uma contadora de histórias? Claro que no meu caso, que vivo dessa profissão, preciso utilizar recursos que agradem ao público e façam com que eu seja contratada outras vezes. Brincadeiras à parte, quero dizer que necessito de uma técnica. Isso faz a diferença entre os que são contadores de histórias por diletantismo e os que transformaram o narrar em ofício.

DA – As histórias nos fazem entrar em contato com o nosso mundo interior. Como você lida ao sentir que está entrando no mundo do outro no momento em que “incorpora” a contadora?

BENITA PRIETO – Tenho muito cuidado na escolha do repertório, apesar de acreditar que todas as histórias podem ser contadas para qualquer público. Minha preocupação é levar temas que estejam de acordo com o desejo do ouvinte naquele momento. Também há a questão do imaginário, pois muitos contos têm em sua essência mitos, arquétipos, que podem entrar em confronto com valores e crenças pré-estabelecidas. Esse rompimento tem que ser gradativo e, numa sessão de histórias, não temos como dar conta desse conflito. Melhor, então, é a prudência e o bom senso.


Benita com crianças de uma escola em Maputo, Moçambique



DA – Grupo Morandubetá. Conte-nos como se formou, de onde veio a idéia, o nome que foi dado ao grupo.

BENITA PRIETO – O grupo se formou em 1990, na FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Mas o processo começou em 1988, quando Eliana Yunes trouxe ao Brasil o grupo venezuelano “En Cuentos y Encantos” para ministrar uma oficina de narração oral, pois, até aquele momento, para contar histórias sempre era utilizado o livro. Na verdade, as histórias eram lidas. Logo, surgiu o embrião de um grupo de contadores de histórias, o qual resultou no Morandubetá, palavra tupi que significa “Coleção de Histórias”, também nome de um livro muito premiado, escrito por Heitor Murat. Na ocasião, perguntamos ao Heitor se o incomodaria usarmos o nome do seu livro. Ele riu e disse que a palavra não era dele, era dos índios brasileiros.

DA – Dos Dez Mandamentos do Grupo Morandubetá qual o que você acha mais difícil de seguir para contar uma história que seduza totalmente o ouvinte?

BENITA PRIETO – Claro que os “Mandamentos” são uma brincadeira criada pelo grupo para motivar o participante das oficinas a seguir um planejamento na hora de trabalhar uma história para narração. Mas creio que, de um modo geral, o quinto mandamento, “Execute o seu poder de concentração”, é o que exige maior habilidade, pois quando nos deparamos com pessoas no público que não se integram ao espetáculo e não permitem que a porta de sua imaginação se abra para a história que está sendo contada, podemos ver bocas enormes bocejando, olhos que se fecham, gente que conversa, crianças que gritam, público que sai! Haja concentração e espírito esportivo num momento desses.

DA – Recentemente você foi premiada em Cuba pelo seu trabalho. Como foi essa experiência?

BENITA PRIETO - Foi uma surpresa. Antes de ser premiada no Brasil, tive o privilégio de ir à Havana para receber o prêmio Cont’arte, em maio de 2007. Também foi a realização de um sonho, pois Cuba está no meu imaginário desde sempre. Voltei maravilhada com o povo, a beleza do local, a hospitalidade, a luz que inunda a cidade. E como uma história “puxa” a outra, acabo de ganhar o prêmio Culturas Populares 2007, do MINC – Ministério da Cultura, pela idealização e produção do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias. Espero que esses sejam os primeiros de muitos. Claro que o maior prêmio que eu posso receber, dia após dia, é ver alguém se emocionar ao ouvir uma história que narro.

DA – Você acredita que ouvir histórias motiva a leitura?

BENITA PRIETO - Não tenho dúvidas que é uma das estratégias principais para promoção da leitura e do livro. Apostando nisso é que temos nos dedicado, durante os últimos anos, em contar histórias para desenvolver a sensibilidade no ouvinte. Como diz o grande amigo e escritor Jonas Ribeiro: todos deviam ter “ouvidos dourados”.







DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Bolívar Landi



A Vida Secreta das Palavras (La vida secreta de las palabras). Espanha. 2005.






