CICERONEANDO
Nosso controvertido espírito humano talvez ainda seja um dos poucos lugares que não se rende facilmente como presas do tempo. Essa grande abstração que empurra as horas, por vezes elevado à divindade, sabe fazer morada em todos os seres, tanto para alimentar ou pôr termo a nossas epifanias. No entanto, virtude maior impera quando fazemos emergir a sucessão natural das sensações por meio daquilo que se revela nas íntimas idades. O jogo de oposições entre o interno e o externo parece ser nada quando percebemos a tênue linha que os pode separar. Para além do óbvio que passeia escancaradamente pelas nossas vistas, importa reter as essências escondidas em tantas existências paralelas e interligadas às nossas. Por mais insones certas manifestações artísticas possam parecer, a verdade é que em muitas delas explode uma exortação à vida. Basta que deixemos as alamedas abertas para as escutas sobre o outro e tudo começa a se modificar em nosso olhar. E as tais visões se renovam nas vozes poéticas de Graça Pires, Beatriz Bajo, Natália Nunes, Felipe Stefani, Josely Bittencourt, Jorge Elias Neto e Victor Oliveira Mateus. Nesse ambiente de entendimento sobre os nossos iguais, conversamos com o escritor André de Leones, feito que nos rendeu gratas revelações sobre a obra e crenças desse autor. Nas linhas de Anne Ventura vislumbramos faces ocultas de nosso cotidiano. Um canto de desapego aporta por entre os escritos de Dheyne de Souza. Os ouvidos se abrem para o belo disco de Iara Rennó e um pequeno tributo ao mestre Cartola. Ante a todas essas valiosas expressões, a arte sensível de Cícero Matos empresta cores e formas à Vigésima Sexta Leva. A você, caro leitor, fica o convite ao nosso acervo de signos!
JANELA POÉTICA (I)
ORTOGRAFIA DO OLHAR
Graça Pires
Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite adentro,
o ruído mitológico das maresias de outono.
Um navegante, sem bússola,
enforca-se no cais dos percursos para sul,
como se rastejasse a paisagem dos sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.
(Graça Pires nasceu numa cidade litoral portuguesa – a Figueira da Foz – onde aprendeu a amar o mar e os barcos e com eles as palavras envoltas na emoção de viver. É poeta e sabe que só a poesia pode absolvê-la de todas as fragilidades)
Pintura: Cícero Matos
AEROPLANO
Anne Ventura
Segure a onda, meu bem!
Ellen Church
Disse seu nome durante a turbulência e eu me senti mal porque ele se chamava Barbosa e tinha medo de avião. Tudo muito desconcertante – lembrei-me da música. Queria rir, mas me contive a consolá-lo. Aviões não caem, ou quase nunca. As estatísticas. No Brasil talvez. Sobrevoávamos alguma parte indistinta da Espanha. Você é de onde? Cabo Verde, falou e apontou quase sem perceber para o meio do peito, como se ali houvesse qualquer mapa em que pudesse me mostrar a localização exata de sua origem.
Eu o havia notado de longe no aeroporto, lia qualquer coisa de menor relevância do que sua beleza exótica. Espionei. O cavanhaque comprido, estilo pontiagudo, era atrativo e repulsa para os que estavam à sua volta.
Eu gostava muito era de conhecer o Brasil. Era o que eu mais gostava, assegurou.
A aeromoça passou apertada pelo corredor estreito. Comprei um cappuccino de 3,50€. O serviço de bordo não estava incluído no preço da passagem (a simpatia tampouco). Ainda tinha sono. 3,50€, meditei, enquanto engolia aquele troço aguado e morno. Barbosa ali ao lado, olhando pela janelinha a possibilidade da morte.
O aeroporto estava lotado e não eram mais do que 5:30h da manhã – fenômeno dos vôos Low Cost vendidos pela internet. Confirmaram o horário de embarque e eu fiz questão de me demorar no toalete, diante do espelho enorme.
Conheço muitos países, ele contou. Vivo cá há quase vinte anos (esqueceu-se de que estávamos nas nuvens). Construção civil, hoje tudo está melhor, aquilo já passou. Tenho família nos EUA, essas cenas, mas no Brasil eu ainda não estive, sabes? Não quero morrer sem conhecer, voltou-se outra vez para a janela. Suas mãos eram suas antepassadas, ele era filho delas. Quis tocar aquelas marcas, deslizei as minhas sobre a borda do copo de papel. Eu gostava era que notasse o meu desejo, tive vontade de dizer.
