30 de jun. de 2009,10:00
TRIGÉSIMA QUARTA LEVA - ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO




Arte: João Colagem










CICERONEANDO



Antes desse verdadeiro colosso chamado internet, divulgar escritos e outras tantas manifestações artísticas era tarefa extremamente difícil. Quem efetivamente possuía uma credibilidade ou qualidade devidamente atestadas junto aos meios editoriais gozava de uma vantagem considerável frente a uma multidão de escritores e artistas quase que completamente desconhecidos do grande público. Ao lado da explosão virtual que observamos hoje, a virtude das novas mídias foi a de trazer à tona uma crescente dinamização do pensamento. No entanto, faz-se necessário acompanhar tudo com devida cautela e uma adequada dose de senso crítico, pois a busca pela qualidade abriga uma complexa teia de referências. Quando a Diversos Afins surgiu, deparou-se com uma infinidade de possibilidades que só aumentaram ao longo do tempo. O ideal de se divulgar autores “anônimos” sempre moveu os propósitos da revista, tendo em vista a condição que os novos recursos interativos propiciavam. Aprendemos muito com tudo o que foi vivido, sobretudo com as descobertas originadas através das valiosas trocas humanas. É gratificante saber que um número considerável de pessoas se juntou ao nosso projeto e ajudou a configurar nossa identidade. A melhor forma de celebrar esses três anos de existência do site é dando sequência aos caminhos. Melhor de tudo é saber que o valor da descoberta permanece aceso. Em nossa Trigésima Quarta Leva, somos arrebatados pelos signos poéticos de Felipe Stefani, Elane Tomich, Assis de Mello, Dimitri Padilha, Héber Sales, Iara Carvalho, Viviane de Santana e Jorge Elias Neto. Numa pequena sabatina, deparamo-nos com as falas sensíveis do cantor e compositor Kiko Klaus. Absorvemos recortes da juventude de nossos tempos pelos contos de André de Leones e Lúcia Bettencourt. Na sugestão cinéfila de Larissa Mendes, um percurso por alguns dos sentidos de Feliz Natal, filme de Selton Mello. As linhas de Ana Guimarães nos remetem às imprecisas veredas das travessias do ser. Com as noções do “conhecimento aproximado”, compactuamos dos olhares presentes na crônica de W. J. Solha. A arte pungente das imagens de João Colagem arremata um olhar crucial em torno do contraditório espírito humano. Diante dessa celebração da existência, somos imensamente gratos a todos aqueles que, durante todas as Levas, dialogaram direta e indiretamente com nosso trabalho. A você, caro leitor, o nosso especial agradecimento pela atenção a tudo que realizamos entre caminhos e palavras!




*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.







JANELA POÉTICA (I)



POEMA MÍSTICO


Felipe Stefani



Repentino,

na clareira vulcânica da idade,

concebi assim a leitura da memória:

de que tudo que desata, cresce e morre

tem um gesto,

um gesto de princípio.


Deveríamos chamar ritmo

tudo que nos torna exaltados.


Somos tentados a ver dentro do sonho,

assim nos recriamos do que nos causa escândalo,

nomeamos a noite, a tarde e a manhã dos tempos

como fôssemos deuses.


Somos ritmo do sonho,

lembrando, vagando,

no fim de cada era,

causando escândalo.


Vede, as estrelas,

os frutos das figueiras,

o templo

furiosamente serão lembrados.

Viveremos disso,

dando ao mundo

um nome de batismo.


Chamaremos inspiração

tudo que concentra,

avança e se enraíza.


Impérios definham.

Somos tentados a dizer que foi um sonho,

um sonho dentro do sonho,

se concebêssemos tal geometria.

Pois também se lavram as águas antigas.

Vede, as águas calmas

são também colhidas.


O sonho não é sonho,

a memória não é memória.


Há sempre um Deus a redizer a história.




(O paulista Felipe Stefani é poeta, artista plástico e fotógrafo. Encontrou na arte uma forma de se relacionar com a existência. É autor do livro "O Corpo Possível", editado pelo Coletivo Dulcinéia Catadora, e do ainda inédito “Verso Para Outro Sentido”. Faz parte do grupo Só Desenho. Ilustrou o livro “Teatro das Horas” do poeta André Setti, editado pela Edições K, e “Sob o Silêncio do Anjo” do poeta Alexandre Bonafim, e do ainda inédito "Rascunhos do Absurdo" do poeta Jorge Elias Neto. Tem poemas e desenhos publicados em vários sites literários)










Arte: João Colagem











Tudo em seu devido lugar


André de Leones



We are accidents / Waiting, waiting to happen.

Radiohead, “There There”.



INTRO A ação transcorre em São Paulo no dia 22 de março de 2009 antes e durante e imediatamente após a apresentação da banda britânica Radiohead em um lugar chamado Chácara do Jóquei, onde, segundo informações passadas por um amigo deste narrador, pessoas aprendem a montar. É domingo e em função do show não há evidentemente ninguém aprendendo a montar. As pessoas ou personagens da ação, exceto quando citadas em conjunto (ex.: André & Fernanda, ou Rubens & Natália, ou Marcela & desconhecido), não se conhecem e sequer existem realmente. Apesar de uma das personagens (André) ter o mesmo prenome do autor (André), é importante ressaltar que não se trata da mesma pessoa, ou seja, este não é um relato autobiográfico e nada do que é narrado aconteceu realmente. No entanto, tudo o que é narrado poderia ou pode muito bem ter acontecido. Os detalhes meteorológicos correspondem ao que de fato se deu na ocasião: houve chuva não muito forte no princípio da noite. Houve consumo generalizado de drogas ilícitas, inclusive por menores de idade que, em tese, sequer deveriam estar ali. As pessoas pareciam felizes. O céu esteve parcialmente encoberto a maior parte do tempo, mas poucos ali diriam que aquela não foi uma noite bonita. Incidentes isolados facilmente controlados pelos seguranças e pela polícia. Luzes e cores e sons vindos do palco. Contatos imediatos. Nenhuma morte.


