30 de set. de 2009,18:00
TRIGÉSIMA SÉTIMA LEVA


Foto: Kilian Glasner









CICERONEANDO



Percepções são muitas, incessantes hoje. Talvez tenha sido sempre assim, mas agora podemos captar e difundir tudo em tal velocidade frenética e sem temer o tempo, senhor dos desígnios. A luz alegre da primavera, sim, esta deveria ser sempre um guia pelos cantos escuros e indóceis que devassam nossas vidas. Os silêncios teimam em nos perseguir, sacodem nossas mentes conturbadas, humanas, desejosas e inconstantes. Mas a certeza de novos caminhos inevitavelmente sopra e acaba por mover essa vontade doce e cheia da nova estação em direção a mais um encontro carregado de singularidades. Estamos atentos e o encontro com a particular expressão do artista plástico e fotógrafo Kilian Glasner nos faz penetrar em uma cidade jamais imaginada. Nydia Bonetti nos fala de uma inusitada melodia, Bruna Mitrano, da porção diária nossa de cada dia e Larissa Mendes, da suavidade do amor. O olhar aquilino de Celso Serpa nos traz Waldick Soriano num Drops extremamente contundente. A voz do escritor e médico Jorge Elias Neto revela-nos, na Sabatina de então, o desafio de abrigar poeticamente as complexidades encerradas na alma. Em versos, os artesãos da palavra Aleph Davis, Fao Carreira, Nilson Galvão, Wilton Cardoso e Marcos Pasche nos conduzem a saudades, existencialismos, amarguras e tantos outros sentimentos tão típicos de nossa inquietude. Na busca de escutas renovadas, a vida gira sonora nos discos de Otto e Filipe Catto. Não faltam vias a serem percorridas e, a cada Leva que nasce, permanece intacta a vontade de transmutar o mundo em signos. Falamos de infinitos desejos. Rendemo-nos aos mistérios da vida.



*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.






Foto: Kilian Glasner







Fach


Nydia Bonetti


quem me vê cantar, não sabe - do tom grave do meu olhar sobre a vida. dos agudos, das descabidas aflições, dos semitons cromáticos - não sabe. do cansaço vocal, das dissonâncias extremas, da rouquidão antiga. das asperezas da garganta, do gengibre mascado, do coração desafinado, do mel - não sabe. sabe só, da melodia que escapa, pela fresta do verso - semi-aberta janela - única. onde tudo mais é silêncio.



Fach: a classificação alemã em "fach" foi criada pelas casas de ópera da Alemanha pamra definir estritamente os papéis aos quais um cantor poderia se dedicar, sendo assim mais que uma categoria de voz, mas também de repertório.



(Nydia Bonetti nascida no interior de São Paulo, onde reside. Engenheira civil e poeta. Tem poemas publicados na Revista Zunái e outros sites culturais e literários. Tem como projeto o lançamento de dois livros de poesia. Num deles, pretende reunir a série “Poemas do Caderno Azul” ou “Poeminhas”, da sua primeira fase. No outro, ainda sem título definitivo, textos mais recentes e inéditos, de uma nova fase. “Porque sonhar é fundamental, continuo sonhando”)









Foto: Kilian Glasner










JANELA POÉTICA (I)



Amor & Saudade


Aleph Davis



o amor com dentes de maçã

em nódoa de beijo mordido

a saudade como febre terçã

na lonjura do delírio ardido


são sóis espirais de veneno

em vertigem de olhar fatal

são fúrias de abismo pleno

na nostálgica verve do mal


quando há demasiado amor

não chegamos a ter saudade

ela é que nos tem ao dispor


quando é demais a saudade

não chegamos a fazer amor

ele é que nos faz à vontade




(Aleph Davis é um poeta e/ou louco paulistano desde 1979. Estudou História e Jornalismo para transcrever do espelhabiríntico universo o Ser livre. Inventou os quiméricos catatais “Não Fique São”, “Ficções Paralelas & Visões Para Lê-las”, “Apocalipsis Literis”, “Cirandarilha”, “Ontologia Profética”, “Cânone Acidental” e “Jardim do Idem”. A fronteira espaço-temporal para quandonde ele começa é o portal Não Fique São)









