CICERONEANDO
Todo o trabalho feito até aqui tem como matéria-prima fundamental a celebração dos mais variados encontros em torno da arte. Perceber novas manifestações é uma tarefa que exige atenção redobrada em meio ao turbilhão de vozes eletrônicas existentes. Com a explosão da internet, a ideia de se desengavetar textos ganhou lugar de considerável destaque entre muita gente. A noção do anonimato talvez tenha assumido proporções mais relativizadas, tendo em vista que cada autor acabou criando seu “perímetro virtual”, gerando seguidores fiéis ao produto de sua criação. Ao mesmo tempo, existem também aqueles que conquistaram bem mais que um espaço particularizado. Estes últimos ousaram penetrar noutras esferas, rompendo círculos fechados, expondo suas expressões de modo mais amplo e, desse modo, dialogando com novas fontes de leitura. No entanto, produzir tais conteúdos exige aplicação, conhecimento e, sem dúvida alguma, bastante leitura e intimidade com os signos dispersos nas páginas do nosso vasto mundo. Longe de quaisquer considerações reducionistas e meros juízos de valor, a qualidade sobrevive pacientemente. Gente como o escritor baiano Marcus Vinícius Rodrigues nos faz crer na presença viva da capacidade sensível e arrebatadora das letras. Numa conversa conosco, ele ressalta um pouco as suas visões sobre seu processo criativo, o papel dos concursos literários e outros olhares sobre a sua intimidade com as palavras. Ao longo desse caminho, reconhecemos a nós mesmos nos versos de Genny Xavier, Adrianna Coelho, Luiz Benitez, Maria Quintans, Josefina Mello e Isaias Faria. Há um sentimento visceral pulsando nas linhas de Maurício de Almeida e Janaína Calaça. Noutro instante, Lúcia Bettencourt nos atira aos desvarios incessantes do culto às letras. Entre as epifanias que por aqui agora passeiam, o olhar marcante das lentes do fotógrafo Ricardo Prado varre os recantos desavisados dos homens e suas faces. Em nosso Drops cinematográfico, Bolívar Landi nos convida a visitar questões cruciais da existência. Seja bem-vindo a um novo ambiente de percepções!
*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.
JANELA POÉTICA (I)
Maria Quintans
desenhei uma cicatriz no rosto.
um parapeito a chegar ao impossível.
concentrei-me tanto que a notícia chegou depressa ao umbral da porta. a banheira estava cheia e a margem tinha musgo enrolado em tapetes de pedra. foi por aí que os sábios se embrulharam em planos tridimensionais. eu não sabia nada. a minha técnica de desaparecimento era conhecida só pelos sábios do ponto-cruz. o coração apertava e o sangue saltava no excesso da boca. juro que era capaz de fazer um cubo sem levantar o lápis embora a vibração da terra me fizesse cócegas no cotovelo. e enquanto desenhavas o passo eu apertava-te a mão e inventava a teoria do lápis no tornozelo. como se fosse o cotovelo. novelo do meu amor.
(Maria Quintans é escritora em Lisboa, Portugal. Acha que a música é o sustento da palavra e a insônia a mancha do poema. Em 2008, publicou o seu livro de poesia "Apoplexia da Ideia")
Foto: Ricardo Prado
Maurício de Almeida
foi um passo e depois outro e quando dei o seguinte, tranquei a porta atrás de mim, não acendi a luz e pensei que jamais voltaria a ver a lâmpada ou qualquer filamento de mercúrio. e eu ainda pensava em outras coisas, no entanto só tive certeza de que não deveria me render ao interruptor ou ao impulso de abrir a janela. meus pés confusos na cegueira do chão escuro se atropelavam enquanto as mãos tateavam formas monolíticas até alcançarem uma convergência no quarto. agora me agacho no canto. agora escondo a cabeça entre os joelhos e com as mãos me seguro e me agüento, pois sei que preciso respirar e refrescar o corpo, preciso me esquecer daquele cachorro na sarjeta, imóvel e desfigurado, esquecer os pedaços de carne enfiados no asfalto e o sangue escorrendo em direção ao bueiro para se perder no esgoto. seria melhor que todas aquelas tripas tivessem sido engolidas pelas bocas de lobo, mas estavam espalhadas, aquele angu roxo amontoava-se numa poça disforme que um resto de focinho farejava incessantemente. e apesar desse monte grotesco me causar uma insuportável contração no estômago, eu não conseguia desviar o rosto, estava hipnotizado pelos olhos pálidos do cachorro que parecia rosnar e exibia os dentes de tártaro pendurados na gengiva ensangüentada: insisto em passar os dedos no meus próprios dentes para ter certeza de que estão todos firmemente presos à boca, e aproveito para escorregar as costas da mão na testa. estou quente e molhado, arranco a roupa e assim, nu e suado, volto a me enfiar entre as pernas e a passar os dedos nos dentes, mas babo e dos lábios me escapa um fio de saliva que molha o queixo. o cachorro que manchava a faixa de pedestre também babava e por causa dele esfrego o corpo como se estivesse sujo com seu sangue espesso de piche, chacoalho a cabeça e mordo a língua, sinto os dentes moles daquele focinho me furando a nuca, me abrindo a jugular para depois me lamber infestado de uma raiva branca e espumosa. sei que preciso esquecer e me limpar o quanto posso, e ajoelhado no canto bagunço o cabelo, espalho o suor que me escorre pelo peito e se acumula no umbigo, espremo glândulas e caroços e dedilho meus pêlos num flamenco desesperado até me encontrar reto, aponto certeiro onde se encontram as paredes e me seguro, fecho os dedos ao redor de mim e babo, ele parecia uivar, tenho quase certeza de que uivava e por isso me seguro e me suo e me repito e uivo, mas me contenho. acho que havia algo por debaixo do tronco amassado cheio de pêlos: tenho eu também o corpo de pêlos e por sermos sangue do mesmo sangue, ossos dos mesmos ossos e pêlos dos mesmos pêlos, vivencio a morte dele como posso e uivo pendendo a cabeça, estico o pescoço e arreganho a boca mostrando os dentes enquanto me babo e me repito com força e com força me agarro e aponto e me imponho e com raiva contraio o regaço e desfaço em poça como a que untava o corpo trucidado: dou a extrema-unção num suspiro ou dois – e desabo.
