29 de jun. de 2008,21:00
VIGÉSIMA SEGUNDA LEVA - ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO
Foto: Wellington de Medeiros








CICERONEANDO


Vinte e duas trilhas percorridas e a estrada que nos conduz à descoberta de novos e outros mundos permanece imprecisa aos olhos. O complexo universo desvendado em cada uma de nossas edições não intimida as vontades de se projetar cada vez mais além do que se é agora. É saboroso e ao mesmo tempo estimulante conviver com os desafios misteriosos do caminho. Parafraseando o imortal Vinícius de Moraes, nosso poetinha das canções de amor e de mar, viver é atirar-se à arte do encontro. Eis então a grande tônica que move todas as intenções almejadas pelo movimento das letras e expressões de cujo ambiente a Diversos Afins tem sido fiel testemunha. Em seus dois anos de existência, mais do que propagar idéias e epifanias variadas, a revista atestou de perto a vivacidade das trocas de energias advindas do espírito humano. De fato, foram inúmeros os encontros que presenciamos, fundindo a um só tempo manifestações importantes em torno da literatura e da arte. Todos os nomes que por aqui passaram ajudaram a consolidar o motor principal de nosso projeto: a crença inconteste na importância dos feitos culturais. E para celebrar conosco nossa caminhada, nada melhor do que dividirmos os espaços com alguns daqueles que representam a valiosa adesão ao nosso sonho. Pelas linhas poéticas brindamos à sensibilidade de Lita Passos, Sérgio Luyz Rocha, Romério Rômulo, Jorge Elias Neto, Alba Liberato, Cássio Amaral, Carlos Henrique Leiros e Ana Peluso. Compartilhamos dos signos embalados nas letras de L. Rafael Nolli, Mariza Lourenço, Heitor Brasileiro Filho e Rodrigo Melo. Algumas das opiniões e idéias do escritor e, acima de tudo, articulador cultural Floriano Martins, fazem parte de uma entrevista afinada em torno da arte. Percorremos também com aguçadas escutas as crônicas de João Pedro Roriz, André de Leones, Bolívar Landi e Affonso Romano de Sant’Anna. Fotografia e artes plásticas compõem um amplo painel de exposições com os artistas que noutras ocasiões desfilaram seus olhares por aqui. O instante atual é o momento de gratidão para com todos aqueles que colaboraram conosco desde a nossa tenra idade. A leva que agora se apresenta agradece imensamente a todos os nossos leitores, personagens principais da nossa trama. Sejam todos sempre muito bem-vindos!


* Para comentar, clique no link EXPRESSARAM AFINIDADES no final da Leva.










XXV

L. Rafael Nolli



Eu sou um caçador que mergulha na mais nevoenta floresta para dar cabo à caça. Eu caço belas palavras com as quais lapido feios poemas. Eu sou o verdadeiro aproveitador, aquele que, por um mero acaso, tem o sótão aberto por onde os bichos-idéias vêm ver o mundo exterior e os abate, cruelmente, para expô-los em folhas mortas.

Eu sou o sublime egocêntrico que mostra o pensamento morto como bichos doentios em um zoológico; que faz do crânio um pequeno alçapão, uma minúscula prisão, um Auschwitz, para arrancar pobres palavras feridas nas moitas, abatidas nos cantos e revelá-las sem vida, sem brilho.

Pois , que serviço sujo e ingrato: adentrar no fosso de minha mente e arrancar de uma dúzia de palavrinhas mortas para exibi-las, assim, como medíocres bichinhos empalhados, encharcados de formol, impedidos de sua sina derradeira

feder.



(L. Rafael Nolli, nascido em Araxá, MG, é poeta de orientação marxista. Publicou Memórias à Beira de um Estopim, 2005. Breve lançará “Comerciais de Metralhadora”, seu novo livro de poemas. É membro do Movimento Potencialista. Contatos: nolli@bol.com.br)








Pintura: Nelson Magalhães Filho
















JANELA POÉTICA (I)


MENINO-HOMEM DE DENTRO

Fabrício Brandão

(Para Kelson Frost, sobre quando olhamos outras margens de um rio)




tudo agora
acusa em sombra a palavra
dos tempos soltos
de verbos acasos

luz de sina acesa
tem gosto secreto
espraiado em turva estrada
memória inalcançável

produto das coisas não ditas
um olhar se abriga
dorme em leito avarandado
abandonando escuros tons

ínfimos prazeres aceleram torpores
canibalizando delírios raros
mas desejos inventados
não são capazes de convencer o dia