Analisei aquela merda de água suja que me haviam vendido, 3,50€ é tanto dinheiro, meu deus...
A da torneira estava translúcida e gelada, molhei apenas as pontinhas dos dedos. Não passei batom, não arrumei os cabelos, não escovei os dentes, enfim, não utilizei nenhum dos objetos que trazia na bolsa por segurança. Fiquei apenas admirando minha imagem crua, percebendo como havia parado ali, perdida e solitária naquele porco banheiro de aeroporto francês.
Lembre-se da barba: Barbosa – ele me diria mais tarde, enrolando os fios crespos nos dedos, já bastante interessado em aproveitar a vida que mais uma vez lhe fora poupada pelos céus. E desta vez eu ri, porque a circunstância me permitia.
Mostrei meu lindo passaporte azul, junto ao bilhete, para o homem que decidia quem poderia entrar ou não naquele vôo. Ele coçou o nariz quando viu a minha foto. Eu estava com cara de terrorista ou traficante, alguém já havia me alertado. Mas gostava muito do retrato, figurava soberana.
Prefiro Marselha... É outra cena, pessoas de todos os lugares, uma mistura. Eu achei seu sotaque bonito e provoquei depoimentos. Contou da infância em Portugal. De como os coleguinhas apenas se referiam a ele como “aquele preto”, mesmo sem maldade, por mais que pedisse batismo. Mudou quase nada, queixou-se.
Com 3,50€ uma família inteira come, pensei, ou eu tomo mais de duas cervejas num boteco decadente em Copacabana, debatendo com meu amigo Fernando a pobreza do Sertão. Em Cabo Verde devia ser o mesmo, mas sem Fernando.
Tu também vais a Lisboa? Barbosa voltou do banheiro mais confiante, parecia ter pensado, como eu, diante do reflexo, no que o havia feito parar ali, perdido, num avião barato, ao lado de uma brasileira atrevida. Esqueceu-se da timidez que o fazia quase mudo, derramando sobre mim todo o repertório brasílico-cultural que havia cumulado pela vida. E descambamos numa comovida discussão política que nos servia muito bem ao caso. Lamentando os impropérios de nossas terras, éramos mais próximos e ele me tocava de leve a lã do braço enquanto falava... É muito triste, sacudia a cabeça.
Mandaram-me passar pelo detector de metal, eu nunca me dei bem com eles, nem nos bancos. Chego a desconfiar de que tenho um marca-passo nato. Pi-pi, alguma coisa alertava ao homem de que eu oferecia perigo. O apito, a foto de estampa suspeita... Revistaram-me. É preciso tirar o computador da mochila. Abriram-no. Eu me mordi inteira. Meu portátil, meus escritos. Há cantos em que não nos deixamos tocar. O homem permitiu minha passagem (depois que despojei casaco, cinto e botas).
O sinal de apertar os cintos acendeu novamente. O pouso estava próximo. Antecipei o gosto do presunto na língua. Em alguma cidadezinha gris eu estava sendo aguardada. Senti meu companheiro de viagem se contrair ao meu lado. Aquele preto era Barbosa, tinha um nome no meio da turbulência.
Entrei na aeronave e vi o moço do saguão sentado sozinho. Eu normalmente não teria a ousadia, mas estava intrigada. Havia dois lugares vagos ao seu lado e eu me sentei no que estava mais próximo a ele. Coladinha, com licença. Faz favor. Ele me respondeu surpreso, mas não incomodado.
(Anne Ventura nasceu na ilha de Vitória, Espírito Santo, em 1981. É professora e escritora. Além de participações em algumas coletâneas, é autora de “Enquantamento” (2006), livro de contos premiado pela SECULT)
Pintura: Cícero Matos
JANELA POÉTICA (II)
DANÇA PRIMORDIAL
Felipe Stefani
Quantas vezes vi a loucura me percorrer cegamente as entranhas?
Lavrando do fundo de um corpo sua flor brutal,
libertando
a dança desregrada que atravessa a voz,
recompondo
na noite o ouro intenso onde a lua faz ressaca.