(Maurício de Almeida nasceu em Campinas, em 1982. Formou-se em antropologia pela Unicamp. É autor de Beijando Dentes (Ed. Record), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 e co-autor da peça Transparência da Carne, encenada pelo grupo teatral República Cênica)
Foto: Ricardo Prado
ando descalça pela tua casa
e atravesso os cômodos
sem as pontes que costuram
todos os caminhos
o chão, passivo, ninho
feito de referências e almofadas,
recolhe meu sono em travesseiro de penas
e abre teu peito ferido sobre minhas pernas
e as mãos deslizam sobre o tapete,
as faces, os corpos e as lágrimas
e os olhos que silenciam
interferem como lâminas
e ao chão, passiva, cheia
de interferências e joelhos
e rodapés e dores em todos os cantos,
entrego-me inteira no piso do banheiro
e meus sapatos, amor,
ficaram do lado de fora,
junto com o meu passado:
agora meus passos são outros
e ando descalça pela tua casa.
(Adrianna Coelho, nasci em 1969 no Rio de Janeiro. Escrevo para recriar meus olhares e modos de ser, pensar e interpretar o mundo e a vida, encontrar as palavras possíveis e aquecê-las por dentro. Revelo isso no poema Desiderato: Tenho a urgência dos incêndios / em meus poemas / Amo os versos que não posso / e ardem. A poesia traduz a minha busca incessante pela Metáfora)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
MÁRCIO LOCAL - SAMBA SEM NENHUM PROBLEMA
Da equilibrada mistura entre o samba, rock, funk e soul, muita coisa pode surgir, bem sabemos, mas o que concorre realmente para fazer a diferença em matéria de qualidade é a capacidade com que cada artista constrói a sua musicalidade, sobretudo se esta for pautada pela conjunção entre boas letras e arranjos. Pelas escutas em torno do primeiro disco do carioca Márcio Local, tais atributos parecem ter encontrado um lugar no qual aportar com propriedade. Antes que se possa cobrar os pesos tão habituais de se enveredar pelos gêneros em questão, Samba sem nenhum problema não é um álbum disposto a revolucionar nem tampouco se comprometer a elaborar discursos mais densos em suas letras. A ideia predominante no disco é o chamado sambalanço, algo que prima por requintes agradáveis de suingue, tudo muito bem conduzido por uma atmosfera de descontração e boas vibrações. E isso, de fato, já faz esse trabalho valer a pena.
Em seu ofício, Márcio deixa exalar as influências de gente como Jorge Ben Jor, Wilson Simonal, Originais do Samba, Banda Black Rio, Itamar Assunção, João Nogueira, Roberto Ribeiro, Tim Maia, entre tantos outros. Do início ao fim, o propósito suingado do disco é seguido à risca. Prova disso está nas faixas Ela não tá nem aí, Samba sem nenhum problema, Preta luxo, Represento, Sentimento rei e Soul do samba. Márcio sabe usar da habilidade em conciliar modernidade com estilos que derivam da confluência 1960/1970, tanto que nalguns momentos parecemos estar numa pista de dança soul/funk, noutros, somos conduzidos pelos vocais difusos de um rap/samba. Tudo aqui revela cuidado e atenção com as possibilidades sonoras. Aos que apreciam o gênero, fica a certeza de que o samba, tal como disse Caetano, é verdadeiro pai do prazer. Assino embaixo.
Foto: Ricardo Prado
JANELA POÉTICA (III)
AVE
Genny Xavier
Lanço-me assim como o vôo dos anjos e,
suspensa nos ares das nuvens, minhas asas se fortalecem.
Anteno-me como os astronautas. Tenho sede de ir mais alto,
aos arredores da lua e de suas vilas abrigadas em crateras,
pois, em sua brandura lunar, não se derreterá a cola
com que grudei minhas asas aos braços.
Pernoito hotéis estelares para o cansaço das horas,
me desfaço das penas e molho de chuva meus sonhos de ave.
Durmo, sobre um pálio azul e meu corpo é puro devaneio de céu.
Meus encantos sutis de fêmea e ave, agora planam num sonho voador
nas cercanias do teu mundo tão longe e perto de mim.
Sou mulher para a busca do meu amor de lonjuras.
Pouso à tua porta para que me abra a luz da tua casa, do teu quarto, da tua cama...
Meu voo não tem hora, nem passagem, nem permissões de tráfico celeste e,
assim fico ao calor que me aquece perto das tuas mãos que me passeiam.
Fico horas assim, no proveito amoroso das tuas ousadias,
esquecida do tempo, esquecida da minha metamorfose de ave.
(Genny Xavier nasceu no sertão da Bahia e começou a escrever versos aos 13 anos, com um traço humanístico e social que indicava a precocidade da sua idade. Atualmente, trabalha na criação do seu primeiro romance, com o título "Alma de Papel" e tem ainda inéditos os livros: “Da razão e dos sentidos” (poesia), “Impressões do anoitecer” (contos) e “Rio, doce rio!” (literatura infantil))
Foto: Ricardo Prado
Bibliofilia
Lúcia Bettencourt
Nas festas, não costumava beber. Nunca aprendera a gostar de uísque, nem de vinho. E detestava aquela complicação de “rabos de galo”, cheios de cores e combinações explosivas, feitas com bebidas baratas. Estava, portanto, sóbria, quando reparou no sorriso amplo, aberto no rosto bronzeado. Viu de relance o rosto, másculo, agradável. Mas continuou a escutar o chilreio inquieto da amiga, se queixando da falta de um relacionamento duradouro.