OUVIDOS ABERTOS (I)


Por Fabrício Brandão



OTTO – CERTA MANHÃ ACORDEI DE SONHOS INTRANQUILOS






Se há algo que marca a sonoridade do pernambucano Otto é a capacidade de explorar permanentemente um universo de possibilidades com feições peculiares, porém sempre renovadas. É como se o texto, umas das forças marcantes do trabalho desse artista, reverberasse intenso rumo ao caminho misterioso da vida para se espalhar fragmentado e mesclado dentro de quem esteja disposto à descoberta. Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, como o próprio nome sugere, traz em si um fluxo de inquietações poético-existencialistas. O que se vê no álbum não é um descarregar gratuito de impulsos meramente perturbadores, mas sim uma apreensão detalhada e sentida de como podem ser os recortes múltiplos daquelas coisas que nos atravessam sem pedir licença.


Depois de nos ofertar álbuns impactantes como Condom Black e Samba pra Burro, Otto dá continuidade aos seus trilhos musicais sem receio algum de ser cobrado pelos desafios envoltos nos atributos da novidade. Sua pegada continua a mesma, sobretudo quando o assunto é a presença marcante de suas raízes nordestinas. Não temos aqui o homem manguebeat de outros tantos momentos de outrora. No entanto, o novo instante projeta Otto como um artista preocupado com o diálogo que se origina nos becos da alma humana. O disco mostra beleza quando prestamos atenção nos arranjos orquestrados de Crua, nas palavras impactantes de Leite e na intervenção poética sentida em Meu Mundo. Mais adiante, soa agradável deixar passear os sentidos por entre 6 Minutos e pela acertada releitura de Naquela Mesa. Não bastassem as virtudes todas, o espaço também é compartilhado com preciosas participações de gente como Lirinha, Céu e Julieta Venegas. Expelindo o pathos, nosso palco de conflitos e embates, somos apresentados a um disco que não apazigua incômodos. Com a certeza dos vestígios não impunes, os sentimentos sempre tatuarão nossa desavisada pele.









JANELA POÉTICA (II)




A Prostituta

Fao/96






AMOR NÃO SE PLANTA EM VASO

Fao Carreira



Dois dedos de esquina

Quimera era uma fruta fria
E o medo de mostrar a pele detalhe
da luz

os dentes sujos da tinta do vinho

O sexo em desalinho
como convêm

Sol com a luz do poste

Às vezes meus olhos ficam cheios
e sujos imundos
é quando vou pintar
Desembaçador de pára-brisa

São seus dois brincos cor de tinta

Carimbo de mordida faz desenho
quase nada no que eu faço e

da saudade não se cobra o cento.



(O paulista Fao Carreira é artista plástico e formado em Letras. Extremamente original em linhas, palavras e cores, deixa evidente em seus traços uma essencial liberdade, um teor lúdico, além de impressionante poder criativo. Uma certa irreverência sutil percorre o traçado de suas imagens, mostrando-nos que, por trás do humano, existem outros tantos mistérios governados pela alma)










Foto: Kilian Glasner








VERÃO


Bruna Mitrano



Caneca descascada, café com leite, garrafa térmica amarelada, café bom. Tirar a nata que bóia. Cheiro bom de café bom. O menor dorme todo torto no sofá (mosquito pega de jeito, o ventilador parou de funcionar de repente). Final do ano, colocar ventilador de teto. Teto em alto relevo, vazamento na casa de cima, chão da sala de cima todo quebrado. Os homens estão consertando. O vizinho chega, pão e a margarina, foi rápido, de bicicleta. O menor dorme, mamadeira na mão, suco de groselha, que pinga no peito. É grande pra mamadeira, não larga, vai ficar com os dentes tortos. Os homens descem, tomam banho de mangueira no quintal e entram molhados, levam esporro. Ninguém dá valor ao trabalho dela! Vai sumir um dia, largar tudo, casar com homem rico, é bonita. Mas ela fica. A mesa posta, margarina e brinquedos do menor. Os homens de pé, café puro, copo americano. Ela sentada toda elegante, saião preso no busto e tinta secando no cabelo (é a mais bonita do bairro, o Gomes disse), corta meio pão, faca cega, tá de dieta, perder barriga, melhor que sobra mais, os homens comem muito e continuam magros. Ela, primeira golada, café com leite frio já, chamam no portão, ela, é Angélica, veio pegar esmalte emprestado. Angélica senta no sofá, tá gorda, interrompe um sonho. Mais um copo, menos um pão, ela tem que fazer as contas. O vizinho liga a tevê, pastor pregando, tevê abençoando o lar, ela fala baixinho “glória a Deus” pra não acordar o menor. Deus empurra o sol. Hora dos cupins, tem que desligar a tevê, uma pena, apagar todas as luzes, janela não fecha, vidro quebrou. Silêncio, cigarra lá fora. Suor. Suor. Escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, deixa até a bunda molhada. Cheiro de café, cheiro de suor. Final do ano: ventilador de teto.