DESENV. André está dizendo a Fernanda que vai chover. Marcela está deitada na grama aproveitando que o lugar ainda não está cheio demais porque ainda faltam cinco horas. Rubens acende um baseado e traga e passa para Natália. Alfredo pensa vou embora depois do show e vou abrir a janela do quarto e vou ficar ouvindo as mesmas músicas outra vez até o sol nascer. Fernanda diz a André já escureceu e André não diz nada e ela então diz vai no máximo garoar. Rubens olha sorrindo para Natália enquanto ela traga e ela também sorri e pergunta o quê. Marcos cogita comprar uma cerveja mas desiste porque cinco reais é muito dinheiro por um mísero copo com 350 ml de cerveja ruim à temperatura ambiente, isto é, vinte graus. André e Fernanda estão trezentos metros atrás de Marcela, que está quinhentos metros à esquerda de Rubens e Natália, que estão cem metros atrás de André e Fernanda, que estão a poucos passos de Alfredo, que está cento e vinte metros à direita de Marcos. Marcela pensa em ligar para alguém, qualquer pessoa, muitos conhecidos estão vindo ou já estão por ali, mas depois pensa muito melhor ver o show sozinha. André e Fernanda ficam calados por alguns minutos. Rubens e Natália matam o baseado e começam a se beijar na boca. Alfredo pensa se eu chegar em casa e for direto para a cama é bem provável que eu sonhe com tudo isso. Marcos sente frio por alguns segundos e olha para o céu. O céu está encoberto mas as nuvens de chuva procuram se manter à distância, feito um exército esperando o momento certo de atacar. Não estão muito carregadas, entretanto. Nenhum sinal de chuva realmente forte. Alfredo pensa vou saltar pela janela do meu quarto e quase consegue ouvir o som de seu próprio corpo batendo na calçada molhada, e o som é estranhamente seco. André tem vinte e nove anos e Fernanda tem vinte e nove anos também, embora ela seja alguns meses mais velha e tenha nascido em 1979 e André em 1980. Marcela tem trinta e quatro anos. Rubens e Natália têm dezesseis anos e estão muito gratos à organização do evento por ninguém ter pedido suas identidades na entrada e continuam se beijando, ela usa uma camiseta preta e calça preta e um par de tênis brancos e ele veste uma camiseta azul e bermudas jeans e tênis brancos e no bolso esquerdo de sua bermuda ainda há um pouco de maconha para durante e depois do show. Marcos tem dezenove anos e ainda é virgem, mas já cheirou cocaína e experimentou ácido e curte os discos de vinil do pai, Jesus and Mary Chain, Pink Floyd, alguma coisa dos Beatles. Um tio de Fernanda esteve no Woodstock 94. O pai de André morreu em 1987, pouco antes da segunda partida da final da Copa União, partida vencida pelo Flamengo contra o Internacional por um a zero no Maracanã, tendo o primeiro jogo da final, no Beira Rio, terminado em um a um; o Flamengo foi campeão. O pai de Rubens e a mãe de Natália são primos distantes. Marcela esteve apaixonada por sua orientadora no Mestrado por quase três meses, depois desencanou e escolheu não gostar de ninguém, nunca mais, dizendo para si mesma e para o gestaltista com quem se trata estou velha demais para isso. Começa a garoar logo após o começo do primeiro show, uma chuva fina na verdade, mas não chove por muito tempo. O show principal faz com que eles esqueçam que estão ali há horas e horas. Alfredo ergue os braços e canta boa parte das músicas junto com a banda. André se limita a acompanhar tudo com os olhos, mexendo sutilmente a cabeça e às vezes os ombros. Rubens abraça Natália pela cintura, por trás, e ela amarra a blusa e abre a braguilha e ele insinua sua mão para dentro, os dedos se movimentando no ritmo da música, das músicas, uma após a outra, até ela pedir sorrindo para um pouco que eu mal tô me agüentando em pé. Marcos chora ao som da quarta canção do segundo álbum e berra alguns versos fora do tempo e do tom. Alfredo fecha os olhos e cerra os punhos pelo menos uma vez a cada canção. Marcela beija um desconhecido na boca pouco antes do primeiro bis. O desconhecido pergunta qual o seu nome. Marcela diz ninguém tem nome aqui hoje. O desconhecido acha isso um tanto sacal mas ela é bonita então foda-se. Rubens tira o dedo médio da mão direita de dentro de Natália e o leva a boca e ela gargalha dizendo seu nojento enquanto abotoa a calça e depois o beija e diz te amo. Fernanda reclama que suas pernas estão doendo e uma garota que está ao lado dela sorri e diz e daí. André sorri para Fernanda e para a garota que está ao lado de Fernanda e repete e daí. Fernanda encolhe os ombros como se não soubesse o que responder no momento exato em que a banda volta para o segundo bis e há uma explosão de cores e sons e luzes e todos começam a gritar ao mesmo tempo, incluindo Fernanda. Marcela chora quando eles retornam para um terceiro bis e diz baixinho uma só vez na vida e repete, sempre para si mesma, ela repete e repete uma só vez na vida. Rubens acende um baseado e Natália grita algumas palavras do refrão da última canção do último show de rock da vida deles, mas esta é uma outra história. Depois todos vão embora abraçados ou talvez tenha sido a imaginação de Alfredo, que também não está mais entre nós. Marcela e o desconhecido nunca mais se viram e sequer foram para a casa dele ou dela juntos e Marcos tomava uma cerveja na loja de conveniência da esquina quando André e Fernanda passaram de mãos dadas e em silêncio até ela dizer viu, não choveu e ele concordar sorrindo é verdade, não choveu.


CONC De fato, não choveu para valer.