Ilustração: Vera Basile












A DANAÇÃO DE CHICO FERRO DOIDO

Heitor Brasileiro Filho


Apesar da extravagância do nome, Chico Ferro Doido é um sujeito decente. Atualmente, só tem um defeito: é quando pega a beber. Depois de uma vida pregressa Chico agora trabalha de segunda a sexta fazendo uns biscates para manter o status de amante fiel de Tetê, Rosinha e Nair, as três mulheres da sua vida. O desassossego só começa na sexta feira, quando dana a beber. De sexta a domingo sua diversão é beber cachaça, passar a mão na bunda da mulher dos outros e procurar confusão. Por causa do vício, perdeu dezenove dentes e meio dos trinta e dois que possuiu na boca, mas também perdeu a conta de quantas queixadas teve que desfigurar para manter a honra de caceteiro fixe. Sua mãe, Dona Bebé, fez promessa, subiu a Serra do Cruzeiro de Jacobina carregando pedras na cabeça dentro de um bocapio, e nada. Foi visitar a gruta do Bom Jesus da Lapa, de pés, e nada. Dona Bebé não sabe mais o que fazer com Chico. Outro dia, ele quebrou dezesseis barracas na feira do Caém, porque cismou com a cara de um cigano. Chico buliu com uma ciganinha, e um feirante da tribo tomou as dores aplicando-lhe um pescoção, mas com tanto zelo, que Chico atravessou a única praça pavimentada de Caém tropicando nos paralelepípedos. Fez meia volta, entrou no bar de Eliezer, pediu duas doses de rabo-de-galo e uma talagada de cambuí. Na volta, passou por dezenove feirantes distribuindo simpatias de chapas, martelos, godemes, bênçãos, e rabos-de-arraia, e se lançou numa avenida de casas, onde moram os ciganos, só pra tirar satisfação, no dizer de Chico Ferro Doido. Saiu de lá na garupa de uma motocicleta, muito contra a vontade do moto-taxista que ia passando, com o assovio perfurante das balas queimando as orelhas. Desejando mudar de vida, Chico tentou entrar na lei de crente, mas foi obrigado a aplicar um corretivo no pastor para preservar os dez por cento dos biscates. Agora não pode passar na porta do templo sem enfrentar a fúria dos obreiros. O pastor passou um mês desacordado na Santa Casa de Misericórdia de Itabuna, de onde é natural, e ficou maneta e capenga de uma só vez. Basta dizer que Chico virou modelo de anticristo. Mas isso não significa nada diante do amor incondicional de Rosinha, Nair e Tetê, as principais mulheres de sua vida, depois de sua santa mãe. Rosinha, Nair e Tetê amam Chico, perdidamente, e Chico corresponde ao amor das três. Que em matéria de raparigagem Chico Ferro Doido é imbatível, de fazer inveja a Zeca Moreira, dos Moreiras lá de Caém. Rosinha a mais humilde e limpa de coração é fateira estabelecida na feira de Jacobina. Dia sim, dia não, Ferro Doido não passa sem comer o fato de Rosinha. Tetê, a mais fogosa, é casada com o Dr. Perfídio Pereira, que começou humildezinho como advogado de porta de cadeia, chegou a edil, mas, tornou-se inelegível, foi expulso de três legendas por infidelidade até arrumar uma boquinha na Municipalidade para concretizar negócios escusos e perseguir desafetos. Arrogante e presunçoso - bruto mesmo -, se dobra, porém, aos caprichos de dona Tetê. Num arroubo de valentia, ameaçou jogar ácido nos olhos de Tetê. Dona Tetê esperneou e o escândalo saiu das frestas da delegacia e ganhou os jornais, mas, com aviso bem remunerado, Dr.Pereira comprou todas as edições. Agora, quando Ferro Doido chega, Tetê tira Pereira da cama e manda esperar lá no sofá. O coração duro de Pereira nunca chora. Dr. Pereira enche uma caneca de uísque doze anos, atira na caneca sua dentadura postiça e fica girando o dedo entre as pedras de gelo. Depois, puxa a poltrona para a porta do quarto e fica ouvindo as safadezas que Tetê faz com Ferro Doido. É o único momento em que Perfídio Pereira esquece a disfunção erétil que o acompanha há treze anos, quando perdeu o mandato de vereador. E Pereirão se satisfaz ali mesmo, com uma caneca na mão e a saudade na outra. Nair, noiva há vinte e três anos de um gerente bancário, é professora concursada do Estado, e dá banca de história, geografia, física, química, matemática, português e etiqueta, para complementar a renda. Apaixonou-se loucamente por Chico Ferro Doido após um curso de alfabetização para adultos. Até hoje Chico não sabe fazer o nome completo. Nair teme que, depois do abc, Chico tome asas de independência e não desfaz o noivado com o gerente por garantias. É por isso que Nair, a intelectual das três, ex-feminista de rasgar a calçola na manifestação, inaugurou o diálogo e estabeleceu um rodízio de prazeres para não haver desavenças entre as bravas mulheres de Chico Ferro Doido. E, finalmente, a paz reinou naquele coração. Pelo menos, até chegar sexta-feira.


(Heitor Brasileiro Filho é poeta,
crhonesto & friccionisto –
ex-tenso,
ex-es-tático
& ex-tinto)









Foto: Diogo Brasileiro












JANELA POÉTICA (II)


ROTINA

Jorge Elias Neto



Convivia-se com a conformidade
de ter o universo próximo de casa.

O espaço delimitado
pelo absurdo traço da conveniência
era marcado pelas solas dos sapatos.
(que trazia a fotografia do mijo fora da privada)

Para o gozo
O número era par.

De pouco importava a singularidade da morte.


(Jorge Elias Neto é capixaba de Vitória - ES. Médico cardiologista, publicou o livro de poesias “Verdes versos”, lançado em 2008. E o poeta nos diz: “Sou do tipo de poeta que não tem cisma de beijar o diabo na boca. Sou poeta; aprendi cedo a mordiscar os lábios de Deus”)





OUVIDOS ABERTOS (I)

Por Fabrício Brandão




PIERO BIANCHI & RICARDO CHACON – TERRA PAPAGALI COFFEE SHOP






Um mirar apurado aos nossos próprios espelhos e não demora a percebermos que há algo muito além de um óbvio refletido. Os relances patentes de nosso caldeirão de caras se alargam para muitos ambientes onde habita em profundidade nosso mais genuíno sangue. Por mais que sejamos rostos travestidos do novo, um sentimento apegado à gênese de nossas virtudes pulsa nas entrelinhas. E é assim que recobramos e reacendemos nossos sentidos quando visitamos as alamedas musicais construídas pelos pernambucanos Piero Bianchi e Ricardo Chacon. Terra Papagali Coffee Shop é o batismo pelo qual somos conduzidos para os caminhos que levam dentro de um Brasil sensível, terra-mãe generosa que por aqui exala seus traços exuberantes. As canções integrantes do disco revelam o altar em que são devotadas as raízes de nossa música, mesclando referências a temas como o amor e a natureza. No entanto, o pano de fundo das verdades ali cantadas tem razão de ser quando exorta uma busca leve pela essência humana.

“Viver é um bem maior pra se encontrar”, diz a faixa Se Vai Se Vem, cuja letra comprime espaços sublimes de nossas passagens de vida. Com as imagens delicadas da pureza de sentimentos, podemos nos enxergar cruzando as vias de Som e Sol, música que conta com a participação bela da cantora Isaar França. Por aqui, também empresta talento a voz da francesa Camille Baroiller em meio à batida moderna de Innatura. Com o sotaque cadenciado do samba, Oferenda na Praia encanta pela maneira lúdica e, ao mesmo tempo, lúcida com que desfila seus apelos sonoros. O disco deixa traços de influências notáveis da MPB numa referência implícita a nomes como os de Tom Jobim e Edu Lobo. O cuidado com o qual os arranjos são tratados é outro ponto forte do álbum, pois a cada ambiente desenhado pelos apelos das canções corresponde um signo sonoro que se encaixa perfeitamente às imagens sugeridas. Há algo de arrebatador na intensa Tanto Tempo, faixa que transpõe com beleza as marcas temporais do amor, além de promover um diálogo com as feições clássicas do samba. Terra Papagalli Coffee Shop é uma jornada bucólica ao centro de emoções nossas, equilibrando em seus serenos tons a dualidade de que somos feitos.











Ilustração: Fao Carreira














JANELA POÉTICA (III)


MARCA A FOGO

Lita Passos



Eu trago um deus doído
Na planta dos meus pés
Gemendo, a cada passo, ferido.

A vida me ensina pisar leve
Nas pedras, na areia, no chão.

A vida me instiga seguir leve
Entre segredos, verdades, oração.

Eu trago na vida uma coisa doída:
Algo assim como uma topada
Algo assim como uma partida

Eu trago a alma a fogo marcada!?