(Desde criança, Bruna Mitrano é viciada em recordar situações que nunca existiram; por isso (e por outros motivos mais relevantes, que não saberia explicar) escreve, para torná-los reais, de alguma forma. Não tem nenhum livro publicado)









Foto: Kilian Glasner









JANELA POÉTICA (III)



Eu vejo aquém


Nilson Galvão



Você não sabe, eu vejo aquém,

aquém da minha pele.

Você não sabe, eu sei.

Pode ver o que eu não vejo, ver além,

mas aqui, de onde estou,

eu vejo assim.

Enxergo fósforos acesos aqui dentro,

faíscas infinitesimais

que podem bem ser o estopim

do próximo big bang.

Você não sabe, eu sei

o que explode antes

de sair.



(Nilson Galvão (1969), jornalista e poeta, acaba de lançar o livro Caixa Preta, pela coleção Cartas Bahianas, da P55 Edições. Recebeu a Menção honrosa no Projeto de Arte e Cultura Banco Capital, Ano VIII – Poesia, em 2009. Acredita mesmo que a poesia triunfou, porque os homens precisam da sua carne alucinada!)









Foto: Kilian Glasner










PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Fabrício Brandão



De quantos modos e razões é feito o ofício tortuoso do poeta? Talvez a resposta para tal questão não se abrigue em ávidas conclusões que urgem em atropelar o tempo certo das coisas. Enquanto alguns defendem a ferro e fogo a importância da preservação dos cânones tradicionais, outros, aliados a uma apropriação particularizada do termo contemporaneidade, preferem investir nos recursos puramente subjetivos, privilegiando uma noção peculiar de liberdade criativa. De um modo ou de outro, as dissensões podem até contribuir para um ambiente de provocação no sentido de firmar bases para a construção de um entendimento dos rumos desse complexo gênero literário. Para os que acreditam na existência de um fosso a separar as diferentes gerações de poetas, resta o desafio de observar e interagir com os novos movimentos no sentido de captar ali o que de melhor lhes possa interessar. Definitivamente, soluções simplistas não são capazes de suplantar os benefícios que a pesquisa, a observação atenta e a leitura são capazes de promover no seio desse debate.


Mas eis que há um momento sublime em que os recursos da sensibilidade são ferramentas necessárias para vislumbrar outros horizontes para a poesia. Percorrendo atentamente os meios mais variados, encontramos gente disposta a não somente cultuar o ritual necessário da palavra, mas também firmar posições em torno de um aprendizado constante. Tais adjetivos se encaixam bem na veia criativa do escritor capixaba Jorge Elias Neto. Homem cujos versos abraçam imperativos incisivos da tônica existencialista, Jorge passeia pelo manejo poético sem jamais negligenciar o delicado fio que recobre a substância da qual somos feitos. Nele, confundem-se as feições de poeta e médico, conjunção que movimenta a matéria-prima impulsionada pelas observações de um sopro limite da vida. O autor de Verdes Versos (Flor & Cultura Editores, 2007) não se exime do mundo, pois viceja a condição de jamais se apartar das questões urgentes da alma humana. Em fase de preparação de seu mais novo rebento, intitulado Rascunhos do Absurdo, Jorge Elias gentilmente acolhe as nossas indagações, propondo uma exposição mais do que lúcida sobre os temas afeitos às suas percepções literárias.