Podemos desvendar o que se passa no íntimo do ser humano? As aparências, não raras vezes, nos iludem, e fazemos interpretações equivocadas de situações e pessoas. Estabelecemos modelos, compartimentalizamos, catalogamos o outro. Há, contudo, algum lugar intocado em cada ser, desconhecido muitas vezes por ele mesmo, que abriga suas carências, frustrações, desejos, ressentimentos, remorsos e medos. Um espaço protegido onde a dor se converte em silêncio. As palavras vêm perturbar este frágil equilíbrio. Ao proferi-las, os sentimentos parecem ganhar existência e vêm resgatar aquela vida oculta, secreta, surpreendente e, às vezes, aterradora que carregamos. O instigante título deste filme, dirigido em 2005 pela espanhola Isabel Coixeté, protagonizado por Tim Robbins e Sarah Polley e co-produzido pelos irmãos Augustín e Pedro Almodóvar, não poderia ser melhor escolhido. A palavra, que também pode ser usada para dissimular, nos oferece, aqui, uma forma de redenção, já que, a partir delas, conseguimos entrar em contato com o outro e melhor entender as nossas dores e a nós mesmos. A película ganhou diversos prêmios, entre os quais o Goya (prêmio principal do cinema espanhol) de melhor filme, diretor, roteiro e direção de produção, em 2006.


(Bolívar Landi é historiador e tantas outras coisas mais. Cinéfilo por convicção, também se atreve a navegar no mar de feitos literários)





Foto: Diogo Brasileiro





FANTASIAS DO ESTRANGEIRO

Héber Sales


"Baiano não bebe, não birita. Baiano come é água; a gula é grande", repete a brincadeira, pela enésima vez, a minha amiga S., gordinha fogosa e paulista. "Pois de enorme, o apetite do baiano é generoso: eu nunca fui tão assediada". E folga, largadamente.

"Não é da água que eles comem?", eu a provoco.

"Que nada! Mesmo nos ambientes mais sóbrios, eles me falam as sacanagens. Baiano gosta é de carnes, querido. A gula é grande”. E esnoba as magrelas.

Que maravilha. Gente bem desejada é de outro nível, meu povo. Em São Paulo, essa mulher não gargalhava assim do azar das outras. Aliás, ela não gargalhava. Nunca vi. Quando muito exibia um sorriso protocolar, daqueles de fazer tremer as maçãs do rosto. Às vezes, eu até a imaginava rindo com algum gosto. Mas, então, ela logo armava uma careta, como se a alegria lhe doesse na alma.

Namorado, ela não tinha. Paquerar, não se sabia. E nem parecia fazer questão. Andava como que de luto, vestida pro azar. Era toda panos, pretos, cinzas, ou, no máximo, cores pálidas, friorentas. Jamais ousava decote algum. No escritório e nas ruas, não se sabia sequer dos seus joelhos.

Muito me surpreendi, pois, ao reencontrá-la na Soterópolis momesca há uns três anos. Era uma outra. Estava curada da anemia humoerótica.

Vestidinho insinuante, malha justa bem verão; montada na plataforma, carregava em balangandãs. Nas unhas longas afiadas, trazia a cor berrando; e nas carnes suntuosas, um molejo e tanto. Estava felina, de um jeito inimaginável para quem a conhecia doutros tempos.

E ria, ria extravagantemente. Parecia até a dona de um bordel nos seus melhores dias.

E me contou: “Meu querido, aquilo lá não era vida. De que vale à mulher conquistar tanta virtude e não encontrar quem a faça de puta na cama? Não vale de nada. Nadica de nada. Na Bahia, eu descobri. Por isso eu vim pra cá de mala e cuia, e deixei por lá a mania de executiva em tempo integral. Hoje estou feliz, felicíssima: meu corpo aqui é o carnaval”.








JANELA POÉTICA (V)


Foto: Leila Lopes



O que está por trás de toda cor

Leila Lopes


no mesmo prato
o vermelho de vozes
misturas semelhantes
e sem segredos

o espaço pouco
de sonhos tortos:
apenas carne que esconde
o cansaço dos ossos

mas o tom pimenta
disfarça o sabor
da comida repetida dos dias








Foto: Diogo Brasileiro






ÓCULOS DE GRIFE

Neuzamaria Kerner


“A verdade gera dor e eu não sabia o quanto eu poderia suportar da verdade que estava diante dos meus olhos”. Foram essas palavras que ouvi de Lurdi – Lurdi que vem de Lurdinha. Fiquei curiosa com aquela frase intrigante que eu já havia lido em algum lugar, não sei quando... Incentivei a continuação do papo. Ela lagrimou e continuou: pois é, menina, a gente pra andar na moda paga um preço alto. Foi assim que caí na real quando vi o meu bem precioso sendo misturado com a terra. Sabe, prima, eu gosto de enterros. Tanto de pobre quanto de rico. O de rico não tem muita graça. Tem não! O de pobre é divertido, mas às vezes traz desgraça. A começar pelo nome enterro, que é de pobre, daquele que mora em unidade habitacional abaixo do padrão. Pra não dizer barraco. Pra não dizer que a gente tá ofendendo. Se fosse de rico, seria inumar, sepultar, depositar o corpo num jazigo. Cê já foi em enterro de rico? É assim: todo mundo bem vestido, os saltos dos sapatos tocando levemente nas alamedas dos jardins das saudades todas. Tudo silencioso, educado, sem ataques. Soltar as frangas da dor é proibido. É... mostrar a dor é coisa de gente sem classe, sem finesse. Virou lei não dar ataques, não fazer a exposição daquela dor infeliz. A lágrima tem que ser discreta e ocultada por um par de óculos escuros bem bacanas comprados em loja. Lágrima que sai pelo nariz que nem ousa fungar alto porque o lencinho branco e delicado não deixa. Impressionante!