O garçon passou com uma bandeja de canapés, que pareciam tirados de um quadro de Klee. Tudo era belo, mas nada era reconhecível. Duvidava que fossem comestíveis. Pensou com nostalgia numa empadinha de queijo. A amiga continuava rebelando-se contra a obrigatoriedade de se comportarem como ninfomaníacas. Ela escutava, concordando com a cabeça, mas seus olhos estavam inquietos, procurando o sorriso que havia notado. Pretextando que precisava apanhar uma bebida, desvencilhou-se da outra, que agora se rebelava contra a tirania da eterna juventude.
Era bom circular entre as pessoas e escutar pedaços desconexos de conversas. Viagens, dietas, ações da bolsa, uniões feitas e desfeitas. Tudo se misturava às queixas contra o governo, o sistema, os homens em geral. Parou para cumprimentar um amigo gay, que a avaliou de alto a baixo, com admiração:
– Lipo?
- Dieta, mesmo. E você? Botox?
- Congelamento!
Antes que ele resolvesse lhe explicar as novas técnicas, ela conseguiu escapulir. Olhou em torno, mas já sem esperança de rever o sorriso, quando, para sua surpresa, viu-se cara a cara com ele. De perto era ainda mais interessante, um sorriso meio de lado, com dentes ligeiramente imperfeitos, nada daquela homogeneidade de anúncio de pasta dentifrícia. Foi ela quem falou primeiro:
– Você descobriu alguma bebida normal ou estamos todos condenados a beber coquetéis com fumacinha?
Ele sorriu e propôs um chope num barzinho ali perto. E, como o barzinho estivesse muito cheio, ofereceu uma cerveja geladinha em seu apartamento, no centro da cidade.
– No centro? Eu nem sabia que se mora no centro da cidade…, ela se admirou. Mas ficou ainda mais encantada com a explicação que ele lhe deu. Precisava de espaço para seus livros e, como ali pela zona sul os preços estavam proibitivos, tinha optado por um andar inteiro no centro. Ela entregou os pontos. Um homem com aquele sorriso e uma biblioteca, era tudo o que sonhara. Aceitou sem titubear, maravilhou-se com o apartamento enorme, suas estantes antigas, de família ou de antiquário, e entregou-se, já se sentindo irremediavelmente apaixonada.
No dia seguinte, acordou cedo e maravilhada, pensando em preparar o café da manhã para agradar àquele príncipe encantado. Tinha de fazer tudo certo para não perder um homem como aquele. Levantou-se silenciosa e foi procurar a cozinha. No caminho, não resisitiu a dar uma espiadinha nos livros. Clássicos, com lombadas de couro, monogramas dourados. Pegou um, ao acaso. Estava em alemão – gótico! Era de antes da Guerra, provavelmente herança de família. Pegou outro. Compêndio de gramática da língua tcheca. Esquecida do café, foi pegando os livros, um a um, já sem se preocupar em colocá-los de volta na prateleira. Cada assunto mais esdrúxulo que o outro, uma coleção de bric-a-brac que só podia ter vindo junto com as estantes que, obviamente, eram de brechó. Indignada, voltou ao quarto, onde o sorriso, deformado pelo sono, se metamorfoseara numa boca maltratada. Vestiu-se ligeira e saiu, abafando sua decepção.
De tarde telefonou para a amiga, e contou-lhe o final de noite e a decepcionante manhã.
– Não acredito que você foi parar num matadouro! – admirou-se a outra. – Este golpe já está até descrito nos jornais! Os caras são especialistas em festas de intelectuais. Só frequentam jornalista, acadêmico e artista de vanguarda. E o papo é sempre o mesmo. Muito livro… sacrificar status por intelecto… O negócio é, antes de ir, falar um pouco de literatura. Mas tem que ser sutil. Não pode atacar de Ulisses, porque ninguém entende, e qualquer coisa que se diga soa verdadeira. Nem de Proust, que aí o cara se sai com os chavões de sempre. Tem de fazer uma sondagem mais branda, soltar um Mário de Andrade, um Rubem Fonseca. Arriscar uma Clarice ou Lígia Fagundes Teles. E cuidado com os especialistas! Um desses caras se dizia especialista em Eça de Queirós, e tudo o que ele tinha lido era A cidade e as serras. Mas tinha decorado o raio do livro e para tudo ele conseguia encaixar alguma coisa do Eça. Demorei duas semanas para descobrir. Mas fiquei três meses com ele. Afinal, ele era bom de cama, e um Eça bem aplicado tem o seu valor!
Pensou que talvez tivesse se precipitado, e lembrou-se de que, no seu caso, não tinha sequer ouvido uma única citação. Desalentada, deu de ombros. Consolou-se pensando que, por uma breve e fugaz noite, tinha sido perfeitamente feliz. E jurou que, da próxima vez, se manteria longe da estante.
Afinal, bibliofilia tem limites.
(Lúcia Bettencourt é carioca, estuda literatura, escreve contos e sonha que está vivendo...)
Foto: Ricardo Prado
JANELA POÉTICA (IV)
UM POEMA-SINOPSE PARA O FILME “CÃO SEM DONO” de BETO BRANT
Isaias Faria
duas perspectivas:
a dele aleatória ou
sem palmas ao desejo
a dela cheia de asas rumo
sabe-se lá aonde
se olham num apartamento
entre poucos móveis e um
vira-lata clássico
a esperança e a dor universal
perpassa-os ali
(Isaias Faria é poeta, mora em Belo Horizonte/MG e escreve em seu Esmero de Linguagem)
Foto: Ricardo Prado
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
Certos encontros, até mesmo os mais inesperados possíveis, costumam acrescentar seus ingredientes instigantes de descoberta e, por assim dizer, renovação de nossos repertórios de vida. Recordo-me que o momento de perceber as primeiras escutas em torno do escritor baiano Marcus Vinícius Rodrigues veio com a afirmação de que versos redefinem não apenas mistérios, mas também traços mais tênues e sublimes sobre quem realmente somos. O moço, a quem tomo a licença de nomear como poeta do imponderável, além de desfilar ideias sobre a sua intimidade com o universo literário, recitava seus curtos, porém incisivos versos embebidos em lembranças, afetos, enigmas e, sobretudo, ausências.