Jorge Elias Neto

Foto: arquivo pessoal






DA - Pelas teias intricadas dos versos, o poeta mais parece disposto ao arremesso de si mesmo face a um mundo que estranhamente equaciona levezas e densidades. Como é que você percebe esse jogo de complexidades a serviço da criação?


JORGE ELIAS NETO - Quem responde essas questões é alguém que transita entre dois mundos com suas respectivas linguagens.


O exercício da profissão de médico faz com que me sinta mais confortável, utilizando um vocabulário voltado para a discussão de questões médicas. A faceta poética é exercida de forma solitária e com seu linguajar singular. Costumo dizer que minhas percepções – e é disso que vou tratar aqui – são melhor entendidas através de minha poesia.


Respondendo a sua pergunta, faço parte do grupo de poetas suicidas covardes. Por não termos dado o salto, usamos da riqueza de estarmos vivos, das relações humanas, dos traços de singelo que conseguimos identificar com nosso olhar.


O poeta trata de dar leveza à queda.


Como escreveu José Paulo Paes: “Se os poetas não cantassem o que teriam os filósofos a explicar?”


A poesia começa assim


Emprenhar-se de miudezas;

deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros.

E quando a luz se aperceber, desmembrada

pelo estalo da palavra,

xxxxxxxx jogar-se nos trilhos

xxxxxxxxxxxxxx para salvar a flor



DA - Desde Verdes Versos e passando por outras vias de seu ofício poético, o leitor é embalado por uma atmosfera marcantemente existencialista. O quanto essa varredura da alma humana é fundamental para você?


JORGE ELIAS NETO - Em Verdes Versos, eu tinha a ideia de compor um livro centralizado na questão ambientalista – fico atônito diante da imbecilidade humana no manejo com seu entorno. Quando finalizei o livro, vi que ele possuía um segundo pilar existencialista.


O retorno à poesia coincide com o momento que percebi uma necessidade premente de rever minha condição de homem.


Em silêncio, reservei um pouco de tempo na minha rotina profissional para retomar a leitura de textos não acadêmicos.


Esse eterno repensar e repesar a vida e a contradição humana é a essência de minha poesia.


A poesia é um unguento que aplico sobre minha alma em momentos de melancolia. É natural, então, que nela fiquem impressas minhas meias-verdades.



DA - De que modo o exercício da medicina, com suas noções que atribuem à vida um sentido muito próximo do limiar, está imerso na suas visões literárias?


JORGE ELIAS NETO - Não idealizo o médico. O vestir-se de branco pode ser, muitas vezes, apenas uma fantasia, parte de uma alegoria usada com um objetivo prático. Digo isso por ter sempre meu foco voltado para o homem.


No meu caso, a medicina possibilitou um enfrentamento sem rodeios da morte, estar frente a frente com a verdade básica da vida. Um tudo ou nada que o menino poeta já ambicionava desde a infância.


Não tem como toda essa vivência não permanecer povoando meu inconsciente, gerando indagações, propondo leituras que me ajudem a enfrentar o absurdo de estar vivo.


Para aqueles que não entendem um médico poeta (a não aceitação que o indivíduo seja multifacetado é, para mim, um traço da sociedade contemporânea), eu pergunto: a quanto dista o zelo do cientista do abuso apaixonado do poeta com a palavra?



DA - A poesia contemporânea parece estar atrelada a uma noção menos formal das coisas, sobretudo quando privilegia apelos essencialmente subjetivos. Em sua opinião, que espécie de desafios essa ruptura encerra?


JORGE ELIAS NETO – Realmente, tenho observado uma nítida tendência a se privilegiar, a se enaltecer o poema com traços subjetivos, que “brinca” com as palavras.


Como leitor, respeito as múltiplas facetas da poesia contemporânea, mas vejo nela muitas lacunas e imperfeições que tornariam um erro qualquer ruptura.


Pode ser mais atual, mais fácil, mais divulgável, mas, passados os anos, resistirá a ideia de poema?


Trata-se apenas de uma opção inicial do poeta ou ele fez toda uma trajetória de leitura que possibilitasse a formação de uma consciência poética?