(André de Leones nasceu em Goiânia (1980) e foi criado em Silvânia, no interior de Goiás. É autor do romance “Hoje está um dia morto” (Prêmio SESC de Literatura 2005) e do livro de contos “Paz na Terra entre os monstros”, ambos lançados pela Record.)











Arte: João Colagem










JANELA POÉTICA (II)



É um pássaro


Iara Carvalho



um nome secreto bem

no meio do meu corpo:


o que não traduz,

persiste.


o que contradiz,

descansa.


meu corpo invadido

esquece valentias

na hora do batismo.


morna essa água do meu nome.




(Nasci no Seridó do Rio Grande do Norte, nas terras áridas de Currais Novos, perto das águas do rio Totoró, do açude Dourado, do mar Gargalheiras. Serei Iara até quando eu couber no meu nome. Escrevo poesias desde sempre, que poesia é um jeito de ser. Existo no Grupo Casarão de Poesia, de braços abertos e alma à mostra. Estudo, porque não me sobra outra coisa. Um dia há de me trazer um livro, essa Poesia que me é)









OUVIDOS ABERTOS (I)


Por Fabrício Brandão



LOS BUNKERS – BARRIO ESTACION







Com dez anos de carreira e alguns discos na bagagem, os chilenos do Los Bunkers podem funcionar como uma espécie de grata surpresa para muita gente. Não se trata de afirmar que no trabalho deles exista uma gama de elementos capazes de os tornarem exóticos e, por essa razão, diferenciados. Talvez tal busca desenfreada e rigorosa por algo chamado originalidade seja um tanto perversa e, definitivamente, os moços não se enquadram nesse padrão. O fato é que Barrio Estacion, sexto cd do grupo, agrada pela sonoridade empregada em seus arranjos e, também, pela postura vocal de seus integrantes.


Durante as escutas das treze faixas do disco, há um quê de existencialismo pairando por quase todas as letras. São canções que abordam olhares sobre a vida e certas visões do amor. Todas elas movidas por uma espécie de inquietação sobre o que foi e o que será. Bom mesmo é saber que, em matéria de conteúdo, os rapazes não cometem o pecado do sentimentalismo barato. Entre todas as influências que compõem a atmosfera do rock melódico do Los Bunkers, sem dúvida alguma Beatles têm um peso considerável no trabalho da banda. Me muelen a palos, Anden, Si todo esto es lo que hay, El tiempo que se va, El mismo lugar e Tarde são faixas que servem como uma boa mostra da qualidade do álbum. Além disso, há a beleza de uma suavidade impregnada na instrumental Capablanca. Barrio Estacion é um disco leve, despretensioso e sem afetações passíveis de rótulos. Mora na simplicidade a receita para se cativar os sentidos.










Arte: João Colagem










JANELA POÉTICA (III)



Poema para o homem contemporâneo


Jorge Elias Neto



Que imagem do mar

te despertará da cegueira?


Que suplício do indivíduo

te resgatará do tédio?


Que requinte de perversão

te desviará do desterro?


Diz-me que a poesia não constrói sentido.

xxxQue ela não diz nada;

xxxxmal diz sobre as sobras.


Existirá realmente acaso

nesse azul derramado sobre teus ombros?


E esse cadarço do teu pé esquerdo

Que insiste em se lançar na vida?


Eis a liturgia do ser cético;

eis meu credo:

um poema diletante

que roga à tua carne

a fratura que os ossos recusaram.


Que tem uma ambição desmesurada:

o ressurgimento do homem

desse trono de lama.





(Jorge Elias Neto é capixaba de Vitória, médico cardiologista e poeta. Envolvido na tarefa de conciliar o tempo entre o palpável e o intangível. Sempre tentando descobrir a quanto dista o zelo do cientista, do abuso apaixonado do poeta com a palavra. Publicou Verdes versos (2007 – Flor&cultura) e prepara “Rascunhos do absurdo”)









Arte: João Colagem









ENSAIO DO CONHECIMENTO APROXIMADO


Por W. J. Solha*



Borges dá graças ao divino labirinto de efeitos e causas pelo firme diamante e a água solta; pela álbegra, palácios de precisos cristais; pelo mistério da rosa, que prodigaliza cor e não a vê... e pelo nome de um livro que não leu: Gesta Dei per Francos. Esse último verso me remete ao carismático título da tese de doutorado em filosofia de Gaston Bachelard: “Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado”, obra cuja leitura estou me devendo. Pelo que sei de seu conteúdo, no entanto, fala do “inacabamento fundamental do conhecimento”, porque – como também diz Karl Popper – apesar de todo o esforço da ciência, “a certeza não está disponível”. Acho que a essa angústia de todos nós devo meu constante trabalho com romances, mesmo com o risco de me tornar hermético para a grande maioria quando investigo temas com toda a profundidade que me seja possível, como fiz em “Zé Américo Foi Princeso no Trono da Monarquia”, em que se pode ver o quanto de Hamlet e Édipo há no romance “A Bagaceira” e nos autobiográficos “O Ano do Nego” e “Antes que me Esqueça”, do Homem de Areia; ou como fiz em “A Verdadeira Estória de Jesus”, em que explico a forma como pode ter sido criado um Cristo de ficção, o mesmo acontecendo agora, quando levanto a hipótese – em “Relato de Prócula”, que está para sair pela A Girafa - de que esse mesmo suposto messias existiu, mas como agente romano infiltrado entre os judeus para diluir sua resistência à Roma de Pilatos.


