19 de dez. de 2008,12:13
VIGÉSIMA OITAVA LEVA










Desenho: Felipe Stefani













CICERONEANDO





Mais um ano se aproxima de seus derradeiros instantes e, para nós, algo essencial marca a continuidade desse projeto chamado DIVERSOS AFINS. Trata-se da renovação incessante dos encontros humanos travados em torno da arte. Ao contrário do que muitos pensam, há, sim, em nosso país uma movimentação de pessoas interessadas nos conteúdos que versam sobre cultura de um modo geral. Uns produzem, outros apenas lêem, percebem e emprestam seus próprios sentidos de acordo com a pessoalidade de suas visões de mundo. Quando subestimamos a capacidade das pessoas de conferirem seu significado particular às manifestações expostas, jogamos fora um alimento possível e valioso de impulsionar um diálogo criativo mais efetivo. Obras não sobrevivem a acessos insensatos de reclusão. Pelo contrário, necessitam de uma provocação que só a diversidade de olhares é capaz de suscitar. E as veredas eletrônicas estão aí, cumprindo seu papel, abrigando expressões que merecem ser percebidas com os devidos recursos da sensibilidade. Nessa estrada incansável, adentramos as vias poéticas sentidas em Rodrigo Franco, Edson Bueno de Camargo, Gerusa Leal, Aroldo Ferreira Leão, José Inácio Vieira de Melo, Alexandre Bonafim e Romério Rômulo. Vestígios de um submundo humano desferem seus golpes pelas linhas do conto de Rodrigo Melo. O escritor W. J. Solha recria uma outra faceta para a grandiosa figura de Ariano Suassuna. Na pequena sabatina com a autora Lucia Fonseca, tomamos posse de um ambiente lírico onde veias intimistas pulsam vigorosamente. Aquele que espera subsiste incessantemente nas palavras de André de Leones. Na teia das combinações aleatórias, Caio Fernando Abreu é interpelado pelos relatos de Luciano Bonfim. Somos apelos musicais em Larissa Mendes e olhos cinéfilos em Bolívar Landi. Tudo aqui conflui para o encontro entre seres que partilham da mesma crença e, entre os atos que reverberam o humano, estão os contornos da arte de Felipe Stefani. Fomentar essa reunião de manifestações continua sendo nossa maior missão. Obrigado a você, caro leitor, por caminhar conosco durante mais uma jornada cultural!







*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.










JANELA POÉTICA (I)


Alexandre Bonafim


a Paulo César Gonçalves


(*)



Eu guardo entre as mãos o próprio tempo.

Ele me palpita em seu fluxo,

me arrebata em seu pulso.

Tão íntimo dele me revelo,

que eu não sei se meus braços

pertencem a mim ou a ele.

Minha boca cala seus pensamentos

mais fundos, suas emoções mais vibrantes.

Com ele aprendo a amar a distância dos astros,

o roteiro dos navios apagados pela despedida.

Eu não sei se sou o tempo ou se ele é em mim.

Sei apenas pressentir o seu murmúrio nas brisas,

na sede das crianças, nesse fogo a me atar

ao âmago de tudo o que vive.

Por amar em demasia o tempo,

fiz-me espanto plenamente lúcido.




(*) Poema integrante do livro A margem do tempo.





(Alexandre Bonafim é poeta, contista e ensaísta. Nasceu em Belo Horizonte, mas passou a maior parte da vida pelas terras do estado de São Paulo. É eternamente mineiro em exílio, mineiro nas raízes da vida. É mestre em literatura brasileira. Defendeu a seguinte dissertação: "A graça poética do instante: poesia e memória nas crônicas de Rubem Braga". Atualmente é doutorando pela USP, em literatura portuguesa)









Desenho: Felipe Stefani













O SENADOR ESTÁ ESPERANDO


André de Leones





1. Ele estava sozinho, pressionando a testa com a mão esquerda e suando muito. O ar condicionado estava ligado. Afrouxara a gravata, três copos com água bem gelada, todas as luzes acesas, mas ele ainda suava muito no momento em que atendeu ao telefone. Uma voz metálica comunicando algo. Ele disse: Mande entrar. O jornalista adentrou o gabinete, apertou a mão do senador, sentaram-se um de frente para o outro, a mesa entre eles, e a primeira pergunta foi: O senhor está passando bem? Sim, o senador balbuciou. Por que não estaria? O senhor está suando muito. Eu estou bem, disse, ajeitando-se na cadeira. O jornalista anotou alguma coisa em seu bloco e, enquanto o fazia, comentou: Foi um belo discurso. Algo ligeiramente parecido com um sorriso aflorou no rosto do senador. Eu sei. Obrigado. Trabalhei nele durante toda a semana. A semana inteira? Sim. Desde quando eu... decidi... Eu mesmo o escrevi. O senhor é famoso por isso. Pelo quê? Por escrever os próprios discursos. Já escrevi romances. Discursos não são nada. E o que o senhor pretende fazer agora? Tirar férias. O jornalista sorriu e disse: Voltar a escrever romances? O sorriso do senador desapareceu. Ele ainda suava muito.