Acredito, como disse Drummond, que poesia é coisa séria.


Valorizo o apelo subjetivo que agregue qualidade ao poema. Tenho lido belíssimos poemas com essa característica. Somente não concordo com eventuais atalhos...


No meu caso, prefiro “brincar” com ideias. Poesia para mim tem que ter visgo.



DA - O Espírito Santo é um estado que se debruça muito em torno de discussões sobre a existência de uma identidade cultural própria, algo que já foi tema, inclusive, de vários trabalhos acadêmicos. Com que olhos você acompanha tais inquietações?


JORGE ELIAS NETO - Ser capixaba “é saber juntar peixe, marisco, ostra, lagosta, bacalhau, palmito, farinha, pão e vinho tinto e saborear a famosa torta capixaba” (Guimarães, Ernesto da Silva. A muqueca da Belmira – comédia canção).


Inicio propositadamente falando daquilo que mais se discute da cultura do Espírito Santo – sua culinária. Penso que a visão distorcida que outros países tiveram do Brasil, ao longo dos séculos, é também reproduzida internamente em nosso país.


O Espírito Santo sempre foi um Estado sui generis, visto como estado de “passagem” para o Nordeste e de parada de abastecimento para os turistas oriundos dos grandes estados da região Sudeste, em viagem para o litoral baiano. Um lugar quase sem sotaque, um misto de mineiro desconfiado com a malemolência baiana.


Sabemos ser impossível desvincular a discussão da identidade cultural de um povo de sua trajetória histórica. A cultura é o resultado da aventura humana e, no que tange o Espírito Santo, o relativo isolamento histórico desse estado (motivado, dentre outros aspectos, por sua localização geográfica e topografia, por sua densa cobertura de mata Atlântica e pelas temidas tribos da nação Gê que aqui habitavam) fez fomentar, no meio intelectual capixaba, o questionamento da existência de alguma singularidade em nossa cultura.


Mas isso é um contra-senso. Esse isolamento territorial só veio favorecer uma maior “pureza” em nossa cultura. O que perpassa essa postura negativa, no meu entendimento, é uma visão distorcida e míope – um verdadeiro desconhecimento da pluralidade da palavra cultura. Não creio que tal questionamento tenha cabimento nos dias atuais. Essa discussão tem apenas valor histórico. Ela mostra o preconceito cunhado entre muitos intelectuais capixabas que reverenciavam os estados do Rio de Janeiro e São Paulo, deixando de voltar seus olhares para o muito aqui existente para ser pesquisado.


Perguntem a um mestre de banda de congo se ele tem dúvidas sobre se existe uma identidade cultural capixaba...


Como bem afirmou Adilson Vilaça: “Tem o Espírito Santo o encanto de ter a diversidade como identidade. De ser o mais promissor ensaio do multiculturalismo brasileiro”.


Sobre a identidade cultural capixaba recomendo o ensaio produzido pelo Vilaça. Recomendo também os dois volumes, recentemente publicados, da excelente Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba 1944-1982, de Guilherme Santos Neves.

DA - Agora você vive a expectativa de lançar seu mais novo livro, Rascunhos do Absurdo. O que você destacaria de mais importante na condução desse novo caminho?


JORGE ELIAS NETO - Você sabe das dificuldades de publicar um livro de poesia. Quando se está fora do grande eixo, quando não se faz parte dos meios acadêmicos, cabe ao poeta, munido da certeza do merecimento de divulgação de sua obra, trazer à tona seus traços obsessivos (risos).


Rascunhos do Absurdo diz claramente do meu processo de enfrentamento da vida. É um convite à reflexão, é muitas vezes uma espinha de peixe na garganta.


Devo muito da força desse livro à parceria com o poeta Gustavo Felicíssimo. Coube ao Gustavo a organização dos poemas que pré-selecionei. Ele, com extrema maturidade, delicadeza e competência, soube dar formato ao livro. Além disso, após o término da revisão, quando da ocorrência dos eventos em Gaza, eu o enviei um poema sobre a tragédia vivida pelo povo árabe. Ele me fez um desafio: escrever uma trilogia para finalizar o livro. Ter escrito esses poemas, a pedido de Gustavo, me foi altamente enriquecedor.