Pra falar a verdade, eu gosto mesmo e mais de enterro de pobre. O jeito de ver o sofrimento honesto é ali. Com direito a tudo que se tem direito: café no quente-frio, bolacha poca-zóio, ir de sandália de borracha daquelas que se enfia pelo dedão, alpercata domingueira, todo mundo vestido de preto pra mostrar bem o pretume que é uma dor decente. A roupa pode até ser foveira, emprestada, remendada, mas é toda limpinha. Até a roupa do defunto não faz vergonha a ninguém. Ali se pode chorar sem pejo. E também dar ataque em cima do caixão. Por falar em enterro, cê sabia que nosso tio morreu? Aquele da barraca que vendia farinha na feira de São Joaquim!? Pois, é menina. A criatura morreu assim... sem-quê-nem-mais... Foi até no dia em que comprei aqueles óculos. Uma fortuna! Aproveitei pra inaugurar. Fui lá como pedia a ocasião. Tiraram no palitinho quem pegava nas alças do caixão de tanto que ele era gostado. Pois é, menina... Um chororô, um abraça-abraça, um cai prum lado, outro jura se matar, outro consola. Tava lá o buraco aberto, um calor retado, as viúvas disputando espaço no nada que já era o tio. Se deu que a oficial, bem na hora de o coveiro jogar a primeira pazada de terra, antes mesmo do descimento do caixão, deu o ataque. Abriu os braços, levou as mãos à cabeça gritando valhei-me-Jesus-o-que-vai-ser-de-mim, acudiram, mais outro ataque, mãos na minha cara, só deu tempo ver de raspão os meus óculos dando um vôo rasante, outra pá de terra, outra... e eu contando as prestações restantes. Foi o azar, foi a inveja dos parentes. Pois é, menina... eu que só tinha óculos de camelô. Meus primeiros óculos de grife, da boa... pensei em mergulhar na terra ainda fofa, pensei em mandar parar tudo, pular dentro da cova, mas começou uma chuva de água forte, misturada com chuva de galhos de Angélica, misturada com água de lágrima, até da minha própria... e eu contando vinte e uma, vinte e duas... pagar sem ter... Se fosse num funeral meus óculos estariam aqui... mas foi num enterro. Fazer o quê, né?








OUVIDOS ABERTOS (II)

Por Fabrício Brandão



RUBI – PAISAGEM HUMANA




Vagar e só vagar à procura de novos e bons signos: eis a receita que só o tempo, ao mesmo instante que “esconde”, revela gratas descobertas em torno da arte. Não é exceção a essa regra prestar devidas escutas à verdadeira paisagem humana cantada pelo goiano Rubi. De imediato, as atenções se voltam para a singularidade da voz do artista, fato que atrai pela forma personalizada com a qual o cantor naturalmente imprime intensidade ao seu canto. A vivência teatral de Rubi parece ter se espalhado para a interpretação que ele confere às canções de seu repertório. Basta ir ouvindo as faixas do CD para perceber todo o dinamismo que ele sugere. Aqui há lugar para sentimentos mais contidos e sublimes, exalados em canções como De Onde Vem a Calma (Marcelo Camelo), Infinito Meu (Gero Camilo) e Por Tudo Que for (Lobão/Bernardo Vilhena). Por outro lado, expressões que desenham ritos mais plásticos de interpretação estão presentes em faixas como Santana (Junio Barreto), Cabimento (Kleber Albuquerque) e da bela Fica Comigo Esta Noite, composição de Nelson Gonçalves e Adelino Moreira. Do universo de sentidos presente em Paisagem Humana, sobressai a grande dose de sensibilidade trabalhada pelo canto suave e, ao mesmo tempo, incisivo de Rubi. Destas demonstrações, talvez a mais bela esteja em Inverno (José Miguel Wisnik), canção que evoca uma sensação de busca da identidade em meio aos contornos urbanos de uma São Paulo plural. O fato é que somos feitos de substâncias inexplicáveis, traduções imperfeitas. Por vezes insensatos, esquecemos de deitar olhos a esse imenso mosaico do tamanho do mundo, um mar de gente.