2. Treze minutos depois, o repórter agradeceu pela exclusiva, apertou a mão do senador e deixou o gabinete. O senador permaneceu sentado à mesa, tentando se lembrar do que dissera ao jornalista. As palavras saíram sabe-se lá de onde e passaram por sua garganta e pela sua boca e respingaram fora, por sobre a mesa, até os ouvidos do jornalista. Ele não se ouvira falando, surdo de si para si, surdo em si mesmo. Passou a mão direita pela testa ensopada de suor. Alguém bateu à porta e adentrou o gabinete. Ele ouviu as batidas e a porta sendo aberta e fechada e os passos atravessando o gabinete. O senhor está precisando de alguma coisa?, perguntou um assessor parado à sua frente. Não te vi entrar. O senhor me desculpe. Eu bati. Eu sei que você bateu. Mas eu não vi você entrando. O senhor me desculpe. Não precisa se desculpar. Não estou reclamando, repreendendo, nada. O senhor precisa de alguma coisa? O senador abriu os olhos e encarou o assessor. Muito jovem, terno impecável, cabelos penteados para trás, barba feita. Seis anos e meio juntos. Leal, discreto, inteligente. Eu preciso de alguma coisa? Uma toalha de rosto. Úmida. Vou providenciar, senhor. No momento em que o assessor saiu, o telefone. Sua esposa, anunciou a voz metálica da secretária. Pode transferir. Como você está? Não pergunte. Já perguntei. Não pergunte. Vou pegar o próximo vôo. Para onde? Brasília. Para junto de você. Estou indo amanhã cedo. Para que vir para cá? Amanhã cedo? Amanhã cedo. A imprensa está reunida aqui embaixo. Estão perguntando sobre você. Mas é claro que a imprensa está reunida aí embaixo. É claro que estão perguntando sobre mim. Você concedeu alguma entrevista? Uma. Por quê? Eu devia um favor. Não podia dizer não. O que ele perguntou? Não me lembro. Como não se lembra? Não me lembro. Vou desligar. Me liga mais tarde? À noite. Já anoiteceu. Mais tarde. Eu ligo. Vou esperar. Certo. Fica bem. Certo. Vai passar. Certo. Tudo isso vai passar. Certo. O assessor trouxe a toalha e o senador a dobrou ao meio e a colocou sobre o rosto. Quer me dizer alguma coisa?, perguntou, a voz abafada pela toalha. O ministro me ligou. Disse que o senhor não se preocupasse. Que está tudo acertado. O senhor cumpriu com o combinado. Agora, acabou. O pior já passou. O que mais ele disse? Que os valores já estão à sua disposição. E lhe desejou sorte nas próximas eleições. Ele disse isso? Me desejou boa sorte nas próximas eleições? Sim. Disse que é uma questão de tempo até o senhor voltar. Que essa casa não vive sem o senhor. Sob a toalha, o senador sorriu. Vou embora. Avise o motorista. Pode ligar daqui. O assessor pegou o telefone e teclou alguns números. Chame o motorista. O senador está esperando.


3. Respirou aliviado ao adentrar o Piantella: o restaurante estava praticamente vazio. Ainda era cedo. Sentou-se a uma mesa no segundo andar, próxima ao “cantinho do doutor Ulysses”. Pediu escargot bourguigne como entrada e carré de cordeiro dourado ao forno como prato principal. E para beber, senhor? Romanée-Conti Petrus 1982. A garrafa. Não costumava pedir sobremesa. Enquanto esperava, angustiou-se pensando nos restaurantes de sua cidade. Alguns meses no exterior, sim. Ela ia gostar disso. Afastar-se de tudo. Até a próxima bola da vez, quando se esqueceriam dele. Um por vez. Em fila. Isso. A minha vez, depois a vez dele, depois a vez dele, e assim por diante. A enorme roda girando. Sorte e azar. O celular começou a tocar. Suspirou. Sim? Foi um belo discurso, senador. Me disseram isso mais cedo. Tenho um recado para o senhor. De quem? O senhor sabe de quem. Pode falar. Ele está com o senhor agora e estará com o senhor daqui a um ano e meio. Nas eleições. Ainda não sei se vou me candidatar. Sabe, sim. Eu sei, o senhor sabe, ele sabe. Certo. Então, boas férias. Obrigado. O garçom trouxe o vinho. Ele bebeu duas, três taças. Está comigo agora e estará comigo daqui a um ano e meio. Nas eleições. Depois das férias. Encheu novamente a taça. Quinze minutos depois, ainda não tinham trazido a entrada. Chamou o garçom. Estou esperando. O garçom pediu desculpas, foi até a cozinha e disse: O senador está esperando.







(André de Leones é autor de “Hoje está um dia morto” (romance) e “Paz na Terra entre os monstros” (contos), ambos publicados pela Record, e não está esperando coisa alguma)









Desenho: Felipe Stefani











JANELA POÉTICA (II)


Romério Rômulo *



dizer te amo,

bruta matéria,

se a resposta tem dentes de desgaste.


se as vísceras do mar te alimentassem

sobrava-te a imensidão e pura dor

carregarias no colo, aedo adjacente

dos tonéis do riso. é puro o espaço

do teu corpo, somado e mal somado.


quando virás trazer a gota do teu olho?

que multidões te encalham o riso

e a luva? vestes o quê no ventre?