Foto: Kilian Glasner









JANELA POÉTICA (IV)



Beijo


Wilton Cardoso



A este pedaço de pó,

talvez por um sopro de acaso

no caos, foi dado um querer

infinito e um saber-se precário.


Te imprimo um beijo

turbilhão de desejos fora de mim,

donos de mim. Quase desfeito

rastro que te deixo

enquanto queimo,


vento do momento.



(Wilton Cardoso mora em Goiânia-GO. É poeta e ensaísta e publica suas obras nos blogs minutos de feitiçaria e vida miúda)







DROPS DA SÉTIMA ARTE


Por Celso Serpa



Waldick - Sempre no Meu Coração. Brasil. 2009.




A tela se ilumina. Uma imagem tremida, tipo “Bruxa de Blair”, ocupa todo o espaço. No centro, uma figura conhecida e envelhecida: Waldick Soriano começa a falar sobre a vida em geral e a sua carreira, em um carro em movimento. Aos poucos, a imagem tremida, a aridez da paisagem e a luz direta nos olhos do espectador deixam de incomodar, e começamos a prestar atenção ao que é dito.


Assim começa o documentário “Waldick - Sempre No Meu Coração”, da diretora e atriz Patrícia Pillar, que teve sua estreia nacional na cidade baiana de Caetité, terra natal do homenageado. Aos poucos, o espectador vai sendo informado que Waldick está retornando para sua cidade de origem, situação que proporciona ao mesmo a oportunidade de fazer algumas reflexões sobre a sua carreira (em evidente declínio), amores, paixões, amigos e família. Percebe-se o visível esforço do cantor em produzir frases de efeito, com a ajuda de uma garrafinha de uísque, mas isso é progressivamente substituído por uma atuação mais espontânea.


Marca-se assim uma das características desse filme: a aparente espontaneidade do homem-tema, deixado à vontade por uma direção respeitosa, que assume o lugar de um ouvinte presente, mas distante, sem questionar ou interrogar o falante sobre o que é dito. Lacunas são feitas, silêncios são ditos e pausas ocorrem, dando a oportunidade do espectador colocar suas próprias dúvidas em relação às falas e aos conteúdos.


Segunda seqüência: plano geral de Caetité com as ruas poeirentas e esburacadas comuns a toda cidade do interior do Nordeste. Recepção por parte dos amigos. Um velhote, observando a câmera, tenta produzir uma frase de efeito e grita: “Esse é o Frank Sinatra brasileiro!!!” Waldick ensaia um sorriso amarelo, meio sem jeito, mas logo se emociona com a acolhida de seus amigos. Abraça a todos, pergunta pelos que acredita vivos, mas é informado que alguns estão mortos. Situa alguns em determinado momento temporal de sua vida. Caetité aparece assim, como um fato emblemático, uma Macondo, a qual ele retorna ante a proximidade do fim.


Não pretendo descrever todos os planos ou sequências da película, mas posso descrever o que me impressionou nela: a extrema delicadeza da direção (já referida anteriormente), a posição das câmeras nos enquadramentos, a feliz e espantosa ausência de narrações em off, que nos documentários brasileiros tem por objetivo maior compensar falhas evidentes de roteiro e direção, do que situar a história para quem assiste. Disso resulta um filme que faz do espectador um acompanhante das cenas, mais que o apreciador passivo de uma história.


O resultado é um filme delicado, suave, encantador e verdadeiro. Aparentemente o único esforço de Waldick é ser reconhecido como um poeta, um homem que fez dos seus sentimentos e sofrimentos a matéria-prima para a sua produção poética. Já os conflitos decorrentes da condição de pai, marido ou amante são secundários e se traduzem em sofrimento e sentimentos que realimentam o circuito da produção poética.


O resultado? Um documentário que não idealiza nem criminaliza o homem-tema. Um documentário que não escolhe, filtra, elenca ou XXX cenas. Algumas são claramente abreviadas, outras não têm suas situações desenvolvidas, mas fica a impressão para o espectador de estar vendo tudo.