(Lita Passos diz que sua poesia passeia livre entre as grades sensíveis da palavra. No seu texto reverbera o canto mais delicado da raiz do rosário de lembranças. Publicou: “Mão Cheia (2005)”, “Nosotros (1996)”, “Flores de Fogo (1994)”, entre outros)





Foto: Antônio Paim
















A ARTE ONTEM E HOJE SOB A ÓTICA FILOSÓFICA

João Pedro Roriz



Friedrish Schiller foi um grande autor de peças teatrais que o tornaram, ao lado de Goethe, uma referência do pré-romantismo alemão. Os dois dramaturgos criaram um movimento em seu país chamado “Sturm Und Drang” que se predispunha a elevar a arte como elemento consolidador de duas naturezas humanas – o racional e o sensível. Schiller defendia a arte como forma de educação de pessoas que, por determinado motivo, não possui em sua personalidade um destes elementos. Segundo ele, o homem racional só pode se tornar sensível quando observa o belo, ou seja, quando se torna “estético”.

Baseado neste conceito, o filósofo Nietzsche aborda em seu livro “Natureza da Tragédia” o nascimento do teatro dionisíaco na Grécia do Séc. VI a.C., e defende a tese de que o movimento teatral surgiu da necessidade humana de formalizar a arte através do ritual de convenções expostas no espelho teatral e da necessidade de extravasar este mesmo formalismo através da embriaguez.

Nietzsche confrontou Kant quando este último criou a teoria do desinteresse das obras de arte. Para Kant, a arte não pode sofrer julgamentos, pois não possui “propósito prático”. Já o filósofo Stendhal chamou o belo de “Promessa de Felicidade”, o que foi defendido por Nietzsche para a crítica ou degustação da arte.

Antes de Aristóteles, o autor da “Poética”, Platão já questionava o verdadeiro valor das obras de arte e se indagava constantemente: “Para que pintar uvas tão perfeitas se elas já existem no mundo real”? De certo modo, o filósofo menosprezava as obras de arte por entender que derivam da necessidade de copiar e expor conflitos para obter audiência do público.

Não cabe a nós entender Kant, tampouco duvidar de sua retórica, mas não seria necessidade orgânica de um artista expor sua obra a fim de conquistar o reconhecimento do público? Esse reconhecimento não advém da verossimilhança de sua arte em relação à natureza? Como denotar genialidade e brilhantismo senão desta forma? Talvez os grandes surrealistas tenham a resposta. Com a passagem dos tempos, Pablo Picasso e outros puderam reinventar a realidade divina com a reprodução de imagens subjetivas que denotavam o ponto de vista de um único homem. Seria essa a fórmula da obra prima? Abraço Nietzsche quando, em defesa ao trabalho do artista, afirma que a verdade da obra de arte reside no fato de ser ilusória e subjetiva.

Todos temos uma verdade sobre o mundo dentro de nós. Se trabalharmos os lados racionais e sensíveis, aprendermos as técnicas de uma arte específica com a fome dos leões, certamente compartilharemos o nosso olhar, isto é, nossa matéria prima, com os outros irmãos de guerra, tão cegos a vagar por este mundo de arames farpados.



(João Pedro Roriz é escritor com formação teatral e jornalística. Publicou Poesia Teatral (ibis Libris -06) e Liras Dramáticas (Vianapole - 07). Em 2009, publicará "Gorrinho, uma loucura crônica" (Paulus - no prelo) e a adaptação de "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen (Paulus - no Prelo). No teatro, escreveu e montou "Carmen, o musical (05)”, “Perdas e Danos (06)” e “Psique e o Cupido (07)”. No ofício de ator, trabalhou em diversas emissoras de televisão, com destaque para a Rede Globo onde atuou em "A Muralha" e no Canal Futura, onde atuou em "Tecendo o Saber". Em teatro, atuou em peças notórias, com destaque para "Violetas na Janela")






Foto: Adelmo Santos










JANELA POÉTICA (IV)


a dança lunar

Carlos Henrique Leiros



basta-me o afã
da visão que se alastra,
e não conhece em ti qualquer fronteira.
.

pois sei precisamente,
aonde acenam as flâmulas,
que demarcaram o fim do meu delírio.
.

em dubiez, reclina-te,
esfalta-te, pois que o último reinado
sobre esta terra se extinguiu, silente.
.

a nossa dança lunar é quase heróica,
e na minha visão cristalizada,
estás, sempre estarás, crescente.



(Carlos Henrique Leiros é potiguar de Natal/RN, onde, há mais ou menos duas décadas, iniciou-se nas letras, publicando artigos analíticos sobre Literatura, Música e Cinema na imprensa local. Acerca de quase dois anos, dedica-se exclusivamente à Poesia, uma paixão que considera tardia. Gosta de música, livros, silêncio, papéis de gramatura especial e de chás. Planeja para 2008 a publicação do seu primeiro livro de poesias, denominado provisoriamente de “A Canção Submissa”)












Pintura: Canato













À ESPERA DE EULÁLIA

(La masturbation)

Mariza Lourenço




Era um ritual quase sagrado aquele de lavar as partes baixas enquanto aguardava Eulália. Fizesse chuva ou sol, ainda que ela não aparecesse ou que nada mais acontecesse, além de uma boa beberagem de chá. E isso, talvez fosse tão importante quanto a visão de Eulália abrindo o pequeno portão de ferro. Dava-lhe prazer a espera, perfumada pelo sabonete de malva. Excitavam-no as mãos que lavavam o falo, repuxando-lhe a pele sobre a glande.

Sim... E depois Eulália. Ou o chá.


(Mariza Lourenço é mãe, advogada criminalista, feminista e escritora inédita em livro. Co-edita a Germina – Revista de Literatura e Arte e Escritoras Suicidas)










Foto: Márcio Ramos














PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão



Seja nos meios presenciais ou virtuais, as vias que apontam para os feitos culturais jamais podem ser vistas de modo simplista, como se fossem meras condições propagadoras de um conceito genérico e deveras funcional da arte. Nesse terreno eivado de complexidades, alguns confundem equívocos com virtudes, forjando um mosaico de expressões imprecisas e que abre um verdadeiro fosso sob nossos pés. Lucidez e olhar engajado talvez sejam recursos ideais para os que desejarem atravessar essa jornada de modo consistente. E não é impossível encontrar gente que assim o deseje fazer. O escritor Floriano Martins é um deles. Poeta, ensaísta e tradutor, o autor figura como um verdadeiro articulador cultural, principalmente quando a missão é trabalhar em prol da literatura hispano-americana, notadamente a poesia.