* Poema integrante do livro Matéria Bruta




(Romério Rômulo: um poeta confuso que, para ordenar o pensamento, tem sempre à mão os sonetos do Camões, o Augusto dos Anjos e o João Cabral)











OUVIDOS ABERTOS (I)


Por Fabrício Brandão





SIJI – ADÉSIJI








Munidos com um pouco de paciência e uma dosagem intensa da tão instigante curiosidade e logo encontramos verdadeiras preciosidades em matéria de música. E quando me refiro à música, acentuo o caráter de qualidade na captura de discos que chamam atenção pela gigantesca capacidade de serem completos. Não poderia ficar fora desse tipo de enquadramento o belíssimo trabalho do londrino de alma essencialmente nigeriana Siji. Num percurso preciso por estilos que transitam basicamente em torno do soul típico dos anos 70 e de ritmos africanos, o cantor mostra toda sua virtuose. Só para se ter uma idéia, influências de peso como Fela Kuti e Marvin Gaye podem ser percebidas por entre os vãos vigorosos da sonoridade desse talentoso artista.


Com arranjos enriquecidos de sopros e recursos percussivos, dentre outros elementos não menos valiosos, Adésiji é um álbum que prima pela referência de positividade presente em suas canções, muitas delas mesclando ritmos dançantes com uma boa dose de suavidade. Há no trabalho uma atenção voltada para as vivências pessoais do cantor, exalando o olhar humano que perscruta questões sociais, tais como a guerra e o meio ambiente, além de uma atenção especial às raízes espirituais de sua ancestral Nigéria. São verdadeiros destaques do disco as faixas Eniyan Dudu, Yearning For Home (que destila sotaques de samba), Morenike, Room Full of Noise e Ekundayo.


Além do inglês, a vivacidade do canto de Siji também aparece muito bem caracterizada no idioma iorubá, presente em boa parte das músicas. Diga-se de passagem, as melodias predominantes no cd vão beber justamente nos apelos sonoros africanos, algo que somado à interpretação do artista serve para posicionar o disco seguramente como um dos melhores do gênero soul/jazz dos últimos tempos. Vasto mundo esse nosso, e, enquanto a terra gira, movem-se também outros seres a propagar formas tantas de anunciar aquilo que pensamos e sentimos. Como diria Gilberto Gil, essa é pra tocar no rádio.











Desenho: Felipe Stefani













JANELA POÉTICA (III)



MOMENTO


Gerusa Leal





O espelho que me interroga evoca antigo retrato

no quarto deserto, inundado por oceano de aço,

onde correntes de versos vazados a faca se esvaem

em cartas não escritas, laços frágeis,

pássaros feitos pedra em pleno vôo.


Nostalgia de percorrer estradas

sem rumo certo ou prazo de chegar.






(Gerusa Leal é uma escritora entre o conto e o poema. Psicóloga de formação, a pernambucana, recifense, atualmente reside em Olinda. Tem escritos publicados em pelo menos dez coletâneas, alguns até premiados, mas seu primeiro livro-solo, “versilêncios”, prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras só deve ser lançado em março do ano que vem)








Desenho: Felipe Stefani



















ARIANO TOUCHSTONE


W. J. Solha






Quando chegou a vez de pintar uma das trinta e seis telas do painel que está no auditório da reitoria da UFPb, a que faria referência à peça de Shakespeare “As You Like It” (que uns vertem para “Como quiserdes”, outros para “Como Gostais”), pensei imediatamente na figura de Ariano Suassuna no papel do personagem Touchstone, o grande “professional clown” do Bardo. Sapequei um chapelão vermelho e uma gola sanfonada no homem de Taperoá – tudo bem século XVII - e lá está a cara marota do nosso grande escritor “eternizada” ao lado de Júlio César, Hamlet, Julieta, Cleópatra, Ricardo III, etc, etc.


Não foi, no entanto, apenas a identidade histriônica Ariano/Touchstone que me fez juntá-los numa só figura. O que me pegou, no texto shakespeareano, também, foi esse nome – “Touchstone”, “Pedra de Toque” – que era o jaspe, quartzo ou basalto utilizado antigamente para riscar uma liga metálica, ouro ou prata, para avaliar seu grau de pureza. Isso porque Ariano tornou-se a pedra de toque no que se refere à pureza de nossa nordestinidade. Dificilmente a Paraíba, o Nordeste, o Brasil e América Latina poderiam produzir alguém mais autêntico, mais radical na defesa de uma arte ligada às nossas raízes, ao nosso Eu, seja na literatura e no teatro, como no cinema, na música, na pintura, escultura, na poesia, na dança. Tudo, entretanto, de um modo “clownesco”. Esse detalhe me faz pensar em Louis Armstrong e no que ele fez pela música negra americana, explorando sempre, ao lado da genialidade, em suas apresentações, seu lado cômico, “para ser aceito pela burguesia branca”, como já ouvi alguém dizer, parece-me que com razão. O foco da graça ariana é o equívoco, segundo ele, do lado Science de todo Chico de que o país está cheio. O próprio nome Ariano acaba por me fazer associá-lo ao nacionalismo exacerbado dos nazi-fascistas. Mas ele dilui isso no que parece adotar o lema de Molière - Ridendo Castigat Mores, Rindo Castiga (ou Critica) os Costumes – num jogo de cintura tão magistral, que faz com que ele contorne o perigo e, com o peso de seu teatro, de seus romances, de seus ensaios, de seu Movimento Armorial, de sua história-de-vida, de suas aulas-espetáculos, de sua intensa agitação cultural, está-lhe proporcionando um final de vida raramente tão glorioso, apoteótico para um artista, com direito até a samba-enredo no Rio e a ver “A Pedra do Reino” adaptada para o teatro pelo Antunes, e para a televisão pelo Luis Fernando Carvalho, em nome da Globo.