Assumo, com a ficção, que todo conhecimento é aproximado. Claro: a observar o óbito de um frango, prefiro o deslumbramento que tive na adolescência, no Teatro Municipal de São Paulo, ao assistir ao solo de balé “A Morte do Cisne” na clássica coreografia de Fokine, em que uma belíssima iugoslava dançava de costas, braços abertos a se mover como asas, ela nas pontas das sapatilhas, o torso nu repetindo ondulações que se prolongavam até as extremidades dos dedos, na agonia da alvíssima ave. Da mesma forma – com repugnância aos répteis - alumbrei-me com uma outra interpretação soberba, desta vez no cinema, a de Bob Fosse no papel de Ss-ss-snake, a Ss-ss-erpente de “O Pequeno Príncipe”. Alto, esguio, chapéu coco e todo de negro, visto de trás e do alto, ele caminha no deserto conversando sibilantemente com o menino, todo sinuoso como se avançasse na areia. E – sem a menor simpatia por cães sarnentos - foi incrível ver, ali no Piolin, um ator no papel de um cachorro, em O Vau do Sarapalha, numa performance que, não sem razão, mereceu do The British Theatre Guide o comentário sobre sua apresentação no teatro Barbican, de Londres:


- Servílio Holanda plays The Dog Jiló to perfection.


Aproximações por aproximações, prefiro realmente essas.





(* Meti-me em teatro, cinema, poesia, pintura - já os deixei de lado - permaneço romancista desde criancinha e quero ser Guimarães Rosa, Machado, Graciliano, Zé Lins e Euclides da Cunha quando crescer)











Arte: João Colagem









JANELA POÉTICA (IV)



LINGUAJAR


Héber Sales




a sintaxe se ocupa
da textura do dia

emenda com narrativa
as dobraduras do tempo

aquieta a palavra arredia.

com quanta gramática
e dicionário
se faz da vida
cotidiano?




(Héber Sales é poeta, ensaísta, professor e profissional de marketing. Edita o agregador Poesia Hoje e tem ensaios, entrevistas e poemas publicados em revistas como Cronópios, Germina, Diversos Afins, Digestivo Cultural e Portal Literal. Seus poemas estão reunidos no blog Coisas para fazer com palavras. E-mail: hebersales@gmail.com )










Arte: João Colagem










PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Fabrício Brandão



Transmutar antigos e novos ecos das nossas humanas idades para um lugar onde o lado sublime das coisas permaneça como motor central das razões. Ao que parece, tal pensamento atravessa a missão do artista enquanto um perseguidor obstinado pela essência de um tudo. E aquela delicada e intricada varredura da alma não se traduz num mero acaso. Pelo contrário, irrompe com um vigor que parte do olhar individual para o coletivo, perscrutando íntimas visões e chegando até a provocar revoluções no recôndito mais secreto dos homens. Associada a tal ideia está a habilidade em transformar imagens, percepções, escutas e revelações em algo que se consolide numa sensível jornada musical. Definitivamente, há algo instigante no trabalho de gente como o pernambucano Kiko Klaus, cantor, compositor e produtor cultural cujo olhar se debruça num ponto além dos sentidos mais óbvios.


“Vejo a estrada colorida/ vejo por outra perspectiva/ minha vida é pela vida/ ao contrário das estatísticas”, arremata com suavidade a intensa letra de A caminho do mar, um dos pontos altos de “O Vivivo e o Inventado”, mais novo disco de Kiko. Seguindo essa perspectiva, na qual a sensibilidade poética do artista aflora inconteste, o álbum traduz com precisão todo o vigor presente no processo criativo do cantor. Trata-se de um artista cujo trabalho se apóia fortemente em apelos imagéticos, tudo isso servindo como alimento fundamental de letras e arranjos devidamente equacionados a uma busca por novos caminhos sonoros. O pluralismo de expressões acompanha a carreira de Kiko, traduzidos também na experiência como produtor cultural e engenheiro de som ao lado de artistas como Naná Vasconcelos, Nação Zumbi, Lenine, Cordel do Fogo Encantado, dentre outros. De modo bastante receptivo, Kiko Klaus recebeu a Diversos Afins para uma breve conversa, compartilhando conosco um pouco de suas concepções sobre a carreira, seu diálogo com a poesia, suas buscas sonoras, a parceria com o percussionista Naná Vasconcelos e outros afins.





Kiko Klaus
Foto: Kilian Glasner




DA- Quem ouve seu mais novo disco pode perceber os apelos sensíveis girando em torno de uma atmosfera existencialista. Que tipo de observações impulsionaram marcantemente essa sua opção criativa?


KIKO KLAUS - Leio muita poesia, principalmente Drummond e João Cabral, que considero poetas existencialistas. O título do CD “O Vivido e o Inventado” veio inclusive do Poema Orelha, de Drummond. Tenho muita atração pelas questões humanas. Pela complexidade do que somos. Olhar atento às razões de estarmos neste mundo e de imaginarmos, criarmos esse mundo da forma que ele é. O mundo começa dentro de cada um e esse (auto) conhecimento me interessa muito. Acredito nos conceitos de energia discutidos pela física quântica e medicina oriental e questiono sempre o ponto de vista ocidental a respeito da existência e do ego. De certa forma tudo isso está no CD.



(*) Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas de tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem distingo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica
de cuidados terrenos:
e a poesia mais rica
é um sinal de menos.


(*) Fragmento do Poema Orelha, de Carlos Drummond de Andrade



DA - Em O Vivido e o Inventado, há uma força imagética que pulsa viva por todos os cantos, na qual cada ouvinte pode reorganizar os sentidos de modo íntimo e pessoal. Como você percebe essa possibilidade preciosa que a música tem de sugerir olhares sem criar amarras?


KIKO KLAUS - Busco nas canções a mesma sensação que sinto quando leio um livro instigante. Há varias imagens descritas ali, mas, mesmo que a descrição seja minuciosa, quem constrói os elementos verdadeiramente é o leitor, baseado nas suas memórias e experiências pessoais. Isso é mágico. As palavras e sons criam atmosferas em que cada um encontra significados e imagens particulares. Por isso, quando me perguntam qual significado de alguma letra, prefiro deixar por conta das percepções individuas dos ouvintes/leitores, para não cristalizar uma ideia específica e permitir que a mente voe. Acredito na obra artística como algo aberto e em constante mutação, onde o próprio criador vai descobrindo sentidos intrínsecos e peculiares. É como ir se descobrindo, se conhecendo.