Em 2001, criou o projeto Banda Hispânica, banco de dados permanente sobre poesia de língua espanhola, de circulação virtual, integrado ao Jornal de Poesia. Possui vários artigos veiculados na imprensa sobre temas ligados à música, artes plásticas e literatura. Esteve presente em festivais de poesia realizados no Chile, Colômbia, Costa Rica, Espanha e México, dentre outros países. Entre suas últimas publicações poéticas, estão as obras Tres estudios para un amor loco (trad. Marta Spagnuolo. Alforja Arte y Literatura A.C. México, 2006), Duas mentiras (Projeto Dulcinéia Catadora. São Paulo, 2008), e Teatro Imposible (trad. Marta Spagnuolo. Fundación Editorial El Perro y la Rana. Venezuela, 2008). Juntamente com o também escritor Cláudio Willer, Floriano edita a revista de cultura Agulha, veiculada na internet. Atualmente, cumpre a nobre missão de ser curador da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, a ser realizada em Fortaleza no período de 12 a 21 de novembro de 2008. Dono de extremas simpatia e atenção, além de uma veia sempre aberta ao diálogo, Floriano recebeu a Diversos Afins para algumas escutas em torno dos temas que envolvem a sua vivência pela arte.




Floriano Martins

Foto: Eleuda de Carvalho






DA -
Sua poesia carrega em si fortes apelos sensoriais, atirando-nos ao terreno envolto em mistérios lúdicos da existência e do amor. O que mais o motiva a trilhar caminhos tão sensíveis de criação?

FLORIANO MARTINS -
Atenção ao mundo. Não vejo motivo para contrariar tal ordem. Entregar-se ao mundo com todos os sentidos. Em geral, poetas parecem desprezar a realidade. A mim, me encanta, com seu desafio perene e irrepetível.

DA -
Em muitos de seus textos, sobretudo os poéticos, o diálogo entre imagem e palavra assume um papel fundamental na construção dos signos. Como você lida com esse jogo de complementaridades?

FLORIANO MARTINS - Mais do que simples complementaridade, trata-se de uma aposta alquímica. Quando funciona, já não pensamos mais na palavra ou na imagem em isolado. Porém, há mais do que isto. Há toda essa intensidade buscada em um diálogo que caminha para o teatro. São imagens que, em muitos casos, exigem um cenário e seguramente seriam enriquecidas pela presença de vozes, trilha sonora, projeção de imagens etc. A própria estrutura dos livros, com sua tendência ao sinfônico, legitima essa intenção alquímica.

DA - Além das porções poeta, ensaísta, tradutor e editor, há o Floriano articulador e que milita incansavelmente em favor da ampliação dos horizontes da literatura hispano-americana. Quais os principais desafios para que se configure uma integração efetiva entre os países em questão?

FLORIANO MARTINS - Teimar contra o tempo, contra a história. Desabonar todas as constatações de impossibilidade. Não esperar nada da política e talvez menos ainda dos clubes intelectuais. Promover encontros, traduzir, publicar, errar, insistir.

DA - Como você percebe o papel dos leitores no processo de integração literária que acabamos de mencionar?

FLORIANO MARTINS - A reiteração é um grande artifício compreendido pela propaganda. Público para uma cada vez pior arte é formado por este princípio infalível. Não se pode dizer que leitores não se interessem por literatura hispano-americana quando esta literatura não lhe é ofertada.

DA - A Revista Agulha vem se consolidando como um importante veículo de propagação literária e artística nos meios virtuais. Em sua opinião, que tipo de posicionamento validou o sucesso dessa missão cultural?

FLORIANO MARTINS - Nossa declarada aposta em não ceder aos vícios de caserna, aos pecados capitais de nosso jornalismo cultural. Não praticamos a chamada crítica subjetiva com seus elogios fáceis. Apresentamos ao leitor um acervo sempre diverso e renovado de temas e colaboradores.

DA - O fenômeno de convergência das mídias serve bem aos propósitos da arte ou deve ser visto com recomendada cautela?

FLORIANO MARTINS - Não há nada nas relações humanas que não deva ser visto com recomendada cautela. Não creio que a convergência seja passageira, mas ajudará entender que se configura com matizes distintos a depender da área em que atua. No caso da criação artística, o cuidado maior será sempre o de não permitir que um instrumento de trabalho se converta em um parâmetro estético. Enfim, a guitarra do Buddy Guy jamais tocará sozinha.

DA - Quando confrontamos criação artística e mercado, uma ordem alarmante se instala, fazendo com que sentidos estéticos consistentes deixem de ter importância. Como podemos resistir a tais “imperativos” face ao relativismo a que nos sujeitamos?

FLORIANO MARTINS - Vou entender o que chamas de relativismo como um eufemismo. A rigor, os domínios da religião, da ciência, da arte parecem todos domados pelas tábuas e pregões das bolsas de valores. O dilema maior nessa invasão de futilidades existenciais é que quanto mais ela avança mais nós perdemos a noção do perdido, a noção do que temos por recuperar. Porém, o mercado não é o protagonista desse circo de pulgas, e sim a maneira como o conduzimos ou nos deixamos conduzir por ele. Um Estado eficaz seria naturalmente aquele que conseguisse promover avanços na área de conhecimento, educação, cultura, de maneira a obter, por conseqüência natural, uma valiosa e equilibrada troca de forças com o mercado. Imaginamos um dia o Brasil chegando a este ponto?

DA - Há quem defenda que muitos críticos de arte endossam o coro da superficialidade de nossos tempos atuais. O que você acha disso?

FLORIANO MARTINS - Não há relevância alguma na crítica de arte de que dispomos hoje. Os sensores apontam na direção do mercado, dos patrocínios e amparos institucionais, dos ajustes de camaradagem etc. Nenhuma crítica séria pode encontrar um vetor saudável neste território.

DA - No trabalho de tradução de um poema, quais os recursos utilizados para se promover a fidelidade à subjetividade da obra?

FLORIANO MARTINS - Eis um tema sempre complexo, em grande parte por sua simplicidade que por vezes soa como um insulto. A lendária solução diz que não devemos nunca sofrer a tentação de tentar melhorar o original. Obviamente não iremos muito longe sem o conhecimento da língua e certa sensibilidade poética para desativar as minas rotineiras da tarefa tradutória.

DA - De onde vem o caminho para a permanência dos jovens escritores?

FLORIANO MARTINS - Não vem de parte alguma. A permanência, por sorte, é uma incógnita.