Pintura: W. J. Solha





Ariano é o riso geral à sua volta. É a sua casa, que é a cara dele, lá no Recife. É o belo livro de fotografia a respeito dele, do Gustavo Moura, é a peça escrita pelo Astier Basílio e montada no Rio, é a oportunidade rara, que tive, quando vi o material - quase bruto ainda -, de “O Senhor do Castelo”, documentário do Marcus Vilar, de presenciar o escritor chorando ao se lembrar do pai, assassinado quando ele tinha três anos, cena que Marcus, dominado por forte impulso ético, eliminou depois.


Que o grande Suassuna receba, em meio a toda a pirotecnia que está acontecendo desde a comemoração de seus oitenta anos, a reverência que lhe faço, servindo-me, para isso, de seu chapelão de Touchstone.








(Meti-me em teatro, cinema, poesia, pintura - já os deixei de lado - permaneço romancista desde criancinha e quero ser Guimarães Rosa, Machado, Graciliano, Zé Lins e Euclides da Cunha quando crescer)











JANELA POÉTICA (IV)





Foto: Leila Andrade





VESTÍGIOS


Leila Andrade



O grito do tempo é inevitável

há esse eco por dentro

uma janela aberta

e o sol.

Marcas lavam a face

(como mofo em paredes)

no lugar da lágrima.


Avisos de maturidade roubada

de tantos lugares imaginados

revelam-se em noites de sonhos

no desalinho dos lençóis.


A vida que segue deveras bruta

talvez tenha sido apenas

um risco no escuro, uma luz que entra

tantos desejos ocultos em gavetas.












Desenho: Felipe Stefani











PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Fabrício Brandão




Mas os livros que em nossa vida entraram / São como a radiação do corpo negro / Apontando para a expansão do universo. Com estes versos da bela e poética canção Livros, Caetano Veloso materializava os apelos sensoriais que representam um pouco a relação daqueles que devotam amor às espécies livrescas. Definitivamente, a aura que envolve uma obra rompe as meras noções do chamado amor táctil, daquela idéia imediata de apalpar e assumir a posse física do objeto, tudo isso antes de devorá-lo com as garras profundas dos olhares nossos. Tampouco adianta prestarmos atenção a falácias comparativas que se arrastam como prenunciadoras da predominância das páginas eletrônicas em detrimento das palavras arroladas em papel.


Nada disso importa quando ainda podemos ser arrebatados rumo à terra lírica e misteriosa em que está fundada a Literatura (justamente essa, com inicial maiúscula mesmo). Adentrando a seara das válidas construções poéticas, tomamos intimidade com autores que até parecem velhos conhecidos. Em meio à leitura dos versos introspectivos de Cantares (Editora da Palavra – 2007), a carioca Lucia Fonseca desponta nos domínios pessoais como quem compartilha segredos e visões talvez despercebidos pelos atropelos de nossa tão viciada pressa. Ali, entre as páginas que exprimem veredas de uma interioridade, estão também as marcas reveladoras de uma vida maturada em escrita.


Foi no início da década de 80, com a publicação de Invenções do Silêncio (Ed. José Olympio), que Lucia realizaria sua primeira incursão no mundo editorial. Depois disso, seguiram-se outras publicações, tais como Cadernos de Geografia (Ed. Mitavaí – 1985), Confissões de Penumbra (Ed. Rosa dos Tempos – 1997) e A Última Grande Dama (Ed. Jobim Music), entre outras. No entanto, é preciso chamar atenção para a obra mais recente da autora, O Paraíso era antes (Editora da Palavra – 2008), livro de poemas que constrói com precisão e sensibilidade as memórias emanadas pelo sopro da infância. Sem o peso de uma suposta nostalgia que a fase pueril possa sugerir, aos versos de Lucia vêm se juntar as imagens de um tempo que sabe perceber seus enlaces afetivos. Por entre os poemas, os sentimentos dotados de intensa subjetividade fazem par com ilustrações assinadas pela própria escritora. Diante dessa atmosfera que concilia o real e o lúdico, foi possível conversar um pouco com Lucia e prestar atenção a algumas nuances que atravessam seu ofício de cantar a existência em versos.







Lucia Fonseca
Foto: arquivo pessoal







DA - “O Paraíso era antes”, seu livro mais recente, promove uma visita aos recantos sutis da infância, algo concebido sem o tradicional peso dos saudosismos que tanto limitam as visões. O que impulsionou você a debruçar os olhares sobre tal idéia?


LUCIA FONSECA - É possível que, por um lado, a morte de minha mãe, ocorrida em 2000, funcionando como perda da última testemunha e referencial de uma série de vivências. Pelo outro lado, a proximidade dos meus netos, trazendo-me ao mesmo tempo o convívio com o que há de eterno na infância e o contraste entre uma infância “de quintal” e uma infância “de apartamento”. Estes podem ter sido fatores desencadeadores dos poemas que se tornaram “O Paraíso era antes”.


DA - Diria que a conjugação entre texto e imagem presente naquele livro representa um desejo de resgate face a um mundo atual tão impregnado de descrença e pureza?