DA - Suas origens remontam a Pernambuco, celeiro incessante de artistas nos mais variados campos. Na sua opinião, a que se deve toda essa efervescência de sua terra natal?


KIKO KLAUS - Desde a colonização do Brasil, Pernambuco recebe gente e culturas de diferentes partes do mundo. Da África, vieram várias etnias. Da Europa, as manifestações ibéricas populares e eruditas, muito influenciadas pela cultura moura, e inúmeras influências indígenas locais, criando um caldeirão maravilhoso, que, como desejou o mestre Gilberto Freyre, continua em constante reconstrução. Acredito que toda essa riqueza cultural, instiga e se transforma em arte constantemente. Daí a diversidade e efervescência.


“cada nação, cada geração, cada indivíduo tem não de criar mas como que de recriar sua própria cultura, reformando, ou mesmo deformando os valores recebidos de outros povos, de outras gerações de outros indivíduos; adaptando-os às suas necessidades; enquadrando-os a novas condições de espaço, de tempo e de personalidade". Gilberto Freyre



DA - Além do cuidado com as letras, seu trabalho revela uma atenção muito grande aos arranjos, fato que ajuda a perceber como a música, por si só, já encerra uma linguagem autônoma. Há um modo especial de equacionar tais elementos?


KIKO KLAUS - Acredito que os elementos utilizados nos arranjos devem traduzir o clima das letras, mergulhando em sua atmosfera e universo. Quando isso acontece, creio que o arranjo conquista autonomia e sentido próprio. Visualizo muitas imagens do imaginário brasileiro que fazem parte de minha história, e isso acaba remetendo a raízes percussivas brasileiras misturadas a influências que fui tendo na vida, como o flamenco contemporâneo do Ojos de Brujo, ou a musica visual de Naná Vasconcelos, ou os ruídos de guitarra distorcida do Arto Lindsay... Utilizei panelas afinadas no tom da música Aurora, por exemplo, para dar um caráter de vibrafone com atmosfera estranha, e misturei isso com derbaks e timbres orientais para remeter às imagens orientais da letra. Minha experiência como técnico de áudio e produtor musical também ajudou a criar texturas visuais utilizando a tecnologia.




Kiko em show com Naná Vasconcelos

Foto: Flávia Mafra



DA - Você se considera um experimentalista sonoro?


KIKO KLAUS - Totalmente. Adoro descobrir células e climas novos, harmonias curiosas, que levem para lugares particulares. Utilizar instrumentos peculiares que se adequam ao conceito de um tema sem me prender ao tradicionalismo. Trabalho com música e técnica de áudio há mais de 10 anos e adoro experimentar com tecnologia também.



DA - Como é que funciona a sua relação com a poesia?


KIKO KLAUS - No meu trabalho, letra e música têm a mesma importância. Leio muita poesia e gosto de sentir o ritmo das palavras como sugestão de temperamento musical. Vejo a poesia como um olhar diferente sobre o comum, tornando-o único e incomum. Sou um observador... Do mundo e de mim mesmo.



DA - De que modo a sua parceria com o percussionista Naná Vasconcelos redimensionou o seu trabalho?


KIKO KLAUS - Ele trabalha timbres e texturas orgânicas de uma forma absolutamente visual e fluida. Sabe como poucos combinar elementos e criar imagens ancestrais. Sou fã do trabalho dele há muito tempo e conheço bastante sua obra, o que já me levava a um imaginário brasileiro único e riquíssimo. Mas conviver com ele abre ainda mais horizontes musicais e humanos. Quando co-produzi o CD Minha Loa, que Naná lançou em 2002, foi como fazer uma pós-graduação, subir degraus na experiência da música e da vida. Fizemos shows juntos recentemente em Campinas e Belo Horizonte para mais de 5 mil pessoas em ambas as cidades. Momentos inesquecíveis. Faremos outras coisas juntos brevemente.



DA - Para quais direções apontam seus novos projetos?


KIKO KLAUS - Quero registrar o momento do meu trabalho de palco em DVD, pois chegamos a uma banda muito particular e sintonizada, potencializando as canções e mergulhando ainda mais fundo nas raízes e influências.


Desejo viajar com o show pelo Brasil e exterior. Tenho coisas agendadas nesse sentido, mas quero muito mais. O caminho é longo. Agora em julho estou indo para Nova York para me apresentar e fazer novos contatos.


Adoro criar trilhas sonoras, gravar, mixar e produzir discos e quero continuar fazendo isso paralelamente ao meu trabalho autoral com canção.


Quando finalizo um disco meu, já estou pensando em outro diferente. Meu processo criativo não para. Tenho um projeto com alguns músicos da minha banda, chamado Gafieira do Juvenal, que deve se realizar em 2010. Ritmos brasileiros, latinos e contemporâneos a serviço do salão. Para dançar e se divertir, mas sem perder a atitude nem o conteúdo. Quero conquistar espaços para poder ter mais estrutura e poder experimentar sempre mais. Amo o que faço e fazer contato com algo novo me faz sentir vivo.


Quero aprender muito e sempre, sem cristalizar num formato. E deixar algo musical e poético que seja relevante, que dê sentido à minha existência.