Estou completo em minhas paisagens.
De uma vida inteira absorvo a marcha,
canto as estações abertamente,
tocando com o esquecimento as margens,
que se distanciam
e evocam
toda pureza de uma arte.
Quantas vezes essa loucura corrompeu o último enlace
do medo que se abre ao fim de cada feixe de encanto
no alimento obscuro,
colhido do apuro
das visões imensas?
Toda obra é terrível e sangra
na memória a sua imagem.
No auge insondável desse estrondo,
canto
em volta de uma dor,
o dorso se contorce,
no centro,
multiplicando o gesto,
um eco indefinido devora em travessia
centenas de mundos construídos
e sonhados.
Pois a música se apossa da ébria lentidão do meu engano.
(Felipe Stefani é poeta, artista plástico e fotógrafo. É paulista e tem poucas palavras sobre si mesmo, mas variadas formas de expressão. Já fez de tudo, até biologia, porém foi na arte que encontrou meios de se relacionar com o mundo. Faz parte do grupo Só Desenho. Ilustrou o livro “Teatro das Horas” do poeta André Setti, editado pela Edições K. Tem poemas e desenhos publicados em vários sites e revistas)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
IARA RENNÓ – MACUNAÍMA ÓPERA TUPI
“No fundo do mato virgem nasceu Macunaíma/ Era preto retinto e filho do medo da noite”. A propósito dessas palavras da faixa Macunaíma, os sentidos começam a percorrer o belíssimo disco da cantora e compositora paulista Iara Rennó, trabalho que chama a atenção pelo esmero em torno da construção de um rico ambiente para as múltiplas caracterizações possíveis do principal personagem do escritor modernista Mário de Andrade. Macunaíma, espécie de anti-herói nacional e modelo de um alguém sem caráter, aqui desfila epopéias possíveis e renovadas, revive através das letras de Iara e, o que é melhor, prova a sua absurda capacidade de se manter ainda como um mito vivo de nossa brasilidade.
Definitivamente, estamos diante de um daqueles projetos que mergulham com propriedade na representação precisa das sensações suscitadas pela musicalidade. Some-se a esse trabalho a perspectiva que a própria obra andradiana possibilitou à construção do disco: a de ter em si textos dotados de apelos sonoros, aspecto que impulsionou a composição das canções, todas elas assinadas pela própria Iara. Durante todo o caminho do disco, é possível perceber a presença de gêneros como ciranda, cantigas populares, eletrônica, percussão corporal e até mesmo uma fusão entre o ragga e o hip hop. A intensidade e a beleza fazem morada em faixas como Mandu Sarará, Conversa (participação especial de Tom Zé), Jardineiro, Naipi (canção que encanta pelo elevado lirismo) e Rudá.
Os arranjos são outra virtude do disco, pois há neles uma ampla construção dramática dos ambientes e sensações cantados. Trata-se de uma obra que exala apelos teatrais por todos os seus cantos sonoros, tudo muito bem dotado de signos que se complementam e formam um todo harmônico e especial. Inicialmente distribuído em bibliotecas públicas e trazendo em si o objetivo de servir como instrumento de discussões literárias em salas de aula, Macunaíma Ópera Tupi reuniu vários produtores e aproximadamente 70 músicos, todos comprometidos em consolidar não uma miscelânea de elementos musicais e rítmicos, mas sim algo que pudesse se afirmar como um lugar com cara própria. Uma esfera à parte se instala e, capitaneados pela doce voz de Iara Rennó, somos regidos em significado e alma.
Pintura: Cícero Matos
JANELA POÉTICA (III)
Victor Oliveira Mateus
Nunca soube lançar o pião
como os rapazes no terreiro,
entre os contentores; aprendizes
de ladrões, de proxenetas,
arrumadores. Nunca soube
lançar o pião. Nem puxar-lhe
o cordel entre os dedos
ou içá-lo, rodopiante, na palma
da mão, acima do solo
conspurcado e mudo. Lancei
a minha vida, os meus
sonhos. E foi tudo.