LUCIA FONSECA - Creio que, sem saber qual seria a segunda pergunta, a resposta à primeira já fala nesse contraste inevitável e sempre presente entre o ontem e o hoje. Note-se que muda o mundo enquanto a criança se faz adulta. Há uma interação constante entre as duas mudanças. Agora, onde você coloca desejo de resgate, eu colocaria desejo inconsciente de resgate. Eu nunca tenho uma consciência total de onde quero chegar, a não ser quando o próprio trabalho começa a indicá-lo claramente. Antes há mais uma noção difusa de rumo.


DA - “Sobre um poema quase nunca há nada a dizer. Deseja-se que seja amado, se for possível”. Em “O Paraíso era antes”, você assinala essa frase de Cecília Meirelles como quem confere um amplo ambiente de autonomia subjetiva ao fazer poético. Há mais mistérios contidos num poema do que possamos imaginar?


LUCIA FONSECA - Acredito que sim. Creio que ela sugere que o texto deva ser abordado de um modo direto e amoroso, mais que de um modo excessivamente analítico e consciente. Algo com que o leitor crie uma sintonia e que passe a fazer parte do seu universo, do seu convívio.


DA - Há um quê de existencialismo presente nos poemas de “Cantares”, refletindo temas onde aflora um lirismo intimista. São muitas as razões de quem se atira a um percurso por lugares tão delicados da alma humana?


LUCIA FONSECA - Creio que a necessidade de conhecer esses lugares apenas suspeitados e buscar percursos anteriores nem sempre isentos de dor.


DA - Acredita que sua opção pelo uso dos versos livres representa um caminho alternativo onde o pensamento transcorre sem amarras mais tradicionais?


LUCIA FONSECA - Não sei. Como muitos poetas, uso versos livres, mas uso também os metros tradicionais do português, nem sempre presos a formas muito estritas. É possível que, em certas épocas, tenha usado mais uma das formas; em outras épocas, as outras. Mas não sei a razão dessas preferências.


DA - Ao longo do tempo, o universo familiar segue como um ponto de referência para seus escritos. De que forma estas sensações se materializam em textos?


LUCIA FONSECA - Através de um longo mergulho no silêncio, silêncio este povoado de vivências, geralmente antigas e que serão, em algum momento, transformadas em canto. Isto pode ser buscado, mas, na minha experiência, é um fenômeno sobre o qual não tenho total controle. Uma vez conseguindo “conjurar” um texto básico, o trabalho posterior, os 90% de transpiração são totalmente conscientes.


DA - Você percebe com bons olhos essa explosão de escritos impulsionada pela internet?


LUCIA FONSECA - Conheço pouco o fenômeno. Mas acho que a Internet é um instrumento poderosíssimo e, como tal, tem um enorme potencial para veicular de tudo.


DA - Mesmo considerando a ínfima quantidade de leitores ativos no Brasil, não acha que muita gente ainda é subestimada?


LUCIA FONSECA - Creio que sim. A ínfima quantidade de leitores, assim como de livrarias, já é sintoma de um ambiente cultural pouco propício ao surgimento e conhecimento público de bons autores.


DA - A superficialidade dos nossos dias às vezes nos impõe isolamento e solidão. Em sua opinião, como poderemos usar a arte para resistir a tais subtrações de vida?


LUCIA FONSECA - Creio que a superficialidade da vida atual tenta negar qualquer isolamento e solidão, mesmo os que seriam inerentes à condição humana, assim como a dor que essas condições acarretam. Todos estes fatores são varridos para debaixo do tapete através do consumo, da TV, da Internet e o mais, sendo, com isto, agravados. A arte pode ser usada, sim, como um meio de expressão dessas experiências e um alerta para a sua negação, tanto para o próprio artista, como para quem toma contato com a obra.














Desenho: Felipe Stefani












JANELA POÉTICA (V)



REGISTRO DA FALA DO SILÊNCIO


José Inácio Vieira de Melo



O que mais tem falado em mim é o silêncio,

mas um silêncio plural – de fogo –

que com sua língua escarlate abrasa as palavras

e as queima antes de serem.


Um silêncio de lá, de longe – das plagas interiores –

que fala o tempo todo sem dar nome ao dito.


Em sonho é imagem: e vejo, inebriado,

a sua cara – semblante formidável:

tão formoso quanto pode ser um deus.


O silêncio, este que fala e de que tanto falo,

é um hieroglífico poema,

e estes versos: tradução e codificação.





(Meu nome é José Inácio Vieira de Melo. Sou um poeta dos brasis, pastor de nuvens e de versos. Desde que me entendo por gente, tanjo meu gado pelos céus e sertões das Alagoas, pelas caatingas baianas e pelos beiços dos igarapés dos Tocantins. Além da tradição pastoral que herdei de Davi, o salmista, e dos vaqueiros Moisés, meu avô, Pedro Vaqueiro e Damião Alagoano, o Destemido, namoro com o mar - esse açude que não tem fim. Para mim, boneco de barro, filho do Sol, tudo é sertão e tudo é motivo para a poesia - força motriz da minha existência. E o resto a gente vai inventando, um passo depois do outro - eis o caminho)