Arte: João Colagem








JANELA POÉTICA (V)



Viviane de Santana Paulo



e foi cair

a folha do Jacarandá

no tardio do olhar esbugalhado da

saltando para o lado

o sol lasso esparrama-se

no reflexo das recordações

à mercê da brisa

fenecendo sem fôlego

virando as bordas das palavras partidas

decalcadas pelos teus passos longínquos

a brisa carregando-as, embalando-as

como se não fossem reviver

breves e bravias

pronunciar-se em um lufo forte

revirar-se e emaranhar-se

saltar serelepes

em algum passo de dança da casualidade

como se não fossem

desfazer os vestígios de tua ausência

ou denunciá-los ainda mais

neste simples movimento indiferente

de uma folha caindo




(Viviane de Santana Paulo publicou “Passeio ao Longo do Reno” (poesia) e “Estrangeiro de mim” (contos), na Alemanha. A autora pertence à primeira geração de escritores brasileiros radicados no exterior. "Procuro criar um amálgama entre os valores heterogêneos das diferentes culturas, uma ponte entre a realidade brasileira e a internacional, e, também, fazer com que muitos leitores a transitem de um lado para o outro", revela a autora)









DROPS DA SÉTIMA ARTE


Por Larissa Mendes



Feliz Natal. Brasil. 2008.







Noite de Natal. Família reunida, troca de presentes, mesa farta. Sinônimo de paz e alegria, certo? Errado! Pelo menos no ponto de vista do roteiro de Selton Mello (em parceria com Marcelo Vindicato) e de sua ousada estreia na direção de longas-metragens. O jovem diretor atreve-se aqui em um enredo denso, que não vislumbra os mesmos recordes de bilheteria que o consagraram enquanto ator.


Feliz Natal conta a história de Caio (Leonardo Medeiros) e seu retorno à capital fluminense, para passar o final de ano com a família e os amigos. Entretanto, o afastamento provocado pelas circunstâncias, faz com que ele se sinta um fantasma dentro daquele grupo familiar e porque não, dentro de si mesmo. Ironicamente, sua presença é mais que notória e faz com que as “correntes” de cada personagem – ou seja, suas fragilidades – sejam arrastadas, provocando estranheza e reflexão.


eflexocando estranheza e voltem os amigos porra-louca, ao google para descobrir o que

O desfile dos incontáveis conflitos psicológicos dessa família é fruto de elogiadas atuações de Darlene Glória, Paulo Guarnieri, Lúcio Mauro e Graziella Moretto. Os atores mirins também merecem destaque, sobretudo nas cenas em que recorrem ao Google para descobrir o significado de palavras como barbitúrico e menstruação. Um fiel reflexo dos novos “educadores” desta geração.


Com uma fotografia sépia (analogia ao ferro-velho de Caio) e uma trilha sonora contundente, Feliz Natal é cadenciado de forma lenta sob um enquadramento nada convencional – os closes parecem eternos, como se a cada aproximação, pudéssemos tocar as amarguras dos personagens.


Ainda que fortemente inspirado no argentino O Pântano (de Lucrécia Martel), Selton Mello já registra indícios de um tom autoral, marcados por diálogos espirituosos (não seria difícil imaginá-lo pronunciando algumas falas) e por seu dedo workaholic (ele assina também a co-produção) a cada tomada.


Pode-se concluir que, na contramão do espírito natalino, o filme sabe explorar o lado melancólico do dia 25 de dezembro, onde rancores são desembrulhados com a mesma vivacidade dos presentes em volta da árvore e acusações são reveladas como o nome de um amigo oculto.




(Larissa, menina-catarina, é Bacharel em Turismo e Hotelaria, hóspede-cinéfila e turista no mundo das palavras)










Arte: João Colagem









JANELA POÉTICA (VI)



POSSE E DESFEITURA


Assis de Mello


memória de um certo umbigo-

gral que, de fundo e belo

poderia conter no vórtice

os ovos de um cuitelo )



1/2 lua

e a dança tua

deterei

neste tempo afoito


como tudo mais

que se move


E do fogo que ardia

em teu pelo

guardarei fagulhas:

súmulas do pasto

que me há saciado


Também

perpetuarei

xxxxtua boca

a lamber-m’a face

com fúria de lobo


e o que houve de probo

no olhar sem cautela

xxxxxandrajoso, roto

entre urros e coitos


Ah, e por que não

xxxxxainda

xxxxxxxxxxtrancafiar os retratos

das mãos obscenas

no chão

xxxxxxxxxxparque

xxxxxxxxxxxxxxxrelva

sem muito supor ?

(... se eram dedos de garoa fina

em pétalas de canção de pássaro...)


Do mais, manterei o vinco

Mas atarei, de soberba, ainda

teu umbigo cálido


E então, num arco de lua

co’a pele tatuada

xxxxxpor tua carne crua

e havendo dançado

xxxxxum súbito fado

farei dormir

xxxxxmeu sono pesado


(dormência de cobra

deste tempo afoito

- torcida no vidro

numa espécie de 8 )




(Assis de Mello é zoólogo e docente na UNESP. Escreve um pouco, pinta um pouco e fotografa um pouco. Apesar de ser cientista, passa 50% de seu tempo abominando Descartes e tudo aquilo que é excessivamente racional, pois está convicto de que certa irracionalidade deve trazer felicidade. Como zoólogo, especializou-se no estudo de grilos e insetos afins; ele suspeita que, se não for o maior especialista em grilos, deve ao menos ser o mais completo, uma vez que possui tanto grilos nas gavetas de seu laboratório quanto em sua cachola perturbada, porém lírica)










Arte: João Colagem










LITERATURA-SERTÃO


Ana Guimarães



É quando o texto carece de fecho. Onde o autor não tem receio de falar e desfalar. Bom seria ter os pastos demarcados, mas não, ali (aqui?) crespos e avessos convivem com a razão. sei que tudo sei, embora não tenha consciência. Neblinas sempre vão existir, o que não me impede de sonhar com dia claro, pouca nebulosidade – e sonhar é fazer. Sertão é querer tão forte que é poder. Flecha a cruzar um mar de territórios, seguindo o rastro do desejo, objeto e causa, ao mesmo tempo.