Pintura: Israel Scardua













JANELA POÉTICA (V)


A PRAIA DO SONO

Héber Sales



à civilização combate
naquela costa brava, erma
um legítimo almirante
um mar resoluto, de guerra

não faz porém só a peleja
que ao olho nu muito imaginam
faz coisa pior, sorrateira
com seu sopro que traz ruína

sopro de sono e de morte
de guardar para arqueologias
sopro severo em seu ofício
que desencarna e coisifica

que encomenda para fóssil
a aposta humana com a natureza
e que ao domínio de um deserto
as suas cores e obras entrega











Passeata dos 100 mil, Movimento Estudantil, RJ, 1968
Foto: Evandro Teixeira












APERITIVO DA PALAVRA



A FAÇANHA DE MURAKAMI

Por André de Leones (*)



Kafka à beira-mar (Alfaguara, tradução de Leiko Gotoda), romance de Haruki Murakami, traz uma série de elementos que, numa leitura superficial ou apressada, talvez o desautorizem junto ao leitor “sério”, aquele sujeito pedante e balofo que cita Proust na fila do restaurante self-service e faz doutorado sobre algum autor obscuro que só ele finge conhecer. Numa leitura superficial ou apressada, contudo, o próprio Proust poderia ser desautorizado. O melhor a fazer, portanto, é ir com calma. Sempre.

A despeito do tamanho do livro, quase seiscentas páginas, Murakami imprime um ritmo às vezes alucinante para contar as histórias de Kafka Tamura, um adolescente que foge de casa e procura driblar uma terrível profecia, e Satoru Nakata, um velho que, em função de um suposto acidente que sofreu quando ainda era criança, é mentalmente debilitado mas capaz de proezas incríveis, tais como bater papo com gatos e provocar chuvas de peixes ou sanguessugas.

As trajetórias desses personagens irão convergir em algum momento. Para melhor iluminá-las, o autor flerta sem medo com o fantástico e com o absurdo, coisa que talvez confunda os leitores “sérios” descritos no primeiro parágrafo. Essa confusão pode aumentar na medida em que, por outro lado, Murakami não esconde a sua erudição, aludindo a filósofos e compositores clássicos sem, entretanto, atravancar a narrativa com digressões desnecessárias.

A começar pelo título, Kafka à beira-mar traz uma sucessão estonteante e nunca forçada de referências das mais variadas fontes, desde Sófocles até Radiohead, passando por Stephen King e os Beatles. O drama de Kafka Tamura, por exemplo, a profecia terrível que o atormenta desde o início, é inspiração direta da tragédia grega: assim como Édipo, ele estaria fadado a matar o pai e a se deitar com a própria mãe. Graças ao seu talento, Murakami amarra coisas tão díspares e, mais do que isso, coloca todas elas a serviço da narrativa.

O talento do autor, aliás, está presente em cada página, seja na maneira como estrutura a narrativa (alternando, durante boa parte do romance, as jornadas de Nakata e de Kafka) e impede que tanto a sucessão de acontecimentos quanto as citações e referências tornem a história confusa, seja na extrema delicadeza com que desenvolve as situações e cada um dos personagens. Mesmo em passagens de extrema violência (como a que envolve o terrível Johnnie Walker), o autor não permite que o texto fique pesado e destoe do conjunto. É incrível como a história se desenrola com agilidade e coesão, prendendo o leitor desde a primeira página.

No decorrer do livro, ademais, há toda uma discussão sobre identidade (prestem atenção na personagem Oshima), o que dá bem a medida do quanto a literatura de Murakami é dotada de frescor: segundo alguns, não existe na língua japonesa uma palavra correspondente ao termo identidade tal e qual o entendemos. No fim das contas, Kafka à beira-mar é aquilo que o sujeito descrito no primeiro parágrafo poderia descrever como um romance verdadeiramente “plural”.



(*) André de Leones conversa com cachorros e nunca foi ao Japão.








Pintura: Kity Amaral








JANELA POÉTICA (VI)

Romério Rômulo



secura imaginária, vasto e bêbado do mundo.
quando consolas a proa de algum barco
tens a medida inquieta, desarmada.
soa atroz o canhão. indagas pela luz
do ferro forjado que compõe o corpo.
pedaços de pupila só devastam os aços
de outra desavença.
só o canhão rejuvenesce. o assim visto
pisas então.

viceja, alhures, tua imensidão.

quanto de homem trago no meu corpo?
e quanto sou de bicho na manhã?


*Poema integrante do livro Matéria Bruta.



(Romério Rômulo nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e é professor de economia política da Universidade Federal de Ouro Preto. “Matéria Bruta” (Editora Altana, SP, 2006) foi seu último livro de poesias publicado)







Foto: Leila Lopes






NA TERRA DE GABRIELA

Affonso Romano de Sant'Anna



Estou com o braço no ombro da estátua de Jorge Amado, aqui em Ilhéus, em frente ao restaurante "Vesúvio", que, segundo a lenda, seria o restaurante de Nacib e Gabriela. Tal a vida, tal a morte: ainda ontem eu punha a mão no seu caloroso ombro de escritor vivíssimo, agora só nos resta a fria estátua. Pelo mundo há estátuas de outros escritores também sentados na calçada da eternidade, à espera dos turistas. Está Fernando Pessoa em Lisboa, lá no Chiado ao lado de uma mesa. Está Drummond sentado num banco ali em Copacabana, e assim por diante. Um fotógrafo de imaginação pode até sair pelo mundo fotografando cenas com esses mortos-vivos.

Mas estou aqui em Ilhéus e cumpro meu alegre papel de turista. Fabrício Brandão e Leila, do blog/site "diversos afins", mostram-me a cidade com fartura de detalhes. Esse "Vesúvio" tem uma estória antes e depois de Jorge Amado, que qualquer um pode rastrear no Google. Por mais que se conte a estória do restaurante que já foi de uma infinidade de pessoas, não tem jeito, ele pertence mesmo a Jorge e seus personagens.

Ainda há pouco acabei de passar pelo "Bataclan", outra reinvenção do romancista, que de antigo bordel, hoje virou centro cultural, onde toda semana encenam trechos da obra de Jorge. Não tem jeito, essa cidade é uma invenção romanesca. Aquela casa ali adiante, que foi onde o autor de "Gabriela" morou, deixou de ser uma simples casa, é um centro de memória em torno dele.

Estou percorrendo seis cidades do interior da Bahia, e aqui e ali, a arte reinventa a vida. Estou em Vitória da Conquista e a primeira coisa que me comunicam, é que esta é a cidade de Gilberto Gil e Glauber Rocha. Vou a Juazeiro e faço conferência no Centro Cultural João Gilberto. É isso, a arte inventa a geografia, a história e transforma simples cidadãos em personagens. Aliás, muitas pessoas sentiram-se promovidas, quando orgulhosamente viraram personagens de Jorge Amado. É que a fantasia é melhor que a realidade e para o artista a realidade só serve para a gente a fantasiar.