Desenho: Felipe Stefani











ECO


Rodrigo Melo



Uma das luzes do corredor não funcionava direito. Piscava três vezes, como numa espécie de aviso, e então, logo em seguida, acendia-se completamente, clareando boa parte do caminho, para cinco segundos depois voltar a piscar outra vez. Edgar passara centenas de vezes por aquele corredor, mas talvez não tivesse reparado naquilo. Sua cabeça sempre cheia de outras coisas. Abriu a porta de uma das salas e entrou. Sentado numa cadeira, com os braços e pernas amarrados, um homem jazia, a cabeça pendendo para a frente, nu. Edgar olhou-o com curiosidade e atenção, porém uma curiosidade comum, costumeira. Acendeu um cigarro e circulou ao redor da sala, notando as feridas inflamadas no corpo do sujeito. Não gostava de estar ali, do cheiro que aquelas salas tinham, um misto de suor, sangue, medo, fezes e urina. As paredes também, escuras, mofadas, davam-lhe uma sensação estranha, um certo distanciamento da vida e de tudo o que ocorria lá fora. Se pudesse, faria tudo num outro lugar. Caminhou até uma extremidade e pegou um pedaço de pau, quase um bastão, que ficara num canto. Cutucou o homem sobre a cadeira, mas ele continuou imóvel, com a cabeça pendendo para um lado. Por um instante, Edgar olhou para o relógio no pulso: eram quatro e quinze da tarde. Lembrou que estacionara o carro num lugar proibido e calculou a quantidade de multas que já recebera. Então, cutucou o homem mais uma vez, agora mais forte, e ele se mexeu, virando a cabeça e abrindo aqueles olhos inchados e escuros.


- Agu...a – murmurou ao enxergar Edgar, a voz rouca, distante.


Edgar andou até a porta. Encostado à parede, um balde repleto de um líquido grosso, de cor marrom, que ele mesmo não sabia o que era. Segurou o balde e, aproximando-se do homem, jogou o líquido no rosto dele. O outro contorceu-se, gritando coisas sem sentido, o corpo ainda amarrado mas a cabeça girando desesperadamente para os lados, como se receasse se afogar. Edgar puxou uma cadeira e sentou-se de frente para ele.


- Quer falar agora?


Havia sangue coagulado no chão da sala, havia também aquele rosto disforme, o corpo já muito magro feito um faquir.


- Você pode sair daqui quando quiser, Jorge, só precisa cooperar um pouco. Entende isso?


O rosto do homem, comprido, os olhos claros, bem feitos, o queixo furado, as feições que herdara do pai, transformara-se agora apenas numa máscara negra de dor. Não sabia há quanto tempo estava naquele lugar, tampouco se um dia sairia dali.


- Só precisa dizer um nome e tudo volta ao normal – Edgar disse, acendendo outro cigarro.


As mãos de Jorge, antes bonitas, mãos de um jovem sonhador, tinham agora um aspecto estranho, pareciam um pouco cinzas, um pouco amarelas, os nós dos dedos saltando, tão grandes.


- Vou poder ir? – perguntou, num esforço.


- Claro. Não já falei? Tem a minha palavra.


Jorge ficou, por algum instante, com o olhar perdido, sua respiração tornou-se mais forte e ele então chorou como um homem que acaba de perder um filho. Depois se recuperou, virou-se para Edgar e disse:


- Lauro...


- Lauro? - Edgar levantou-se, aproximando o seu rosto ao do outro.


- Lauro... – repetiu.


- Lauro de quê, porra? Fala!


-... Diniz...


Edgar sorriu, seus olhos brilhando feito imensas constelações, tirou o celular do bolso e discou.


- Oi. Consegui... Sim... Lauro Diniz, sabe quem é?... Bom...Não, não, foi rápido... Certo. Qualquer coisa você me liga. Tá bem.


Desligou o telefone e encarou o outro sentado na cadeira. Aquele cheiro no ar, forte, ruim, continuava, o cheiro de quem não presta, pensou. Levou uma das mãos às costas e puxou o Taurus. Olhou-o por um instante – ganhara-o há alguns anos, presente de um antigo superior. Permaneceu um tempo com a arma na mão, pensativo. Então virou-se e apontou-a para a cabeça de Jorge e atirou. O barulho ecoou pela sala, mas depois de alguns segundos o silêncio voltou a predominar: ficou apenas aquele eco distante, de algo feito a quilômetros dali. Ninguém apareceria, de qualquer forma. Quase sorriu ao pensar nisso. Em seguida olhou para o relógio: eram quinze para as cinco da tarde. Guardou o Taurus, abriu a porta da sala e voltou pelo mesmo corredor - a lâmpada piscando uma, duas, três vezes, de repente acendendo-se num clarão, para logo depois voltar a piscar outra vez.





(Rodrigo Melo mora em Ilhéus, Bahia, e escreve prosa pra não ser chamado de poeta)










Desenho: Felipe Stefani









JANELA POÉTICA (VI)



PENA


Rodrigo Franco




Estiradas as asas e sua pena
que cai num parafuso
ao levar com ela tudo
o que demais sustenta

Passa por nós numa brisa
assovia seu desuso
mais que dela, da brisa
que escorre os venenos ao frisar o rosto
que sempre nos quer, nos acena
ao despertar suave de seu fresco fuso

Vou com ela e ninguém me condena
enrolar delícias ao que consigo,
flutuar maciço ao clarim
serpentear
e, com o sopro gentil,
sobre grama,
por fim
repouso.