Os olhos caçam verdades, porém toda certeza logo se dissolve. Mergulho no rio mirando a margem (inventada) do lado de , paralela a de . Ledo engano, por mais que nade contra a correnteza chego em outro ponto diferente daquele que almejei: viver, além de perigoso, é imprevisível. É, sobretudo, não perder a capacidade de estremecer. Inchar de amor, sem se preocupar com correspondência.


Se toda saudade é uma espécie de velhice, envelheci. Sinto as faltas, testemunho as perdas cada vez mais perto do coração e da mente. Abraço lembranças com as asas de um pássaro gigante que não se cansa de crescer. O passado éossos em redor de ninho de coruja. O vento que leve as nuvens de tempestade.


Agora, felicidadeobjeto de luxo – é, paradoxalmente, deixar de pensar, esquecer. Não desgostar de ninguém, apenas... Adivinhar, se não entender. Lembrar, antes de acontecer. É estar vazio, pronto para ficar pleno. De sentido, inclusive e principalmente. Escuro que promete claridade. Aceitar que travessia é assim: no meio dela sou cego, de tanto real. E não posso mais voltar atrás, depois que atravesso os fantasmas.


Do nosso mal não se quer saber, mais fácil apontar no próximo. Muito se fala pra isso, pra (se) esconder. Essa ruindade nativa no ser humano é o Outro, nós mesmos. Quem é de fora escuta melhor. Amigo, mas estranho. Desarmado. Ouve e nada responde. A vida é ininteligível mesmo, não tem resposta. A vida da gente é... A vida nem é da gente.


Ficar calado é conversar com os mortos, estar no meio deles. De ouro não tem nada. Prefiro meu amor de prata (a palavra). Pacto eu faço pela linguagem, por ela vou à encruzilhada à meia-noite, prometo mundos e (virgens) fundos, e assino com o sangue que não verto. Vendo minha alma a fim de presenciar algum nascimento. Frasear, se possível, para agüentar o existir. Tecer algum divertimento em pleno front, até o feio da guerra pode alguma alegria, pois não?


O que peço (será muito?) é que a dor não me endureça, ao contrário, molhe minhas idéias, as fertilize, além da desordem, da interrogação e do desespero que germinam. Que essa máquina de tristeza que atira tão bem, atire também no criar, pondo, diante de mim, via escrita, as cores da redenção. Por enquanto, o horror me mortifica, a surpresa me faceia e a dúvida me cavalga, numa vacilação Riobaldiana:


Ah, agora quem aqui é que é poeta?

Agora quem é que é poeta?

Quem é qu’?

é poeta?

Quem é que é poeta?

Quem é – que?




(Trabalho com o que se chama de linguagem inútil: escutar (sou psicanalista) e escrever. Em ambos os ofícios o que importa é a verdade da fantasia. Cuido da arquitetura da ficção, da litura , essa rasura feita na palavra para descaracterizar o sentido. Continuo questionando-o, cada vez mais interessada no único possível que é dizer bem o impossível. Fazendo e refazendo, do começo ao fim, de frente para trás, ou vice-versa. Como o meu nome, um palíndromo)










Arte: João Colagem









JANELA POÉTICA (VII)



SOLILÓQUIO DE UM PERDIDO


Dimitri Padilha


À Jorge de Souza Araújo, professor e poeta



Não falo em chão, porque há muito não o sinto sob os pés.
Tenho pernas arrancadas, olhos que enxergam escravizados,
Boca e língua liquefeitos, sublimados.
Tenho no peito uma Supernova que aquece e resfria,
Pulsando a cada dia no imenso vácuo, sugando o que há de palpável
Nesse espaço acabado, degradado, isento, superficialmente sensibilizado.
Não me refiro aos braços amputados (ainda os vejo sobre a mesa)
Que sempre estiveram calados ao contato hansenico,
Ao cheiro suado de lençol insone sob luz apagada,
Da lua esquecida por poetas vivos, mortos a cada dia.
Hoje são os becos que caminham os homens,
Solitariamente acompanhados num arrastão de pessoas
Que não se vêem.

Pára humanidade, não caminha mais.




(Dimitri Padilha é um jovem poeta baiano. Músico, biólogo e “quase” estudante de direito. Escreve poemas desde criança, influenciado por seu tio (o poeta Telmo Padilha). Segue a linha existencialista, trazendo à tona a angústia do homem moderno escravizado pela falta de sensibilidade e efemeridade da vida e seu ciclo biológico. Já foi acusado de ser fisiológico, mas ocasionalmente é tocado pela estética feminina)








OUVIDOS ABERTOS (II)


Por Fabrício Brandão



ANA PAULA DA SILVA – CANTO NEGRO






Tome-se a mistura harmoniosa de voz e brasilidade e já se chega a um resultado atraente. Em seguida, acrescente na medida certa ao conjunto os dotes necessários para uma interpretação musical precisa. Daí em diante, cabe a cada ser tornar-se livre para realizar sua própria leitura, dando sentido ao que melhor lhe aprouver. Eis os elementos perceptíveis nas escutas do trabalho da catarinense Ana Paula da Silva. Canto Negro, seu primeiro disco solo, é hábil em realizar recortes vivos de ritos e costumes brasileiros. Seja na apreensão de um país múltiplo em crenças de Sincretismo, passando pelos lampejos futebolísticos de Gávea e chegando até os recursos rítmicos do sambinha presente em Canto Negro, pode-se perceber a noção de pluralidade que permeia o álbum.


Ana, além de articular a sua expressão com as feições de intérprete e violonista, aos poucos evolui no sentido de se firmar como compositora. São de sua autoria letras como Canto Negro, Claridade, Chega de zanga e Singela (instrumental), faixas que revelam a habilidade da artista em construir um texto sensível cujo teor se coaduna com arranjos cuidadosamente escolhidos. Por falar em arranjos, nesse quesito o disco se agiganta em qualidade, pois reúne elementos de samba, choro, jazz e ritmos africanos. Na belíssima Você é mesmo essa flor, um ambiente jazzístico eleva os sentidos ao grau máximo de suavidade, momento no qual a performance vocal de Ana Paula atinge um lugar todo especial. Certamente, os sentidos agradecem pelo significado de tal descoberta, ainda mais quando lhes são ofertadas doses significativas de vida.