Duas frases ditas por Patrícia Pillar, no curto debate de quinze minutos com a plateia, me chamaram a atenção: a primeira, de que encontrar com alguém no momento de fragilidade é mais verdadeiro; a segunda, perguntada sobre o que Waldick havia dito ao ver o filme ela respondeu que não sabia, pois o mesmo havia visto o filme, e se recolhido a um “silêncio cheio de significados”, atitude que não a surpreendia, pois isso acontecera muito durante as filmagens. Essa declaração de respeito pode ser constatada no resultado final.


Na minha cabeça, isso criou um interessante contraponto com o documentário Coração Vagabundo, uma biografia claramente autorizada, editada, filtrada e artificial de Caetano Veloso, que termina por mostrá-lo como um travesti de si mesmo. Mas, como sempre digo ao me perder em pensamentos, é outra estória...





(Celso Serpa vive em Salvador, Bahia. Aquariano típico, acredita que todas as expressões artísticas, em especial o cinema, a literatura e a poesia, são instrumentos efetivos de transformação e de expressão da verdade e da justiça)









Foto: Kilian Glasner









JANELA POÉTICA (V)



NA ARRUMAÇÃO DO TERRAÇO


Marcos Pasche


Para Dani e Jaque



Tudo passou,

os copos estão quebrados

e os pratos repletos de vazio.

As cinzas cintilam o chão de dor nas costas

e de segunda-feira.


Tudo passou,

as bocas estão amargas,

os olhos fatigados

e os estômagos, incompreensivos,

rebelam-se contra os delírios incessantes do ontem convulso.


Passou, tudo,

as moças e os rapazes

vão reerguer a manhã de cálculos e cronômetros,

sem poder dar a ela

sequer uma brasa da noite.


Passou,

a rua, impecável em suas funções,

sussurra vassouras e motores,

ao tempo que os pássaros acima ignoram

a otimista conjuntura da economia internacional.


A desordem passou. O controle do homem

se restabelece e impõe até que o juízo

torne-se novamente insuportável.

No terraço ficou só uma garrafa de vinho,

vazia,

ainda transbordando um possível amor entre os homens.




(Nasci em fevereiro de 1981, no bairro Cascadura, em plenos carnaval e subúrbio cariocas. Cursei Literaturas na UFRJ, onde hoje faço mestrado em Literatura Brasileira. Trabalho como professor e em 2008 publiquei meu primeiro livro de poemas: "Acostamento" (Oficina Raquel))







OUVIDOS ABERTOS (II)


Por Fabrício Brandão



FILIPE CATTO – SAGA






À primeira vista, o significado mais pungente para o verbete saga seria a reunião de um punhado de canções que remontariam às paisagens míticas e lendárias de alguma trajetória humanamente histórica. Noutra acepção, pode também funcionar como um agregado de acontecimentos voltado à construção da memória marcante de toda e qualquer existência. Definições à parte, importa saber que, embora aparentemente sufocadas pela multiplicidade de caras e formas, pessoas invariavelmente são feitas de um fino fio que recobre a matéria da vida. É sedutor pensar que entre nós paira sempre a discreta face de um tempo de delicadezas. Em meio aos arremates dessa trama sensível, resistem ecos de nossas ancestrais purezas. E tais sentimentos parecem se abrigar com propriedade no canto do gaúcho Filipe Catto, cuja voz se reveste de uma capacidade singular de expressão.


Saga nos é apresentado sob o formato de um EP, reunindo sete canções feitas de arranjos que vão beber na fonte límpida de ritmos típicos das fronteiras gauchescas. De cara, somos embalados pelos arremates intensos da canção que serviu de batismo para o disco, espécie de resumo poético dos trilhos que levariam o cantor a vislumbrar o possível alcance de seus passos. O disco mostra um Filipe cujo canto é capaz de transformar densidades em levezas. Sem vícios e sem sotaque, a interpretação prima pela vivacidade poética de cada palavra entonada. Há pura beleza em canções como Ressaca, Ascendente em Câncer e Teu Quarto. Diante de descobertas dessa natureza, os caminhos musicais vão sendo perpetuados com aquilo que talvez seja a maior das virtudes, qual seja o olhar que renova um velho mundo de cenários aborrecidos por nossa turva visão.