(Victor Oliveira Mateus, natural de Lisboa onde reside, é licenciado em Filosofia, abandonou recentemente o ensino dessa Disciplina para se dedicar apenas à escrita, tem publicados: quatro livros de poesia (e um no prelo), um romance, traduziu, prefaciou e anotou Safo, S. João da Cruz e Voltaire. A sua poesia e alguns textos de cunho ensaístico encontram-se dispersos em antologias e revistas de cultura de Portugal e do Brasil)
PEQUENOS FINS OU UMA CANÇÃO DE DESAPEGO
Dheyne de Souza
Quero cobrir-te o rosto de adeuses, riscar nas linhas de tuas maçãs pecados nunca inclusos, roçar tão de leve tuas resistências e partir tão suave teus soluços de infância, tuas queixas dormidas em becos escuros, tuas angústias franzidas em velas de alecrim, tuas ironias frágeis, oscilantes, os vãos dos objetos caídos de teu colo, como pérolas no leite, folhas secas no outono, feito camaleão na tua pele escorregarei baixinho despedidas bem sutis. Para que não te apercebas do sono vívido e do calor solitário que a madrugada traz, o frescor inválido mas frescor, a luminosidade que às vezes a lua veste, tão sorrateira correrei tuas veias como um rio que vigia esperas, comuns lírios pregueando teus cílios, como madeixas te soprando o dorso. E não verás em meu rosto teus olhos fechados, e não terás imagens nem poesia nem noite senão uma lembrança apagada e insônia. E mesmo quando, por último, te colar os lábios derramando fins em um silêncio gordo, não ouvirás nem leve o meu sussurro mudo gritando aos urros a falta de aldravas, cairei à porta
exausta
de desapego.
(Dheyne de Souza escreve principalmente poesia, também desenha e pinta. Está em Goiânia e no ambiente de Histórias Possíveis)
JANELA POÉTICA (IV)
Natália Nunes
cai poeira da sinceridade
que outrora usamos
na manteiga dos corpos
para a matriz de fazer amor
quebro reflexos nos dentes
porque escorre caos e mosto
e o hálito de todas as vestes
é engodo, o mundo da sua carne
bóia em danos, dementia!
mas há coisas que ainda teimam
em nascer, flor
(Natália Nunes autocria-se na palavra, mãe que é do mundo. Não que escreva: bate asas, vive, e, se ri ou se lágrima, sobram letras – que precisam sair, entrar em queda livre, ser coisa no mundo, precisam. É de Belo Horizonte por nascença, e é mulher que assim se exerce)
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
O olhar se debruça em torno da cidade verdejante, traço que, sem dúvida alguma, ajuda a aliviar as imagens tomadas pelo concreto invasivo de qualquer capital que se preze. Estamos em Goiânia e, entre ruas e avenidas sortidas pela profusão de gente e calor, buscamos um encontro. Quem nos aguarda vem de um ritual pessoal de procuras livrescas, devotando parte preciosa de seu tempo reflexivo à nobre companhia do universo de um sebo. Roteiro cumprido, o escritor goiano André de Leones agora está diante de nós, fazendo jus aos gratificantes achados humanos que inicialmente se travam no ambiente difuso da internet. O espírito descontraído do autor vem se juntar a tudo aquilo que imaginávamos para a materialização do encontro. Simplicidade e uma capacidade voraz de verbalizar o pensamento se apresentam como traços imediatos desse jovem autor que, desde cedo, transformou visões particulares e sensíveis de mundo em palavras que atravessam as mentes dos leitores de forma atemporal e despida de lugares-comuns.
Seu livro de estréia, Hoje está um dia morto (Ed. Record), ousou muito mais do que ser reconhecido com o Prêmio SESC de Literatura 2005. É uma obra que chama atenção para algo que se encontra cada vez mais ofuscado pela pressa e superficialidade tão presentes em nossos tempos, qual seja a capacidade de percebermos a si mesmos e ao outro naquilo que realmente importa. E talvez ainda falte a muitos escritos dispersos por aí essa preocupação com uma certa transformação do olhar pela leitura, algo que remeta a um equilíbrio maior entre o que dizemos que somos e aquilo que efetivamente podemos ser. De fato, não há muita utilidade em imensos volumes de livros guardados de forma religiosamente intocada nas estantes do mundo. E quando falamos em algo intocado é porque não fomos capazes de deter as reflexões úteis pelas quais tanto clamam nossas inconstantes almas.