(Rodrigo Franco poeta, publicitário, ilustrador e designer gráfico. É paulistano desde 1980 e faz poesia desde os 14 anos. Escreve quando tem vontade e trabalha nas horas vagas)









DROPS DA SÉTIMA ARTE


Por Bolívar Landi




Queime depois de ler (Burn after reading). EUA. 2008.









Queime depois de ler é a primeira produção dos irmãos Ethan e Joel Coen, após a consagração de Onde os fracos não têm vez na última edição do Oscar. Traz um elenco estelar composto por George Clooney, Brad Pitt, Frances McDormand (mulher de Joel e vencedora do Oscar de melhor atriz pelo excelente Fargo), John Malkovich, entre outros. Ethan e Joel, diretores e roteiristas de seus filmes, voltam, mais uma vez, a um tema recorrente em sua obra: o humor negro.


A película pode ser caracterizada como uma comédia de erros. Tudo o que os personagens fazem, ou pretendem, parece resvalar para a mais absurda confusão. Nada dá certo. As situações caminham inexoravelmente para o desastre. O que move os personagens? As mesmas mesquinharias e equívocos que condicionam o comportamento de nossa sociedade. Os diretores aproveitam, assim, para expor de forma caricatural, os aspectos tragicômicos da natureza humana. Ironias à parte, o filme nos apresenta aquele humor tenso, com algumas cenas absolutamente inesperadas e um estilo de narração que pode desagradar aos que preferem uma linha de condução mais tradicional, razão esta para as críticas sofridas por Onde os fracos não têm vez. A câmera, por sua vez, está sempre atenta, à procura de ângulos inusitados, e é um elemento a mais que confere vitalidade à obra.


O desempenho dos atores é outro ponto forte da produção, com destaque para John Malkovich no papel de um ex-agente da CIA que é abandonado pela mulher. Brad Pitt surpreende como um amalucado e hiperativo funcionário de academia e Frances McDormand interpreta uma solteirona que aposta todas as suas fichas nos sites de relacionamento e nas promessas da medicina estética. Os personagens secundários são um show à parte e muitas vezes roubam a cena, como o advogado especializado em divórcios, o cirurgião plástico e o chefe do Serviço Secreto.


A obra, contudo, não chega a ser empolgante como outros trabalhos dos Coen, a exemplo de Fargo e Arizona nunca mais, e apresenta um roteiro, que mesmo inteligente e bem conduzido, não consegue manter o ritmo durante toda a exibição. Ela traz, no entanto, todos os elementos do estilo irreverente e criativo dos diretores. Em alguns momentos, o filme parece se aproximar do besteirol, certas piadas funcionam, outras passam completamente despercebidas, mas certamente esta comédia irá agradar aos que já se habituaram a este tipo um tanto quanto mórbido de humor que caracteriza os seus criadores.






(Bolívar Landi é formado em Comunicação Social e História e encontra nos filmes uma forma de conhecer realidades distintas e experimentar novas sensibilidades)









Desenho: Felipe Stefani








JANELA POÉTICA (VII)



O UNIVERSO É ESCURO


Aroldo Ferreira Leão



O universo é escuro dentro

E fora de nós. Fedidos

E insossos, seguimos nessa

Luta irreal mentindo a


Todo instante para os outros

E para nós mesmos, sombras

Diluídas na dor suja

Dos contratempos humanos.


O tempo nos destrói, nos

Lapida em seus terremotos

Inconseqüentes, vazia


Agregação poluindo

O esquecimento das células

Dos mortos e dos patetas.





(Aroldo Ferreira Leão é amante dos mistérios e das essências. Menino cheio de solidões e segredos, colisões e silêncios, fantasma que não sabe de onde veio nem para onde vai, neste universo de tantos desencontros. Continua a escrever e a publicar, até morrer. Louco buscando os ecos do tempo em si, penetrando, em cada obra, na vida de todas as coisas, no acaso que nos rege)












OUVIDOS ABERTOS (II)


Por Larissa Mendes




LITTLE JOY – LITTLE JOY







Um projeto despretensioso que resultou em um grande disco. Assim pode ser definida a parceria dos músicos Rodrigo Amarante (Los Hermanos e Orquestra Imperial), Fabrizio Moretti (The Strokes) e Binki Shapiro (cantora e namorada de Moretti).

Amarante e Moretti (o baterista é brasileiro, mas mora na América desde a infância) se conheceram em um festival em Portugal e depois de muita conversa às margens do Tejo manifestaram o interesse de trabalharem juntos. Um ano depois - durante a pausa dada por suas respectivas bandas – se reencontraram em Los Angeles por conta de uma participação de Amarante no disco do maluco-beleza Devendra Banhart e, juntamente com Shapiro, decidiram dividir uma casa (técnica recorrente no processo criativo dos hermanos) para compor o primeiro álbum da banda.

Lançado em novembro, com temas que variam entre o cotidiano (in)questionável e relacionamentos amorosos, o disco traz uma agradável mistura retrô que transita entre o folk e o pop-rock dos anos 60. Com sua levada rítmica, Amarante divide os vocais com a doce e melodiosa Binki Shapiro (Unattainable e Don’t Watch Me Dancing). A americana, inclusive canta um verso em português (e onde a sorte há de te levar/Saiba, o caminho é o fim/mas há de chegar”) da canção que abre o disco. Vale citar que os três músicos são multi-instrumentistas, e dividem-se entre percussão, piano, guitarra e contra-baixo.