O autor de Pequeno inventário das ausências (Fundação Casa de Jorge Amado), livro de poemas que lhe rendeu o Prêmio Copene de Literatura 2001, é hábil em construir signos que cativam pelo rico jogo de apelos sensoriais. Noutro momento, o poeta Marcus veste as túnicas de uma prosa regada a doses intensas de lirismo, alguma introspecção e um precioso percurso sob a ótica feminina, para nos servir sinfonias existenciais no belo 3 Vestidos e meu corpo nu (Coleção Cartas Bahianas – P 55 Edições). Um pouco de suas percepções, nuances criativas e sentimentos que movem linhas agora estão aqui, dispostos numa breve conversa.
Marcus Vinícius Rodrigues
Foto: Alexandre Coutt
DA - Os versos que tecem o seu Pequeno Inventário das Ausências são hábeis em visitar lugares cujos apelos residem no pulsar de uma viva memória afetiva. Essa sua via poética evita a coagulação de certos instantes cruciais da existência?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - O Pequeno Inventário das Ausências é um livro de começo, em que se deságuam todos os poemas represados até então. Houve uma seleção, naturalmente, muito ficou de fora, mas, ainda assim, o livro tem um aspecto de coletânea. O que salva é que, de fato, minha escrita poética possui um eixo bastante nítido pra mim. Trata-se da percepção do instante. Um momento que se viveu e que se cravou na lembrança. Uma memória que se perpetua. Minha vivência particular e poética se completa apenas no depois. Gosto de me voltar ao passado, enquanto sigo em frente. É disso que trata o livro em seu subterrâneo, o instante que já se perdeu e que, de resto, nunca foi de todo tocado, pois é imponderável e escapa. Meus temas são essas imagens que jamais podem ser inteiramente vistas, como a bolha de sabão e sua estrutura improvável. Este instante imponderável continua na minha poesia no meu segundo livro inédito (não gosto de revelar títulos), que tem como tema o sopro, seja o hálito mágico, seja a brisa final sobre a terra do túmulo, seja o sopro poético ou o grão de poeira suspenso na memória. Continua, também, em meu terceiro livro de poemas, também inédito, que trata novamente da ausência, não das coisas em mim, mas de mim nas coisas. Trata-se de um livro que pode ser lido como um único longo poema, embora tenham suas partes autonomia e origem distintas. Um dos poemas foi escrito a propósito de minha viagem a Ilhéus, minha cidade natal, quando nos conhecemos.
Você me verá no cais
vazio da cidade onde nasci,
andando sobre o lodo
do mar que esvai.
Também eu parti
rumo à saudade,
esta nova pátria
de onde não posso fugir.
DA - Verter imagens em versos é uma das nobres missões do poeta, muitas delas significando a fonte primeira da criação. Como funciona esse processo no seu fazer literário?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - O poema pode vir de uma motivação bem objetiva, até mesmo uma encomenda ou uma vontade de escrever sobre algo. Nestes casos, muito do que escrevo primeiro se perde. Acabo jogando fora. É lá pro meio do “poema” que surge uma frase na medida formal que desejo. Aí, então, passo a perseguir essa forma, podendo até retornar ao que tinha escrito antes. O poema pode surgir também pronto, de primeira. Não há nisso nenhuma mágica, no meu caso, já que se tratam de poemas curtos. Tenho, ainda, temas a perseguir e posso escrever vários poemas sobre o mesmo tema, até achar a forma capaz de dizer o máximo com o mínimo.
Nem sempre se consegue o que se pretende; nem sempre o que se pretende é o que se deveria pretender. No fundo, por mais que o poeta busque controlar o que escreve e a percepção do que escreve, a poesia parece fazer suas próprias escolhas, quase como se fosse um fenômeno místico. Não acredito verdadeiramente nesse misticismo, mas não posso negar que, mais do que qualquer outra arte, a poesia acontece de uma forma misteriosa que escapa a qualquer explicação razoável.
DA - Avaliar escritos segundo um mero ritual de juízos de valor e outros tantos critérios imprecisos certamente é algo bastante limitado. Como você encara o papel dos concursos literários quando a questão maior é separar o joio do trigo?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - Recentemente escrevi sobre esse assunto no meu blog. Lá eu dizia o quanto pode ser uma sorte ganhar, para dar início a uma carreira e de como é bom perder e evitar a publicação de um livro ruim. De alguns dos concursos que participei soube histórias de bastidor e posso atestar a lisura do processo. Há um, inclusive, no qual participava da banca uma pessoa muito próxima e querida. Após o resultado, eu nem sabia ainda, ela me procurou para dizer que meu livro tinha ficado na escolha final, junto com outro, e que ela é quem tinha desempatado e votado no outro. Comentou meu livro e apontou o que não gostou.
De tudo isso, só posso concluir é que as pessoas se enganam nessa tarefa de separar o joio do trigo. Obrigo-me a ter em mente que o erro pode ter acontecido quando foi a meu favor e não paro de pensar no quanto tive sorte de não ter meu primeiro livro de contos publicado como estava nos concursos que perdeu. 3 Vestidos é retirado desse livro. Não ganhar me fez separar o joio do trigo e acredito que o livro é muito melhor como está. Tem unidade e força, é inteiro e não um amontoado de textos desconexos. Contos e poemas reunidos num livro precisam ser capazes de dizer algo juntos, além da obrigação de serem autônomos.