Dias depois daquela nossa primeira reunião, André nos acolhe com suas visões sensíveis. A conversa que agora se trava acontece em meio às expectativas para o lançamento de seu mais novo livro, Paz na terra entre os monstros (Ed. Record), obra que reafirma o compromisso do escritor com as delicadas nuances de nossas humanas idades. Por aqui, ficam os registros em torno da vida que precisa explodir, sobretudo em como devemos prestar especial atenção ao que nos rodeia. E quem nos cerca, por vezes silentes, são outras tantas vidas que, no fundo de um misterioso espelho, compõem-se da mesma e inexplicável substância.
André de Leones
Foto: Lívia Ramirez
DA - Seu primeiro livro, “Hoje está um dia morto”, dentre outras características, prima por uma precisa e peculiar incursão em torno do comportamento da juventude, sobretudo quando se trata de existências que acontecem numa pequena cidade. Quanto de autobiográfico existe nesse seu olhar cujas origens remetem aos ambientes interioranos?
ANDRÉ DE LEONES - Muita coisa. Há muito de mim em Fabiana, por exemplo, e também em Daniel, o narrador. O colégio que aparece lá é o mesmo no qual estudei e lecionei. E a angústia que permeia a narrativa, aquela “tristeza ancestral”, bem, isso está no meu DNA.
DA - No livro é possível perceber a presença viva de uma descrença que permeia a chamada pós-modernidade, sentimento que, inclusive, não abarca somente os mais jovens. A que referências você se apegou mais para conceber essa abordagem?
ANDRÉ DE LEONES - Acho que, basicamente, eu olhei e continuo olhando ao redor, ouvindo e observando as pessoas. Amigos meus cometeram suicídio. Outros flanam por aí, sem rumo. Estamos todos perdidos, não? Escrever sobre isso é buscar não um “reencontrar-se” ou um “reencontrar o outro”, mas conferir algum sentido, mesmo que “apenas” estético, ao caos que nos define e define o mundo em que vivemos.
DA - Diria que sua escrita se alimenta de uma certa obstinação pelas complexidades humanas?
ANDRÉ DE LEONES - Sou obcecado pelo outro, pela alteridade. O ser humano me absurda e me apaixona ao mesmo tempo.
DA – Vez por outra, presenciamos imensas tolices em matéria de crítica literária, inclusive com gente que chega a afirmar que sequer subsiste uma literatura contemporânea de qualidade. Em sua opinião, essa parcela da crítica brasileira é míope por vocação ou apocalíptica sem propósito?
ANDRÉ DE LEONES - São apenas desinformados. Eles, de fato, não conhecem boa parte do que está sendo produzido, sequer ouviram falar de escritores talentosos como Wesley Peres, Carola Saavedra, Maira Parula, Adriana Lisboa e Flávio Izhaki. Daí a tecer esse tipo de comentário imbecil é um pulo. Mas eu jamais diria, em contrapartida, que não há uma crítica literária contemporânea de qualidade. O que acontece é que, como em toda e qualquer atividade, há os imbecis. O lance é ignorá-los.
DA - Escrever é mesmo ofício para poucos?
ANDRÉ DE LEONES - Escrever bem, sim. É o resultado de muito trabalho, estudo, dedicação, disciplina. Ainda há os que consideram o escritor uma espécie de “iluminado” tocado por um troço mágico chamado “inspiração”. É um ofício, uma ocupação, com a diferença que se trata de algo essencialmente subjetivo, é claro. O pai de um amigo meu construía pontes. Um autor como Wesley Peres constrói epifanias. Todo mundo sabe para que serve uma ponte. Agora, o que você faz com uma epifania? Cada um processa esse tipo de coisa de uma maneira diferente, e nisso reside a beleza maior.
DA - Certa feita, Machado de Assis assinalou que o que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Como você percebe essa dimensão que atravessa o fazer literário?
ANDRÉ DE LEONES - Ao escrever, não importando o que esteja escrevendo, o autor deve, de alguma maneira, sentir a História pulsando ou permitir que Ela pulse por meio do que ele escreve. Ele se conecta com o seu tempo, explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente.
DA - Deixando de lado velhas estruturas narrativas engessadas e até mesmo inócuas, esse trato íntimo serviria como um fator de aproximação maior com os leitores?