JANELA POÉTICA (VI)





Foto: Kilian Glasner



Diurno


Leila Andrade



Um portal abre-se

a cada amanhecer:

ultrapassar o dia

é o mesmo que respirar.


Quando cai a noite

há mais que olhares

xxxxxxxxxxxxxxxxxxturvos.


Há uma necessidade calada

– certa calamidade –

intrínseca à escuridão.











Foto: Kilian Glasner









Uma versão romanceada (ou um trem chamado desejo)


Larissa Mendes



E a inspiração – aquela velha amiga que há muito foi embora –

acena de um lugar próximo, me lembrando que o que sinto só cabe nas palavras.

Não naquelas que saem desencontradas dos meus lábios confusos.

Por isso não te ofereço meus olhos.

Te ofereço um punhado de palavras sobre ‘esse trem’ chamado desejo.




O cumprimento que nunca foi dito. O olhar que nunca foi percebido. Contraditório quando se trata dos sentidos mais acentuados em cada face. O sorriso-perfume, intérprete e pensador. E o olhar andante, míope e inoportuno.


Mas eis que com sua destreza peculiar, o acaso toma a mesma testemunha para ambas as confissões, que, com astúcia, arquiteta o que sempre foram palavras embriagadas.


E eu – tão acostumada com a sonolência dos acontecimentos – me vejo completamente insone e desperta (desprovida de esperteza?) diante de tanta determinação e urgência. É, não só ‘ela partiu’. Eles partiram. Partiram para um diálogo de entrelinhas. Diálogo fluente e pouco convencional. Ora palhaço, ora poeta.


Viagem anunciada, reunião programada. Muitas dúvidas instaladas. Entre cigarros, cervejas e risadas o sempre oportuno rock’n’roll. Lugares a postos, mas nem por isso cartas na mesa. Depois de uma longa noite de ‘mau-mau’, é estranho descobrir o bem-me-quer.


A minha vontade é dizer que sempre te quis. Desde o dia em que me faltaram forças para empurrar uma porta de loja, logo que vi você ofertado na vitrine. Desde que interceptei seus passos na escada de um bar para reclamar uma canção. Ah, como é seguro o refúgio na timidez, essa camisa-de-força dos covardes.


Ironicamente o vagão de uma geração nos separa. Ou seriam trilhos de distância? Talvez outras estações de amor? Pouco importa, se a magia está contida nas viagens curtas. Como uma prece atendida, ela pertence exclusivamente aos que sentem. Correspondidos ou não, cabem em algum lugar secreto, onde mora um sorriso tolo cada vez que uma janela laranja se abre.


Você me pergunta se foi um encontro surreal. Penso que dividir um copo d’água, numa manhã de domingo, sob a vista de uma cidade que não parece pertencer a mim ou a você, é (re)criar um pequeno universo. Um beijo é quase uma extensão da paisagem. A consequência é literalmente o Nirvana.


E mesmo que você só veja meus olhos, sou desejo em poros ainda petrificados por sua presença.




(Larissa Mendes, menina-catarina, hoje é apenas uma turista descarrilhada no mundo das palavras)










Foto: Kilian Glasner







*O fotógrafo e artista plástico Kilian Glasner concede-nos uma viagem especial em seu trabalho imagético. Ao aliar fotografia ao desenho, cria um espaço novo, mágico e poético. É como se percorrêssemos um caminho construído e misteriosamente novo dentro de formas originalmente idealizadas. Seu trabalho é cenográfico e nos convida a uma cidade onírica, imaginária. Pernambucano por nascimento, Kilian atravessou fronteiras e tem a sua sensível arte compartilhada em terras estrangeiras, tais como França e Itália.


A exposição de imagens que agora desfila por aqui mescla trabalhos referentes às séries Rua do Futuro 2009 e A Ambição do Desenho. Nesse conciliar de signos, Kilian nos convida a sermos sujeitos ativos num incessante exercício de intervenção espacial. A cidade reinventada pertence ao olhar de cada um, chave para a transgressão de toda e qualquer obviedade.


 
publicado por Fabrício Brandão
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