DA - E o que dizer da crítica literária brasileira, ela existe de verdade?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - Sim, claro. Pode-se discordar do que se diz, mas está aí. Os espaços em periódicos é que não são bons. São poucos e só permitem o exercício da mera resenha. Os periódicos não dão espaço ao debate. Um livro, uma vez comentado, deve dar espaço a outro. A crítica acadêmica se debruça, em sua maioria, para a literatura já estabelecida. Não vejo nada de errado nisso. Acho importante, para o estudo mais exato de um autor, a decantação da recepção.
DA - O seu intenso “3 Vestidos e meu corpo nu” é um verdadeiro passeio pela alma humana, descrevendo sentimentos sublimes que nos marcam a ferro e fogo. Em que medida a produção desses contos foi capaz de reinventar o homem Marcus?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - 3 Vestidos e meu corpo nu é um livro sobre o desencontro e a solidão. As quatro personagens protagonistas estão isoladas do outro que amam (irmão, marido, filha, namorado) pela impossibilidade de comunicação. Não a mera comunicação verbal, que em alguns casos existe, mas a incapacidade de dizer, de expressar algo. Até mesmo a capacidade de saber o que existe a expressar. Se há reinvenção do homem Marcus Vinícius, é difícil ter essa percepção. Só fazendo terapia.
DA - Sem dúvida alguma, um dos destaques do livro está no último conto, “A noite de cada um”, onde você nos apresenta um narrador cujo gênero insiste em se manter estrategicamente indefinido. Há um quê de Caio Fernando Abreu pulsando ali nas entrelinhas?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - Li pouco o Caio e não vou ser capaz de fazer uma comparação. Certamente não há uma influência direta, mas entendo a associação. O conto A noite de cada um tem uma ambiguidade homoerótica clara. Não falo do gênero do narrador que se mantém indefinido. É um indício, obviamente, mas não um determinante. De fato, o conto foi escrito em parte com um narrador feminino em mente e em outra com um narrador masculino. Há momentos em que se sente que só uma mulher agiria daquela maneira. Em outros, a atitude é marcadamente masculina. O efeito, claro, é a ambiguidade gay, que se amplia pela fábula da noite que habita cada um. Isso lembra Caio porque é dele o êxito de produzir alta literatura com temática homoerótica. Com este comentário não pretendo excluir outros escritores, como o João Silvério Trevisan, por exemplo. Entretanto, como se trata de um livro que brinca com a ideia das influências, é preciso revelar que no conto há um quê sim não do Caio, mas de outro escritor: Julien Green. Embora não haja nada de palpável a comparar, o tema do conto, a noite, é de inspiração direta
Assim como em Green, o meu conto trata dessa ideia de que todos nós temos uma noite. No final, o luminoso André, a personagem solar, pode ter também sua noite, seu lado obscuro. Jamais saberemos ao certo. Um vento que sopra dispersa nossos destinos.
DA - Um aspecto valioso na leitura de seu primeiro livro de contos é a precisa incursão que você promove no universo feminino. O que mais o motivou a personificar os signos do sexo oposto?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - Os contos de 3 Vestidos e Meu Corpo Nu fazem uma brincadeira com as influências. Todo escritor, quando estreia, está sujeito a comparações. Você mesmo acaba de me comparar com Caio Fernando Abreu. O primeiro movimento do leitor culto é buscar as influências, os escritores com que aquele novo escritor dialoga. Isto é inevitável e certo. Todo texto é um texto sobre outro texto, alguém já disse. Nesse livro não pretendi escapar do fantasma da influência. Ao contrário, o livro se lança ao abismo sem restrições. Por que o universo feminino? Talvez porque haja uma identificação na forma de perceber o mundo.
Assim é que nos três primeiros contos o livro brinca com o jogo das influências na forma de contos inspirados na obra e na vida de escritoras. A Mais Bela Flor da Alma se apropria de um sentimento de amor, não confirmado, entre a poeta portuguesa Florbela Espanca e seu irmão. Ele parte de versos de um poema dela, que parecem confirmar o que ela vivia. O estilo do conto busca um tom próximo da sensibilidade da poeta.
Brutalmente Bruna mostra a atriz e artista plástica Bruna Bianchi, que tem muita semelhança com a atriz e escritora Bruna Lombardi, embora não seja. Na verdade, Bruna Bianchi é uma personagem inspirada no sujeito poético dos poemas de B. Lombardi. A atitude daquela mulher perdida está nos versos do poema Moto-contínuo. Esta é a sua matriz.
Depois do Baile Verde é uma continuação do conto Antes do Baile Verde. Nele podemos reencontrar a mesma Tatisa, agora no fim da vida. A história reencena o que aconteceu no primeiro conto, desta vez com uma inversão das personagens. No conto de Lygia, Tatisa parte para o carnaval; no meu, é sua filha quem parte. Ela tem a oportunidade de refletir o passado. De todos os contos, é neste que o jogo das influências se mostra mais franco. De fato, Lygia Fagundes Telles é minha grande influência na literatura. Ela está em todo o livro e nos próximos. Neste conto, recupero várias estratégias narrativas dela e mesmo citações inteiras de contos seus. De todos, é o pastiche mais bem acabado. Há algo meu certamente, mas não posso negar que há algo de Lygia em tudo que faço
O quarto conto, A Noite de Cada Um, avança para uma temática mais minha, e evolui do estilo Lygiano para algo mais meu. É uma introdução para o próximo livro, que virá, espero, ainda esse ano na Coleção Cartas Bahianas. Este livro será inteiramente pessoal, já que a questão das influências estará superada.