Foto: Diogo Brasileiro









SAUDADES DA ELEGÂNCIA

Por Affonso Romano de Sant'Anna



Já antes do carnaval, jornais e revistas vinham dando destaque a uma coisa meio desagradável: cena de pessoas, desinibidamente, fazendo xixi na rua. Escrevo "xixi" e penso que mais delicado seria "pipi", mas os jornais cruamente dizem que as pessoas estão é "mijando" nas ruas. Assim, a palavra vai correspondendo à rudeza dos hábitos.

Mas tenho visto, cada vez mais, pessoas fazendo xixi atrás de estátuas, junto de muros, pelas beiras das estradas. Já nem se escondem. Exibem-se. Outro dia, um cidadão defecava normalmente em plena Avenida Atlântica, no Rio. Como diz a gíria, "não estava nem aí", "estava cagando e andando".

Tento entender. Em tempos de "Big Brother", isto não é uma coisa isolada. As pessoas de todas as idades também falam palavrões com a maior naturalidade. Outro dia, estava numa fila de supermercado e atrás de mim havia uma senhora idosa, cabelo branco, parecia uma "lady", uma figura de camafeu. Até que de repente, como um caminhoneiro, ela exclamou: “Porra, essa fila não anda?!".

Começo, cada vez mais, a ter saudades de um mundo mais delicado, menos grosseiro.

Outro dia, numa coluna social dessas, entrevistaram uma linda e célebre mulher com aquelas pernas e aqueles seios. E a coisa mais interessante que conseguiram extrair dela era a preocupação de fazer muito "pipi" antes de desfilar. Quer dizer, a urina e as fezes das pessoas cada vez se tornam mais relevantes nessa cultura estercorária. Antes queria-se saber o que a pessoa pensava, até o que ia vestir. Agora, é quanto, onde e como faz pipi. Ah, sim, todo mundo tem que saber também quem está "comendo" quem. As pessoas querem se meter na cama alheia.

Isto não é um fato isolado. É a cultura (ou incultura) de nossa época. Lembram-se de como a gente queria um mundo sem fronteiras, sem preconceitos, sem classes sociais? Lembram-se de que se falava muito de "ascensão das massas"? Pois não estou seguro se as massas subiram. E parece que os sociólogos devem estar surpresos, pois o que ocorreu foi uma descida das elites. Academicamente isto é muito bonito e estimulante para estudar. Dá um belo ensaio de semiologia. Mas aí, você sai à rua (ou abre os jornais) e tem que tapar o nariz ou desviar os olhos.

Lembro-me que nos anos 70, tentando entender a cultura marginal, assinalei que com a cultura emergente estava-se trazendo o lixo para a sala de visitas. Ou seja, a sociedade estava desreprimindo suas forças. Mas hoje acho que trouxeram lixo demais. Está difícil conversar não só com as visitas, mas dentro da própria casa. A televisão, que é um termômetro simbólico de nossa vida social, está cheia de exemplos da banalização da grosseria, sob forma de pretenso humor. Daria uma bela tese ver como a linguagem da imprensa "underground" dos anos 60 e 70, com sua agramaticalidade ética, estética e política tornou-se a norma nos grandes jornais e revistas.

Não acho que tenhamos que nos comportar como os nobres ingleses, sem se tocarem, frios e impassíveis, exercitando apenas a ironia. Somos uma cultura tropical e a informalidade sempre foi um traço cativante de nosso dia-a-dia. Mas informalidade é uma coisa, grossura, outra coisa.

Elegância é bom e eu gosto.


(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador ativo da Diversos Afins)







Foto: Diogo Brasileiro








JANELA POÉTICA (VI)


DUO

Fabrício Brandão


Aquele outro se abre em fendas
Arranha espaços
Agarra as mentiras presas nos lençóis
Acontece sem ninguém.

Dialoga com espelhos
Despeja poeira nos móveis
Discute com vista para o mar
Depois do prazer

Cumpre o rito das horas
Corteja o azul que vaga
Cala em voz alta
Cerra os olhos em terras distantes

O daqui sustenta esperas
Ornamenta os sentidos na estante
Obedece sinas tortuosas
Ora por um pouco mais de tempo




Foto: Diogo Brasileiro



* O fotógrafo Diogo Brasileiro é especialista em Direção de Arte. O seu olhar poético é evidente na composição da imagem, há traços peculiares em seu trabalho que evidenciam o humano em concepções diversas. O urbano e sua tendência ao contraste figuram como um perfeito pano de fundo em muitas escolhas do artista.

 
publicado por Fabrício Brandão
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