ANDRÉ DE LEONES - Sim, caso muitas e muitas pessoas não vivessem alienadas dos outros, de seu tempo, de si mesmas, da própria História. A literatura resiste, mas a maior parte das pessoas perdeu essa dimensão, essa capacidade de enxergar as coisas ao redor. O ser humano está perdendo a capacidade de pensar sobre si e sobre os outros. Temos um sistema educacional falido, que desprepara as pessoas para qualquer atividade reflexiva, como se esse tipo de coisa não tivesse mais lugar no mundo contemporâneo.
DA – O momento atual lhe reserva o lançamento do seu mais novo livro, “Paz na terra entre os monstros”, reunindo contos e uma novela. Nele você retoma o mergulho psicológico construído no seu primeiro romance, abordando desventuras e constatações das personagens. É difícil cicatrizar essas feridas expostas na alma humana?
ANDRÉ DE LEONES - É impossível, uma vez que essas feridas são a própria alma humana (risos).
Pintura: Cícero Matos
JANELA POÉTICA (V)
UM POUCO ANTES
Jorge Elias Neto
Um pouco antes do desespero
entregarei as cartas;
não estas falsas memórias
principiadas em momentos de luxúria.
Somente a coragem de um moribundo
permite alguma crueza nas letras.
Talvez eu comece a entender Rimbaud
diante de meu cadafalso.
Por enquanto, tudo é entretenimento;
só cuspe e falsidade.
As cores são vivas e fortes
em meu semblante de camaleão.
Ao menos não me persigno;
não faço falsas preces.
(Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador e poeta. Reside em Vitória, no Espírito Santo. Publicou os livros “Verdes Versos” (Flor&cultura ed. - 2007) e “O estalo da palavra” (inédito). Tem participações nas revistas eletrônicas Cronópios e Diversos Afins. E-mail: jeliasneto@gmail.com)
Pintura: Cícero Matos
APERITIVO DA PALAVRA
Por André de Leones
Beijando Dentes (Record), livro de contos de Maurício de Almeida. Eu li e reli e. O que acontece? Se eu tivesse de comentá-lo (talvez eu tenha, não sei) junto ao balcão do Bar da Dona Geni aqui em Sylvannya-Goyaz, ora, o que eu diria? Rascante. Não sei se as narrativas do Maurício são góticas, punks ou coisa parecida. Sei que elas são rascantes. Exemplo (página 9): “Suspendeu os ombros contraídos, afrouxou as panturrilhas e arrastou os pés num desânimo de séculos”. É o tipo de coisa que pega, e nem sempre de imediato. Eu li e reli e achei bom, muito bom, e depois, dias depois, de pé no meio da cozinha (esperando o café ficar pronto), a coisa bateu. E daí eu pensei
Daí eu fui até Lúcia Bettencourt e seu Linha de Sombra (Record). Ali, uma tristeza algo domesticada, mas nem por isso menos incômoda. Elegante, sim. Tanto Maurício quanto Lúcia exibem um tremendo rigor formal. A diferença entre eles talvez esteja no tom. Lúcia fala baixo, de dentro da gente, a boca cheia de perdas. Maurício fala grosso, voz embargada aqui e ali, a boca cheia de terra. Em ambos, com a licença do senhor Wesley Peres, um inferno inteirinho em cada palavra.
(André de Leones é escritor e foi lá e voltou)
JANELA POÉTICA (VI)
TEZ
Josely Bittencourt
É à hora carbôni-
ca e o sol em mormaço
entre sonhando e insone.
(O Jogral e a prostituta negra, Décio Pignatari)
O dia ilude o sol
E restitui palavras
Sólito ritual
Em contorno grego
Gregorias pontes
E poetas
De província
Às máscaras e flores
Dedico Meus risos
E todos os riscos
De amarga fama
Algum delito
Onde deito
Meu corpo sujo
Que pulsa
Opaco de certezas
Sob o mesmo
Impor do sol
inter fetiches
do falso peso do tempo
(Josely Bittencourt é mineira (quase capixaba). Professora de Língua Portuguesa que adora um cafezinho. Mas tem o hábito de tecer poemas nas horas mais incertas)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Fabrício Brandão
Linha de Passe. Brasil. 2008.