DA - Depois de algum tempo, você se rendeu aos impulsos virtuais e lançou seu próprio blog, o Café Molotov. De que modo isso tem contribuído para redefinir sua produção literária?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - Ainda não consigo ver a internet como um suporte para literatura. Penso no blog como um lugar de divulgação. Sei que os textos ali estão ainda em estado precário, sem a sedimentação necessária. Evito a prosa, por sua extensão, e me concentro no poema. Meus poemas são curtos, próprios para o meio. O blog tem algumas séries, que tenho buscado dar continuidade: poesia, crônica, textos em que comento minha literatura e repercuto o que acontece no mundo real. Acho que manter um blog faz a minha poesia (e minha literatura como um todo) circular mais e ser mais conhecida.
O estalo de fazer o blog surgiu numa entrevista pra o site ibahia. A jornalista perguntou pelo blog. Foi ali que entendi que era algo necessário. A experiência tem sido muito rica. Descobri, também, a minha vontade de fotografar. Peguei gosto.
DA - Causa certo desconforto admitir que hoje estamos banalizando até mesmo nossos mais sublimes sentimentos. Qualquer coisa que se escute, escreva ou faça parece ser atenuada pelo relativismo míope da mediocridade. Ainda temos salvação?
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES - O tempo dos valores absolutos passou. Talvez porque seja muito mais fácil, hoje, vir à luz uma ideia. Tudo pode ser realizado. Assim, acabou-se a seleção natural das dificuldades. Antes só os fortes venciam. Apenas as boas ideias, os bons textos (para restringir a discussão) eram capazes de permanecer. Ainda acredito na gaveta e em seu poder de decantar a literatura e só deixar sair o sumo condensado do que sobreviveu ao tempo. E mesmo assim algum fraco pode escapar. É preciso vigiar e caçar o mau texto fujão e levá-lo de volta para o fundo da gaveta. Ainda temos salvação? A esperança é a última que morre apenas porque mata tudo antes.
Foto: Ricardo Prado
JANELA POÉTICA (V)
pour HH
Josefina Neves Mello
houve tempo
em que meus domingos
cheiravam a jornal
a saudade e café requentados
meu corpo
-espremido num quarto
em meio a roupas de bebê
cascas de maçã
e uma angústia do tamanho do oceano
[que bramia próximo e me acalentava nas madrugadas frias]-
não conhecia
ainda
a volúpia da paixão
ACERCA DE DORES ANTIGAS
(Josefina Neves Mello (Petrópolis, RJ, 1948), poeta, tradutora, revisora, palestrante. Tem poemas publicados, musicados e perdidos por vários lugares, mas alguns têm endereço: Poetas do Brasil (1978), Antologia Poética de SJCampos (1982), Amostra Grátis (1981), Andaime (1985), Libélulas (1989), Mulheres de São José–Antologia poética (1993), Mulheres de São José–Outros Poemas (1996), jornais, revistas, murais, camisetas. Coordenou em 2006 o Café Filosófico Paulo Nubile, em São José dos Campos (SP), e trabalhou como consultora literária na Siciliano)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Bolívar Landi
Filhos da Esperança (Children of Men). EUA/Inglaterra. 2006.
A história se passa na Inglaterra no ano de 2027. Um inexplicável fenômeno fez com que todas as mulheres do mundo se tornassem inférteis e há 18 anos nenhuma criança nasce sobre a Terra. Eis o questionamento aterrador que este instigante filme nos traz: que esperança pode haver se a existência de toda a humanidade caminha inevitavelmente para o fim e não há mais ninguém em todo o planeta a quem possamos legar toda a nossa arte, ciência, filosofia...
Em o “Ensaio sobre a cegueira”, Saramago nos fala de uma cegueira branca que rouba progressivamente a visão de todos. Minha esperança era que, sem ver, o homem pudesse enxergar melhor. O que ele faz, contudo, é retornar às trevas, à selvageria animal. Aqui, em "Filhos da Esperança", minha expectativa era que este fato insólito fizesse com que as pessoas percebessem melhor o valor da vida humana. A película, no entanto, nos apresenta seres míopes, que não conseguem ver o quão inútil é a sua gana insana pelo ter e pelo poder. É desolador olhar o homem assim, exposto em toda a sua falta de visão e irracionalidade.
A obra, lançada em 2006, traz como diretor o mexicano Alfonso Cuarón (de “E sua mãe também”) e é estrelada por Clive Owen, contando ainda com a participação de Julianne Moore e Michael Caine no elenco. A estética da produção lembra a de Blade Runner, emblemático filme de ficção científica que exerceu grande influência em outros do seu gênero. O futuro apocalíptico apresentado na produção não está distanciado do presente e acaba por denunciar muitas das mazelas que encontramos hoje em nosso mundo. O roteiro, além de abordar temas contundentes, consegue ser ágil, criando situações de suspense e apresentando sequências de ação muito bem conduzidas. A música assinada por John Tavener, por sua vez, é arrebatadora e não poderia ser melhor escolhida.
A esperança, que dá título ao filme, vai sendo redescoberta, em meio à descrença, por pessoas que, duramente, resgatam os seus ideais e a sua fé. O filme traz muitas simbologias, às vezes simplistas demais, mas que não comprometem a grandeza da obra. Em muitas questões, inclusive em seu final, o filme pode parecer um tanto quanto inconclusivo, mas o seu maior mérito está muito mais nos questionamentos que ele consegue evocar do que nas respostas apresentadas.
(Bolívar Landi é formado em Comunicação Social e História e encontra nos filmes uma forma de conhecer realidades distintas e experimentar novas sensibilidades)
Foto: Ricardo Prado
JANELA POÉTICA (VI)
PELO QUE FOGE
Luis Benítez
Tradução: Cilene da Silva de Infante
Pensar que Spinoza morreu polindo lentes.
Que Blake se fatigava em uma imprensa
esperando a conversação desse dia com os anjos.
Que por viver Baudelaire se humilhava ante sua mãe.
Que Rimbaud foi silenciado pelo Rimbaud,
para que este ingênuo me fale da literatura.