Batizada com o nome de um bar de Los Angeles, a banda é elaboradamente simples como o encontro de amigos que apreciam boa música e um bom papo neste mesmo bar. Das onze canções, o disco possui uma única composição inteiramente em português, a sussurrada Evaporar, que sim, lembra muito Los Hermanos. Assim como How to Hang a Warhol e Keep me in Mind soam demasiadamente stroker. Destaque para as faixas Brand New Start (eleita pela revista Rolling Stone como um dos 100 melhores singles do ano), No One´s Better Sake, The Next Time Around e Shoulder to Shoulder.


Por essa e por outras, Little Joy parece perfeito para ser ouvido numa tarde ensolarada na estrada, rumo à praia ou à cachoeira mais próxima. Por falar em estrada, em sua turnê pelos Estados Unidos, o trio tem cruzado o país revezando a direção a bordo de uma van. Talvez venha daí um certo frescor-nostálgico das canções, como aquele sentido quando se revê as fotos da última viagem de férias. Como bem diz a tradução de um dos versos: “se nada aventurado, nada aprendido”. É, Amarante e sua trupe aprenderam direitinho a lição (e não me refiro apenas ao inglês impecável do Ruivo). Uma pequena alegria para o universo musical de todos nós.





(Larissa, menina-catarina, é Bacharel em Turismo e Hotelaria, hóspede-cinéfila de ouvidos atentos e turista no mundo das palavras)












Desenho: Felipe Stefani











JANELA POÉTICA (VIII)



PÉTALAS QUÍNTUPLAS


Edson Bueno de Camargo



didática de gafanhotos em marcha de devastação

cantares apaixonados por múltiplas fêmeas

lúbrica fertilidade

libido da destruição contínua

o esgotamento

a escassez

devorar e procriar até a total devastação

até que nada reste a não ser morrer


desejos prisioneiros de gotículas da chuva

pequenos universos roubados da suspensão do gelo

o amor atando tudo com fogo

e saliva

sangue

sêmen

o retorno à terra de nossos corpos


olhos de água corrente

carregam perigo

correntes de fluxo contínuo

a quebrar em pétalas quíntuplas

em brancos e amarelos quádruplos

semiótica de nuvens brancas e azul intenso

(aos poucos entendo mais e mais Elliot)





(Edson Bueno de Camargo escreve algumas coisas que acabam se chamando poesias pela boca dos outros, despudoradamente concorda. Já está se tornando uma espécie de eminência parda em sua cidade: tipo louco da aldeia ou bêbado conhecido. Tem algumas coisas publicadas em livros, coletâneas e pela Internet afora. Teme que se parar de escrever, torne-se invisível aos poucos)






Desenho: Felipe Stefani










COMBINAÇÕES ALEATÓRIAS


Luciano Bonfim




Caio Fernando Abreu, caríssimo,



Embora a década fosse outra, e outros os delírios, acredite, não era um caso de amor.


Ela parou de ler Hilda Hilst e olhou para os outros três, bem devagar, um por um, mas apenas a moça de óculos sorriu, dizendo não saber o que era bouleversements.


Ela acendeu mais um cigarro, secou a taça de vinho e, em voz alta, acompanhou outra vez Ângela Ro Rô:


Tola foi você...”


Você sabe, quando ela aponta alguém que está afim, dá um puxão disfarçado no lenço. Então, pede: maçã!, e não desiste enquanto não for posta a mesa farta para a ceia plena.


Mas sei com certeza que nem você nem ninguém vai me ouvir, e você deve dizer:


- Tenho um compromisso às seis.


Contudo, a moça de óculos, lembras da moça de óculos?, ficou segurando a mão dela e passando os dedos em seus cabelos enquanto ela chorava.


A princípio esquiva, a moça de óculos (cara lavada, um vestido amarelo claro de algodão, sandálias nos pés pequenos, de unhas sem pintura) acabou cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas.


Até um dia em que:


Ela estrangulou, vampirizou e assassinou a outra.


Em seguida, deu um salto em direção à janela gritando que ia se jogar, que ninguém a compreendia, que nada valia mais a pena.


A verdade é que não havia ninguém em volta.


Além da copa de cinamomos, o céu azul não tinha nuvem alguma.






(Luciano Bonfim nasceu em Crateús – CE. É autor de contos e poemas, dentre os quais, “Dançando com Sapatos que Incomodam (2002)” e “Beber Água é Tomar Banho por Dentro (1992 e 2006)”. É professor da Universidade do Vale do Acaraú – UVA. A série “Combinações Aleatórias” faz parte do livro “Móbiles [hestórias e considerações]” – Edições do Caos, 2007)










Desenho: Felipe Stefani








* O paulista Felipe Stefani é poeta, artista plástico e fotógrafo. Tem poucas palavras sobre si mesmo, mas variadas formas de expressão. Já fez de tudo, até biologia, porém foi na arte que encontrou meios de se relacionar com o mundo. Seus traços aparentemente simples evocam sentimentos fortes. O humano é o tema principal dessa mostra, mas sua percepção navega também por outros caminhos: as imprescindíveis impressões dos lugares visitados. Faz parte do grupo Só Desenho. Ilustrou o livro “Teatro das Horas”, do poeta André Setti, editado pela Edições K.






 
publicado por Fabrício Brandão
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