O ambiente complexo de uma grande metrópole agrega bem mais do que contradições e um habitual turbilhão de seres. A rotina impõe a cada habitante um modo despercebido de vida. De nada importa saber daquele que espera perdidamente num ponto de ônibus qualquer ou do que cruza ruas carregando em si roteiros silenciosos para cumprir. Do mesmo modo, a quase ninguém parece significar idas e vindas dos transeuntes sem rosto, todos indistintamente mergulhados no caldeirão informe de asfalto, concreto, tensões, pequenos gozos e dores. O sentimento que pontua com precisão toda essa amálgama de esterilidades humanas chama-se solidão, manifestação viciadamente compartilhada ao nível do coletivo. No meio disso tudo, pulsa uma colossal São Paulo, amplamente conhecida por devorar os seus filhos e os filhos dos outros. No microuniverso de uma família de baixa renda, escassas estão também as tão famigeradas esperanças quando os olhos perpassam Linha de Passe, mais recente trabalho dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas.
O filme devota as atenções para o cotidiano de 5 pessoas: mãe e 4 filhos cujos destinos correm paralelos em desventuras. Em cada um dos motoristas de ônibus duma impessoal metrópole paulista, Reginaldo, o caçula, busca fantasiosamente um rosto para seu pai. Dario, personagem de Vinícius de Oliveira (Central do Brasil), sonha todos os dias em se tornar jogador de futebol profissional. O mais velho de todos, Dênis, vive as tensões cotidianas cruzando as grandes vias da cidade em torno do duro ofício de motoboy. Um fervoroso e angustiado Dinho divide seu tempo entre a igreja e o trabalho num posto de gasolina. E à frente dessa família está Cleusa que, além de ganhar a vida como empregada doméstica, espera o quinto filho. Aqui cabe destacar a atuação da atriz Sandra Corveloni no brilhante papel da matriarca, feito que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes 2008.
Longe de cair no lugar comum de um tema tão recorrente quanto o dos conflitos gerados pelas mazelas econômico-sociais, Linha de Passe constrói sua narrativa ao redor de certas dualidades que coexistem ativamente em nosso meio. A incursão psicológica no íntimo dos personagens pontua a sucessão de acontecimentos cruciais para a definição da linha de conduta dos membros daquela família. Esperanças, hesitações e contradições povoam insistentemente as mentes e ações de todos os envolvidos. Descrença, religião e futebol estão fundidos num mesmo ambiente onde, aconteça o que acontecer, a incontornável sucessão dos dias surge como um mero pano de fundo. E aqui retomamos a sensação apresentada nas linhas iniciais do texto, qual seja a companhia perene da solidão naqueles que estão fisicamente muito próximos. Se a cada um é dado cumprir o seu papel face a um mundo que tanto aponta para um tudo quanto para um nada, do mesmo modo o ato de atravessar as horas é tarefa essencialmente celibatária. Quando se percebe essa condição, tornamos ao ponto inicial de nossas existências e logo ali, adiante, num desconhecido itinerário, depositaremos nossa real substância, nosso pó.
JANELA POÉTICA (VII)
LEITURA
Beatriz Bajo
dedos sobre folhas ansiosas em se fechar
pele sobre palavras sobre pretéritos
digitais que se fixam entre as pretas tintas
na página 44 duas pessoas procuram um lápis
e eu as esquadrinho entre as frases de antes
sujeitos de papel que me olham sem olhos
de cá fora e eu as vejo sem enxergar
pelas retinas, numa busca mais pra cima.
(Beatriz Bajo é paulista. Poeta, escritora, professora de língua portuguesa e literatura, especialista
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
CARTOLA – CARTOLA 1974
Dos céus caíam sobras de cimento e outras tantas idéias. O moço, oficiando num canteiro de obras, protegia-se com um chapéu-coco. Inevitável se livrar do apelido que o seguiria por todo o sempre. E nem mesmo a lida dura dos dias foi capaz de sabotar o que o talento reservava para Cartola, civilmente conhecido como Angenor de Oliveira. O ano presente coroa o centenário de nascimento daquele que foi o verdadeiro poeta do samba, cujas letras retratavam com maestria sentimentos evocados em torno do amor e das coisas singelas da vida. Cartola, lançado quando o compositor já contava 65 anos de idade, é o primeiro álbum do sambista, disco que desfila com beleza e intensidade letras que contribuíram para firmar o artista como gênio absoluto do gênero.