Como se possível fora outra coisa que inventar
ante outros a forma do relatório
e cobrar um salário. Que persuadido está
do improvável. Essas palavras
erigiram congressos e simpósios
e prestígios e famas possivelmente mais perduráveis.
E no centro, o errante, desta coisa mundana,
esse brilho selvagem que por disfarce,
por burlar-se ou por escapar até mais
da teimosa tentativa, inventou
também estas criaturas, seguro
ri em algum lugar do fundo da sala.
Ou olhe com piedade seu simulacro.
(Luis Benítez nasceu em Buenos Aires. É membro da Academia Ibero-americana de Poesia, Capítulo de New York, EUA, com sede na Columbia University, de World Poets Society (Grécia), da International Society of Writers (EUA), de Advisory Board de World Poetry Press (Índia), Membro Honorário da seção argentina de IFLAC (International Fórum for a Literature and a Culture of Peace) e da Sociedade de Escritoras e Escritores da Argentina. Recebeu o título de Compagnon da Poèsie da Association La Porte des Poétes, com sede na Université de La Sorbonne, Paris, França)
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
DELICATESSEN - MY BABY JUST CARES FOR ME
O ato de se descobrir um novo e instigante trabalho musical é algo ímpar, sobretudo se ele for dotado de suavidade, leveza e bom gosto. Estes são apenas alguns adjetivos que podem definir a acertada reunião sonora dos gaúchos do grupo Delicatessen. Formado em 2006, o harmonioso conjunto agrega a belíssima voz de Ana Krüger, o violão de Carlos Badia, o baixo de Nico Bueno e a bateria de Mano Gomes. Todos eles afinados em torno de um valioso propósito: trilhar com qualidade e sem preciosismos os caminhos sublimes do jazz. My Baby Just Cares For Me, segundo disco da carreira do grupo, mostra equilíbrio e beleza do início ao fim. Faixa a faixa, somos convidados a entrar em lugares apenas governados pela serenidade, algo que merece ser contemplado num ritual de escutas íntimas e especiais. E quando me refiro a tais particularidades, digo que os sons merecem aqui um ambiente à parte, bem distante do torvelinho de nossos desvarios cotidianos.
O álbum recebe o título de um dos grandes sucessos eternizados pela voz de ninguém menos do que Nina Simone, tão intensamente recriado pela doce e intimista interpretação de Ana. Só para se ter uma noção exata da valiosa escolha do repertório, vale a pena mencionar composições de nomes como Irving Berlin, os irmãos Gershwin e Diane Nalini. Além de faixas primorosas como You've changed, Why don't you do right, How long has this been going on? e Don't be that way, o grupo assina duas das 12 faixas, Delicatessen e Amores musicais. Muito bem irmanada com os arranjos jazzísticos, a bossa também passeia vigorosa em algumas das canções. My Baby Just Cares For Me é um trabalho isento daquelas interferências que possam significar releituras um tanto ousadas demais. Tudo é muito puro e cristalino, conciliando vocais e arranjos ricamente arquitetados. Sem exageros, a singularidade mostra as caras por aqui de forma equilibrada. É o belo pedindo passagem. Aos que se permitirem, eis a certeza de um sensível mergulho musical.
JANELA POÉTICA (VII)
Foto: Leila Andrade
morada
Leila Andrade
por superfícies externas
busco uma casa, caminho nenhum
apenas, numa jornada intensa,
a voz baixa
nuvens perto do chão
aranha de tantas teias
por outro endereço estreito
e íntimo
sinto um templo
o corpo: imensa morada
Foto: Ricardo Prado
Janaína Calaça
Levantou cedo. A mãe coava o café e assava o pão no forno, derretendo a manteiga. Tomou banho, lavou os cabelos longos, olhou-se nua no espelho, viu os seios pequenos apontando e, com vergonha de si mesma, vestiu o vestido de flores azuis. Tomou o nescau na caneca de estampa de vaca. Todos os anos, neste dia, ela cortava quatro dedos do seu cabelo. Era um cabelo longo, virgem, cachos nas pontas, soltos, livres. A mãe dizia que cortar as pontas dos cabelos neste dia faria com que eles crescessem fortes durante o ano e que a menina cresceria com eles. Neste dia, a parte estragada tinha que ser jogada fora. Era um ritual, uma tradição repetida todos os anos, passada de vó para mãe, de mãe para filha. Deixou a caneca na pia, esperou a mãe vestir o vestido bege, opaco, e foram para o salão.
Chegaram antes do salão abrir, mas não esperaram muito. Mal a recepcionista abriu a porta, a menina entrou balançando os cabelos. A mãe perguntou pela cabeleireira de sempre. Não estava. A mãe era do tipo que gostava da segurança das coisas de sempre. Cozinhava sempre peixe às sextas-feiras, ia ao mercado na quinta, almoçava ao meio dia, mantinha um casamento há 10 anos, mesmo que ao seu lado dormisse um corpo quieto, mudo e sempre sonolento. “Vou esperar”. A recepcionista disse, no entanto, que a cabeleireira só chegaria à tarde, pois havia trocado de turno com o novato no salão. A menina, impaciente, pediu à mãe que qualquer um cortasse seu cabelo. O dia era dela. Em dias assim, não se pode esperar. O prazer dura muito pouco, ao contrário da agonia, que se arrasta.