Coincidentemente venho à Bahia, quando as obras de Jorge Amado estão sendo relançadas numa grande promoção, e eu voltei a lê-lo porque Alberto Costa e Silva e Lilia Schwarz me pediram para escrever o posfácio de "A morte e a morte de Quincas Berro d' água". Aí, eu que achava que já havia dito tudo o que sabia sobre essa novela, num ensaio anterior já publicado, acabei fazendo uma redescoberta fantástica: Quincas não se chamava Quincas, nem vivia na Bahia. Era cearense e a sua hilariante estória carnavalizada transcorreu, não nas ladeiras de Salvador, mas nas ruas do Rio de Janeiro. Graças a um opúsculo praticamente desconhecido, escrito por José Helder de Souza, fiquei sabendo que Quincas chamava-se Plutarco e que Jorge Amado ouviu suas proezas de amigos em Fortaleza, e quando Carlos Scliar lhe pediu para escrever uma novela para a revista "Senhor” (1959), ocorreu a grande metamorfose. A pena do romancista transfigurou tudo, deu um encantamento único ao Plutarco cearense, que virou baiano para sempre. E mesmo que eu diga que não desapareceu no mar, mas está no carneiro número 6059 no Cemitério do Caju, no Rio, o que vai contar é a versão do romancista.

Ah, o que a literatura faz com a vida! É o que sempre digo: tirem Homero da Grécia e não sobra quase nada. Apaguem Shakespeare da Inglaterra e aquela ilha vai ficar muito sem graça. E, no entanto, dizem que Homero não existiu, e insistem que Shakespeare também é ficção. Eis casos duplamente fantásticos, autores que não existiram inventando toda uma cultura.

Inda bem que eu conheci Jorge Amado, apertei sua mão, ouvi sua voz, estive com ele em debates, dele recebi cartas e telegramas. Se não fosse isto, era bem capaz de começar a suspeitar que ele também não existiu.

Como diria Cecília Meireles reinventando como ninguém a história em "Romanceiro da Inconfidência”:

"Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência a vossa!".




(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador da Diversos Afins)












Imagem: Gilbert Antonio












JANELA POÉTICA (VII)

Cássio Amaral



***

Platão acena a caverna
mas a poesia morta no chão
apenas sente o sol queimar
devaneios pretéritos

***

símbolos sinos signos
sol demente
a loucura diz aliterações
poemas gritam na madrugada
risco de vida no sonho de Rimbaud.



Poemas integrantes do e-book Lua Insana Sol Demente, 2008.



(Cássio Amaral é Natural de Araxá-MG. É professor de História, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio. Publicou os livros “Lua Insana Sol Demente” – 2001, “Estrelas Cadentes” – 2003 e “Sem Nome (Coletânea)” – 2005. Participou das coletâneas de autores blogueiros “Corpo e Alma em Verso e Prosa” (2006) e “Trilhas” (2008).. Tem poemas e textos publicados em vários sites e blogs. Em breve, vai parir o livro “Sonnen”, que em japonês quer dizer razão+ sentimento+vontade)










DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Bolívar Landi



O Sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream). EUA/Inglaterra/França. 2007.




Woody Allen é um dos mais respeitados diretores da atualidade. Dirigiu nada menos do que 39 filmes, muitos deles premiados pelos mais importantes festivais da sétima arte. Isto não o eximiu de, nas últimas décadas, ser acusado de se tornar repetitivo em seus filmes. Os seus mais recentes trabalhos, contudo, vêm apresentando uma perceptível variação de estilo. Isto pode ser verificado até mesmo pelos locais que escolhe para ambientar os seus filmes. Ele, que inúmeras vezes utilizou a cidade de Nova York como cenário para as suas obras, vem rodando os seus últimos projetos na capital inglesa. O humor irônico e neurótico, que lhe são característicos, cedeu também lugar a tramas psicológicas com uma forte carga de suspense.

O Sonho de Cassandra, produzido em 2007, é o terceiro filme da fase londrina de Allen. O roteiro, assinado como de costume pelo próprio diretor, recorre mais uma vez, como em Match Point (2005), a Crime e Castigo, de Dostoievski, e se inspira nas tragédias gregas. O próprio título da obra é uma referência à mitológica princesa troiana que tinha o dom da profecia e era tida como louca por seus compatriotas. As tragédias se caracterizam por encenar a impotência do homem diante do seu destino. E Allen a usa como instrumento para explorar, como poucos, a fragilidade e as idiossincrasias do espírito humano.

No filme, dois irmãos, personificados de forma empolgante pelos britânicos Ewan McGregor e Colin Farrell, são obrigados a tomar uma angustiante decisão diante de uma situação limite. O filme nos faz refletir até onde temos controle sobre as nossas escolhas e sobre as conseqüências de nossos atos. A tragédia nos diz que por mais que tentemos planejar a nossa vida sempre estaremos sujeitos à ação do imponderável, do incontrolável, do mistério que parece reger toda a nossa existência.

Mais uma obra inspirada de Allen que conta ainda com a competente trilha sonora do experiente Philip Glass, conferindo uma adequada ambientação ao triller. Um filme para se ver, pensar e reservar um privilegiado espaço em sua videoteca.

(Bolívar Landi é historiador e tantas outras coisas mais. Cinéfilo por convicção, também se atreve a navegar no mar de feitos literários)









JANELA POÉTICA (VIII)



AGASALHOS

Alba Liberato


Sobre as nuvens, o que menos se espera
é o que elas são: o avesso
e o avesso é tão mais o direito em oposição
que ao passeio dos olhos, eis
texturas. Os carneirinhos juntos
estendidos em manta pronta ao corte
de colete e casacão. Agasalhos.
Os breves descabelamentos esguelhados
pelos dedos que resvalam para o avesso
no cuidado que o direito é guarnição.
Buraquinhos, os falhados pra se ver embaixo
vazios sobre brilhos d’água, esgarçados,
à beira banhada, o mar pele
de animalão. Há o desregrado
de que acha que jamais avesso
será direito, desprezando
montanhas de novelos embaraçados
onde seria arremate, acabamento
capricho de mão. Mas o azul acima
sem rugas, pregas, riscos, nós
tecido inteiro sem emenda, infindado
em paciência de tecelão, não para cobrir pedaço
mas para constituir espaço, é bastante contraste
ao que se reserve avesso/direito
no uso sensível do olho/mão.