Desde Disfarça e Chora, passando por Sim, Corra e Olhe o Céu, Acontece, até chegar à última faixa, Alegria, o disco agrega uma intensidade lírica que justifica o título nobre de poeta do samba ao compositor. Uma atmosfera de constatações lúcidas sobre os percalços amorosos rege boa parte das canções, construindo uma espécie de romantismo que, apesar das dores do caminho, credita ao sentimento um lugar que não admite mágoas, mas sim perspectivas de um seguir adiante. Prova disso está na memorável faixa O Sol Nascerá, canção que cultua a esperança através do sorrir. Mais à frente, deparamo-nos com o transbordar da belíssima Alvorada, música que congrega todo um morro a celebrar a felicidade de existir. Entre os arranjos, regados a um preciso equilíbrio entre cavaquinho, flauta, violão de 7 cordas, pandeiro, surdo e cuíca, habitam os verbos de Cartola. Para ouvir bem o artista, é necessário certo desprendimento e leveza. Aqui, a receita maior para se atingir o alvo sensível de nossas escutas mora na simplicidade, pureza que em nada se assemelha à mediocridade ou atributos simplistas. Desatando os pesos da alma, resta muito a celebrar. Salve, Cartola!
JANELA POÉTICA (VIII)
CISMA
Leila Andrade
o lado de fora brilha
o de dentro fica
cismado em sua minúcia
na ausência de luz
imagina apenas
ser luz como lá fora
deveras eterno por dentro
SENDA
Fabrício Brandão
O amor? Pássaro que põe ovos de ferro
João Guimarães Rosa
No começo eram apenas dois. Depois foi só deixar correr aquela vontade solta de saborear outras almas sem fim. Mas não vale a pena esquecer que todo o começo é bom, deposita suas tímidas oferendas naquela prateleira onde tudo o que se espera é ouvir a parte boa dos enredos vividos, mesmo que nada ou ninguém tenha existido. Terminadas as frases graciosas, restou um dia branco qualquer por reiniciar misturado a promessas de carne eternas. O cheiro que fica é igual a gente dispersa feito presa do tempo, aroma do etéreo que só acaba violado quando se descobre que tudo se deu às avessas. Mas é que os dois detestavam a velha mania circundante de ouvir tolas sabedorias sobre o efeito das repetições. Um jamais confessou isso ao outro. Mentiras desmistificadas acabam tirando a graça do ainda se estar ali.
O que o outro amava no um era a capacidade tácita de acolher pactos desavisados. Poucos verbos resolviam as questões mais urgentes, enquanto desejos estrangeiros escalavam muros altos em busca do jardim alheio. Não foram raras as preces tecidas com olhares que imploravam por um pequeno relance de pele, boca, gestos e sons, coisas todas as quais só faziam sentido quando o gozo explodia encurralado num beco escuro da mente. Gente junta é algo sem conceito mesmo. Até orgasmos podem ser catalogados em diários compulsivos de culpa. Além dos dois, sempre existiram outros tantos e mais, gêneros inconfessáveis, hordas de desconhecidos adornados com as vontades de fuga. Qualquer toque ao acaso entre novas retinas era suficiente para adestrar um sentimento ainda sem nome. Depois dos dois, uma sempre acesa ciranda de rostos vem e fica, marcas e estreitos caminhos, tudo escorregando entre dedos.
* As telas do baiano Cícero Matos atravessam aquilo que podemos chamar de o sentimento das cidades, no qual uma profusão de signos e expressões mescla, a um só tempo, as edificações de nossa civilização com feições humanas daqueles que respiram por entre os lugares. À sua “desinvenção” do mundo, pautada no olhar sobre o qual cores e traços se entrelaçam intimamente, explode o que o artista batiza de Papagaísmo. Muito de sua memória artística percorre imagens em torno de Jacobina, na Bahia, cidade que impulsionou as visões essenciais de seu trabalho. Em Cícero, detemos as conexões entre olhar e história, delegando um valor diferenciado à memória. Inexistem na arte dele os rigores que perseguem obstinadamente uma representação do real. Pulsa como força criadora aquilo que só é possível perceber quando vislumbramos as fronteiras além-matéria.