A recepcionista chamou o novato. Cabelos curtos, guarda-pó, óculos de aros finos. Ele chamou a menina, examinou os cabelos, notou que as pontas estavam queimadas. “Cabelos assim têm que ser tratados. Cabelos assim têm que ser cuidados, menina. São fios delicados, finos, virgens”. Disse para ela sorrindo. Pegou a menina pela mão e a levou para lavar os cachos. Separou o xampu, o condicionador, a toalha branquinha, ainda nunca usada. Era a sua primeira cliente no salão novo. Fez a menina sentar, ajeitou seu pescoço no suporte e ligou a água quente. A menina fechou os olhos, enquanto a água entrava nos seus cabelos. Gostava que tocassem nos fios, gostava da sensação parecida com os cafunés da mãe. Ele espalhava a água na cabeça da menina e o xampu. Esfregava, esfregava, esfregava. Jogava a água, enxaguava. Jogou o condicionador. Esfregava, esfregava, esfregava. Os dedos dele invadiam os cachos e iam pousar na cabeça da menina. Era como um cafuné maternal. A menina fechava os olhos, enquanto ele massageava. A mãe lia a revista Caras, a recepcionista se distraia com uma canção que tocava no rádio, enquanto fazia a relação dos produtos para o salão. A menina foi cochilando aos poucos, como sempre acontecia quando a mãe lhe fazia cafuné.
A respiração da menina estava leve. A sensação de tocar a pele da menina através dos cabelos fazia com que sua mão pesasse na cabeça da criança. A água escorria pelo ralo da lavanderia, e algo nele escorria para se concentrar em um ponto só. Deixou os dedos escorregarem para as orelhas pequenas da menina. A água escorria pela lavanderia e o sangue dele se concentrava na carne. A menina dormia. Seus dedos agora alisavam a nuca da menina. Nuca, ombros. Os olhos do homem fechados. A mãe e a revista Caras. A recepcionista e os cálculos. O homem substituiu o toque leve dos dedos por um toque pesado, como se pressionasse a pele da garota, até que viu, entre as flores azuis do vestido rodado, os seios pequenos apontarem. Começou a tocar aqueles seios-aurora e seu toque era mais e mais pesado. Com o peso da mão, a menina acordou e viu a mão do homem apertando aquilo que ela tinha vergonha de olhar no espelho. Ele tirou rapidamente a mão de cima do seu vestido e disse que tinha acabado de lavar seus cabelos. Ainda sonolenta, não entendeu a princípio o que acontecia, mas depois seus olhos se encheram de umas gotas doídas. Entendeu. Sim, entendeu. Entendeu quando lembrou do dia em que, quando abriu de madrugada a porta do quarto dos pais para dizer que tinha tido sonho ruim, viu o pai lamber os seios da mãe, enquanto a mãe tentava afastá-lo de si. Lembrou da mãe trancando as pernas e do que escorria entre os olhos dela. Lembrou do olhar da mãe olhando para cima, enquanto as lágrimas escorriam para sumir entre os cabelos curtos. Sim, ela entendeu.
Nada disse como a mãe. Sentou na cadeira, sem olhar para ele. “Corte tudo. Corte como o de minha mãe”. A mãe, ouvindo a menina falar, disse que não era para o homem lhe dar ouvidos. Eram só quatro dedos. “Não, eu quero igual ao seu, curto. Corte”. A menina já ensaiava o grito. A mãe, misturando-se então ao bege opaco da roupa, concordou então. Era o aniversário da menina. Hoje é dia dos desejos. Que seja feita a sua vontade. O homem pegou então o pente e a tesoura. Os cachos da menina despencavam no chão branco. A mãe lamentava a perda dos cachos da menina. Eram bonitos. Ela olhava para a menina e lembrava de quando era assim. A filha e seus cabelos longos era seu retrato antigo vivo. Fotografia de um tempo em que não havia invasões. Só bonecas e doces. O homem aparou uns cachos e deixou-os em cima da bancada. Terminado o corte, a menina viu os cabelos espalhados no chão. Ele estendeu a mão e lhe deu um cacho. “É para você guardar a lembrança deste dia. Feliz aniversário, menina”. Ela o olhou calada. Olhou para o espelho e viu nela a mãe. Cabelos curtos e seios pequenos. Um menino de peito? Segurou a mão da mãe, enquanto ela pagava ao cabeleireiro e não olhou mais para o homem. Saíram as duas do salão. A menina com o cacho nas mãos e a mãe com idéias para noite. Um bolo, doces encomendados na vizinha e refrigerante já no congelador. A menina só pensava no final do dia, no prazer-agonia. Só queria chegar em casa, tirar o vestido de flores azuis, guardá-lo junto com o cacho e enterrá-los no fundo da gaveta. Mas a mãe não tinha razão: ela cresceu mais rápido que os cabelos depois do corte.
(Janaína Calaça: Soteropolitana, hoje vivendo em São Paulo. Sente falta quase sempre de poder enxergar o horizonte, banalidade para uns, preciosidade para outros.. Gosta de acarajé e torta de limão e também gosta de cores fortes e carrega o vermelho na cabeça. Lê quadrinhos deitada no sofá laranja e rabisca de vez em quando uns contos tortos. Ri alto, é míope e usa sapatos rasteiros sempre. É graduada pela UFBA em Letras Vernáculas e largou no fim uma Especialização em Estudos Literários pela UEFS. Hoje descobriu o prazer sensorial da alquimia dos sabores. Escreve para o Casa de Burlesco e para o Jeguiando e está com projetos novos em andamento)
Foto: Ricardo Prado
* Captando a luz através do seu registro documental, o fotógrafo Ricardo Prado devota os seus olhares sensíveis à exposição do humano em suas mais variadas nuances. Para o artista, a aproximação com as pessoas permite observações múltiplas naquilo que se refere aos recortes cotidianos e íntimos dos homens. Na sua perspectiva criativa, ele nos arremata: “Vejo o ato de fotografar algo muito parecido com o de caçar, com a única diferença que ninguém se machuca. Todo o processo é igual: a necessidade de se posicionar num ponto estratégico para poder surpreender a presa, a escolha e uso do equipamento específico para cada finalidade, a tentativa de se tornar invisível aos olhos da caça, antecipar na mente os próximos passos de seu alvo, ter boa pontaria e rapidez no gatilho e, finalmente, contar com a ajuda da sorte. Isto vale para a fotografia de rua, documental, que é a que eu faço por paixão.”