(Alba Liberato vem produzindo textos desde a década de 60, incluindo estórias populares do Nordeste para cinema de animação, tendo realizado inúmeros filmes curtos e o longa-metragem BOI ARUÁ, que carrega no seu lombo prêmios nacionais e internacionais)











Foto: Sérgio Luiz Pereira












JORNAL SOBRE A MESA

Rodrigo Melo


Uma xícara, uma xícara de café bem quente para despertar, depois se senta na cadeira e abre sobre a mesa o jornal de quarta, seção de empregos, há tanta gente por aí que está melhor que ele, conta no banco, olha para as palavras escritas na página, pequenas, minúsculas, se tivesse se formado seria médico feito o pai, mas não quis, ele que é uma mistura de homem e de bicho, um pouco de Caim, um pouco de Abel, os dois, as unhas grandes, os cabelos e a barba também, não se lembra mais o que é trabalho, vida, a vida era mais fácil antes, quando não existia tanta gente nas ruas ou quem sabe apenas pareça mais difícil agora, não dá para saber, pensa por alguns segundos que talvez esteja louco, pensa que talvez já tenha nascido assim, um pouco assim, as letras pequenas, nenhuma palavra, nenhum emprego, nenhum cigarro, largou quando fez aquela promessa, não lembra ao certo qual, aliás, acha que lembra sim, foi para parar de fumar, mas a vontade agora voltou, seus dentes estão manchados, ainda a nicotina, o que é aquilo branco na parte de cima da gengiva?, dá mais um gole no café, para despertar, levanta-se e caminha até a cozinha sem saber direito o que fazer ali, somente a vontade de caminhar, de levantar-se e caminhar, por ali, vê na pia o prato sujo de ontem, abre a torneira e deixa que a água caia, fecha os olhos por um instante, pensa que queria ser mais alto, ter músculos, um pau maior, os olhos verdes ou azuis, sente-se velho, sente-se só, o barulho que a água faz sobre o prato lhe dá aos poucos uma sensação estranha, a sensação de que a água jamais deixará de cair, a sensação de que ela irá arrastá-lo por aí, para fora, para o outro lado da porta ou da janela, tanta gente com conta no banco, com o futuro garantido, uma vez pensou em viajar, ir para uma outra cidade, um outro país, diziam que era mais fácil, então sonhou voltar rico, talvez não, mas encarar o pessoal de uma outra forma " what´s up, man?, só que por aqui tudo era muito fácil também, a cama macia, o rosto da mãe quando dizia que sua hora iria chegar e sua hora chegou, chegou, mas ele não está preparado para ela nem se preocupou em estar, ele que é uma mistura rara de homem e de bicho, dos dois, abre os olhos e fecha a torneira, suspira, olha para o prato e ele não parece mais tão sujo quanto antes, passou dias e noites esperando, esperando, esperando pelo emprego ideal, pela mulher perfeita, por talento, jeito, ginga, molejo, clarividência, esperando que alguém lhe apontasse o dedo na rua e de repente gritasse " ali vai um grande homem, olhem para ele, falem com ele -, no entanto tem cáries, pequenos pontos escuros que aparecem quando sorri seu sorriso que nunca foi lá essas coisas, pior agora, retorna para o café e para o jornal sobre a mesa, dá outro gole, mais outro, o sol naquele exato momento vara a janela do apartamento, no seu rosto, no seu rosto o brilho amarelado do sol, por alguns segundos vá-se como uma tocha incandescente no meio da sala, no meio do mundo, outra sensação estranha, esquisita, ouviu falar que todos são iguais sob o sol, mas ele se achava melhor, mais inteligente, passa a mão pela barba, as unhas grandes, há quantos anos que não ia ao barbeiro, há quantos que não tinha o prazer de pagar?, deve ser mais caro agora, dizem que tudo encarece com o tempo, dizem, encosta o rosto ao jornal e o que vá naquele instante lhe parece menos nítido, as letras, as frases, a página inteira, mesmo que nem saiba mais o que com certeza é uma página inteira, passa a mão pelo cabelo, as unhas grandes, levanta-se novamente, caminha até a janela, os espaços são extensos mas cada dia menores, há muita gente por aí, desacostumou-se de olhá-las e as outras janelas, elas que parecem bem maiores agora, as janelas, como se ele estivesse menor, como se tivesse diminuído, cada dia mais só, era para ter sido médico como o pai, olha para as mãos e elas são lisas, sem calos, uma vez pensou em se matar mas só pensou, na verdade era tudo um jogo, ele sempre jogou para a torcida, sempre jogou para as opiniões, sempre levou em conta o que seu tio, sua tia, seu primo, a amiga da mãe iria falar, sente-se tonto, tão tonto que apóia as mãos no parapeito da janela, levanta a vista para o céu e vê que o céu é o mesmo, abaixa a vista e as pessoas lá embaixo são iguais as que todos viram antes, por séculos, séculos e séculos o ser-humano não muda, a massa não muda, apenas o homem muda, ele sozinho, sente de repente uma vontade de sair, mesmo tonto, de andar, de ver outras pessoas, outros lugares, mas sabe, lá no fundo, que este apartamento também irá com ele, irá dentro dele, a cozinha, a janela, a sala inteira, ele que tem medo - medo de não agradar, medo de agradar demais, medo da morte, medo da vida, vida que era bem mais fácil antes, bem antes, tem medo também de não ser o que queria ter sido e de descobrir tarde demais que poderia ter sido o que quisesse, o medo que o afoga e o afaga mas que na prática apenas mata e mata aos poucos, na pior das hipóteses, uma tristeza por dentro, um arrepio pelo corpo, o que são aquelas manchas no peito, no pescoço, aqueles cravos no pau?, queria ter um pau enorme e cheio de veias mas não tem, queria ter pernas grossas, cabelo no peito mas não tem, seu estômago está vivo, o arrepio sobe até a garganta e então o arroto seco, de ar, o arroto do almoço de ontem e de café, queria um cigarro, sente fome, queria um cigarro agora mas sente fome e fez uma promessa, o que faz falta mesmo é um prato de comida decente, descobre, uma daquelas carnes que lembra de guri, sente mais falta ainda de um abraço, de um beijo, de uma chupada, por onde andará aquela menina, como era mesmo o nome?, talvez esteja por aí, talvez não esteja mais, nunca se sabe, parece que todo mundo some depois de um tempo, ele que também sumiu, mas continua por ali, quase de frente para a janela, quase de frente para todo mundo, desacostumou-se de olhar os outros, as outras janelas, a grande e furiosa massa, está com fome, queria saber as horas, que dia é hoje, o que é que falam sobre o seu signo no jornal mas as letras são miúdas e de quarta e ele começa a ter dúvidas, não acredita mais em estrela, sorte, mandinga, patuá, parece que tudo deixa de fazer efeito com o tempo, suas roupas estão velhas, ele inteiro está fora de moda, atrasado, obsoleto, (absoleto?), os dentes mais estragados do que antes, pensou em ser playboy uma época, camiseta estampada com cara de importada, carro do ano e tudo mais mas não deu certo, não era para dar, ele que nasceu para uma outra coisa, veio de uma outra fôrma, de uma outra receita, ele que é uma mistura de Caim e Abel, dos dois, um pouco de bicho e um pouco de homem, queria ter calos nas mãos, queria ter as pernas grossas, impor respeito, entretanto o jornal está sobre a mesa, pensa em caminhar para ele, pensa em olhá-lo mais uma vez, poderia ter sido um monte de coisas, poderia ter sido um rapaz popular, instruí­do, hoje acha que sim, sente-se tonto, como um soco do tempo, do tempo que passou e que continua a passar, talvez a vida seja uma eterna fuga, do sol, de outros negócios, deixa a janela, se mexe, volta para a mesa, talvez as casas cresçam, os muros cresçam a cada momento, talvez a cada momento fique mais difícil de se fugir, não dá mesmo pra saber, ele que guarda um rancor até hoje do tio, da tia, do primo, da amiga da mãe, de quem lhe deu sermões e ouvidos também, ele que nunca pensou direito sobre a vida, ah, a vida, uma existência outrora tranqüila debaixo de um teto confortável, uma frase de efeito para quem não o compreendia, e tudo cheira agora a espera inútil, a multidão, a corredor de hospital público, poderia ser médico mas na época não imaginou-se de branco, sonhava mais alto, dizem que tudo ganha clareza com o tempo, altura, e o tempo passa, há tanta gente bem posicionada, com conta no banco, carro, para ele sobrou somente uma janela e as outras janelas que a vista pode alcançar, ele que sempre jogou pra torcida mesmo que hoje nem saiba mais o que com certeza é uma torcida, as manchas no peito que não somem, uma sensação esquisita, boa ou ruim não sabe dizer, olha para o jornal, as letras menores, minúsculas, pensa que nunca virá o tal jeito, a mandinga, o talento, a sorte, pensa que talvez tenha enlouquecido ou quem sabe até já nascera assim, um pouco assim, está com medo, está com fome, a cada segundo com mais fome, fome do mundo, fome de comida, fome de nem sabe o quê, sente-se velho, sente-se só, queria ter músculos, os olhos verdes ou azuis, um cigarro, uma chupada, uma namorada bacana, um futuro garantido, queria encarar o pessoal de uma outra forma e parar com tudo, mudar tudo isso que o cerca, mas nada pára, nada nunca vai parar, e então tudo aquilo recomeça mais uma vez, tudo continua e tudo acaba no começo, com a xícara e o gole de café para ver se ele desperta de uma vez.



(Rodrigo Melo mora em Ilhéus, Bahia, e escreve prosa pra não ser chamado de poeta)







Foto: Ana Lúcia Meinhardt








JANELA POÉTICA (IX)


MORTO DE AMOR

Sérgio Luyz Rocha




Aos poucos fiz-me atmosfera, poeira e relento de uma cidade às escuras; fiz-me tristeza de estátuas cegas dentro de certezas lançadas a anos-luz de direção alguma;
fiz-me felicidade de núpcias numa gula de giz rabiscando de mentiras os dias que sequer passavam;
fiz-me sereno e chuva amazônica destroçando o convés de uma aventura vítrea trincada a cada manhã ressequida no calendário.

Fiz-me prece e cusparada, fiz-me seiva entre as tuas pernas e desapareci no corte profundo da alma calada;
fiz-me poema atirado aos muros num passe de mágica borrifada
e sacrílego caminhei descalço sobre tuas chamas.

Desdenhei teus mistérios e dancei na noite dos nossos encontros feito um morto esperando a lágrima final, o lacre, a pá de cal, o regresso mudo por entre as árvores da alameda principal.




(Sérgio Luyz Rocha é paulistano dos Altos de Santana. Filósofo e educador, escreve porque as palavras assim desejam... )







OUVIDOS ABERTOS (II)

Por Fabrício Brandão


WILSON SIMONINHA – MELHOR





Vez por outra, alguém nos relembra que devemos seguir os imperativos daquilo que realmente desejamos para nós. Mesmo sabendo que reafirmar preferências e consolidar modos de vida não seja tarefa lá das mais simples, algo sempre urge no miolo de nossas vontades, aquilo que vibra como desafio sob a árvore frondosa da individualidade. E escolhas são feitas com base no que pensamos oferecer de melhor. Ouvir o novo trabalho de Wilson Simoninha serve de confirmação para tudo isso. Em seu quinto disco solo, o artista apresenta o resultado da sua vivência musical, tudo traduzido de forma sensível e principalmente madura. Adentrar as faixas de Melhor é perceber que os trilhos encerrados pelo tempo fizeram muito bem ao músico. A canção como É Bom Andar a Pé, por exemplo, parece definir bem o atual momento experimentado por Simoninha, contemplando a serenidade e o olhar sobre as coisas mais simples da existência, temas que se caracterizam como o verdadeiro pano de fundo do CD.

Contando com a produção valiosa de Max de Castro, o disco apresenta um repertório dotado de belos arranjos e letras, além de enaltecer todo o suingue já tão característico do estilo de Simoninha. Rei da Luta, Mareio, Sossega, Balanço e Samba Novo são composições que percorrem com vigor traços fundamentais de nossa brasilidade. Contribuições como as de Jorge Ben Jor, Jair Oliveira e Cláudio Zoli incrementaram ainda mais o álbum. Mas é na canção 26 de Dezembro que Simoninha desfila todo o conjunto de reflexões e reminiscências que o tornaram o homem de hoje, fazendo com que este disco seja, acima de tudo, uma celebração intensa de vida. O ar que povoa a atmosfera de nossa música é espécie reveladora, não se cansa de renovar seus ventos nem tampouco de eternizar o seu nobre convite.





JANELA POÉTICA (X)

Ana Peluso



Ilustração: Ana Peluso



ficava ali tentando adivinhar as coisas

o pensamento fadado entre sim não talvez

e uma pequena sina de ilusão




os olhos descomportados como os de Amy Whinehouse sentenciavam

o au revoir desdado



pegar de volta o que entregou

ouro. a palavra

prata



sondava andares onde espaço-tempo se desfizesse do incognicível

quando ó só é m se somado a tudo. era ali. a consistência da pele

uma em uma milenar sobressaindo às adivinhações



no pulsar das veias todas as possibilidades de quantas




mantinha os olhos fixos

ali

onde se desenhava a vida e onde a vida se acabava





e se alcançava até os santos...




seria o fim

equívoco único da vida

ou nós de rosários contariam de outros?



engoliu o terço.



que a fecundou no terceiro dia


sob os olhos complacentes

de deus e toda a sua côrte


que cantavam You Know I'm No Good



(Ana Peluso, 1966, paulistana, bloga no Babels)



 
publicado por Fabrício Brandão
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