Arte: João Colagem










JANELA POÉTICA (VIII)



CASULO


Elane Tomich



Vigia e não atina
com o descuido que abençoa
nossos sonhos tão estreitos.

Meu corpo é gruta onde ecoa
sustenido, refratário,
algum ai esperançoso.

O vinho não cai dos peitos!
Há uma seca de rotina
em desejos sedentários.

A mornidão desta sina
roubou-nos da pele a cor
pôs na forma, flacidez.
A alma cresce tão linda
com precisão de outra tez
sem as rugas de partida
na carcaça que não vinga.

Outra veste há de querer
de outonal parecer.

Espírito em casulo
há de voar cor em breve,

livre de si tão leve
_peso de dor tão nulo_
sem puídas despedidas.


(Nasci em Belo horizonte, final dos anos cinquenta. Menina de escola fui morar entre os Vales do Mucuri e Jequitinhonha, terra rude de almas doces, cenário dos "Grandes Sertões, Veredas... Desde então passei a escrever para os meus amigos da escola rural e virei uma contadora de história. Fui para Curitiba onde estudei e me casei. Professora na Universidade Federal, ali também contei as histórias dos imigrantes. Três filhos, três netos, assim vive meu coração, lançando ramas de nostalgias compridas, como são as distâncias onde plantei meus mortos e minhas esperanças)











Arte: João Colagem







PEGUETE


Lúcia Bettencourt



O nome foi cuspido com raiva, os sons saindo molhados e contundentes, na companhia de perdigotos:


- Peguete!


A intenção era ferir, humilhar. No entanto, a palavra raivosa foi neutralizada por uma risada orgulhosa e cristalina, livre da culpa e da vergonha. E a menina continuou saracoteando suas pernas finas, envoltas em botas e meias, encimadas por uma saia tão curta que mais parecia um babado.


- Beijar é bom!, ela admitiu sem culpa, sem remorsos.

A blusa com dizeres que a velha não compreendia caía por um de seus ombros, e deixava à mostra a alça do sutiã desnecessário, mas colorido e cheio de fitas como um chamariz.


- Esses homens querem te passar na cara, te usar, e te deixar mais imunda do que um pano de chão!

- Passar na cara? O que é isso?


A velha achou que a menina debochava, que zombava de seus avisos irados, mas bem intencionados. Na verdade, a garota não entendia o que a avó lhe gritava com tanto amargor e ressentimento. Era uma questão de vocabulário, a menina pertencia a uma geração sem lenços, sem culpas rodrigueanas, sensorial. Pensava apenas no beijo, nos diversos e variados sabores do beijo, nas texturas. A avó não entendia que ir a uma festa sem beijar era o mesmo que, em outras eras, teria sido ir à festa sem provar os brigadeiros e cajuzinhos, hoje desaparecidos.


- Vergonha!, uivou a velha, que desejava evitar a qualquer custo que a menina saísse de casa, e que por isso tentava chegar à porta de entrada, para trancá-la e sumir com a chave dentro do decote.

- Vovó, me dá isso aqui! Está ficando doida? Vai me colocar em cárcere privado?


Pois a garota estudava, ia a bons colégios, falava inglês e francês, tinha estudado balé e agora fazia aula de violão e de ginástica. Ela sabia das coisas, falava com correção, sem os erros habituais daquela geração. Sua boquinha vermelha, pintada com gloss sabor cereja, se destacava carnuda no rosto pálido, infantil. Com uma força insuspeitada, ela segurou o pulso da avó e venceu sua resistência. Abriu a porta, quis beijar a velha como despedida, mas a mulher, magoada, empurrou-a.


- Você me dá asco!

- Que é isso, vó? Não encana! As coisas hoje são assim, diferentes. Qual o problema em beijar?


- Prá começar, é anti-higiênico!


A menina riu. Seria essa a objeção maior? Aquela avó que até pouco tempo atrás molhava o dedo no cuspe e esfregava no seu rostinho de criança para tirar a marca de doce que as duas comiam escondido da mãe? Aquela avó que às vezes a deixava ir para o colégio sem tomar banho, ou fingia que não tinha percebido que ela não tinha escovado os dentes?


- Tomar coca-cola na latinha também é nojento, aquele mate da praia que você gosta também deve ser uma sujeira só… Desencana, vó, é a tal da vitamina S.

E, rindo e sacudindo a cabeça, entrou no elevador que escancarava a porta, já sem pensar no episódio, fazendo apenas uma revista de possíveis bocas a serem beijadas. A galera do colégio já não a interessava, meninos e meninas já tinham sido beijados mais de uma vez. Primeiro selinhos, quando eles ainda eram tímidos e inseguros de suas capacidades como beijadores. Depois os beijos de língua. Alguns eram realmente nojentos, com garotos desinformados que achavam que beijar era trocar cuspe. Outros realmente espetaculares, como a da menina que lhe ensinara como a língua pode e deve ser usada para o prazer, uma língua fresca e intrometida, que tomou posse de sua boca e a deixou ansiosa por mais. Ela pisou resoluta na calçada, encontrou com os amigos que já estavam esperando e ali mesmo trocaram beijos rápidos, uma espécie de promessa para a noite.


Em casa, sozinha, a velha remoía seu despeito, pensando nas muitas coisas que já ouvira a respeito dos desmandos dos jovens. A neta, quinze anos, não tinha nada da ingenuidade de seus passados quinze anos, de valsa e festa. Lembrou-se de seu vestido rosa, com as flores de tecido presas ao ombro esquerdo. As luvas e o primeiro sapato de salto alto. Colar de pérolas, presente da avó materna, brincos de pérola, presente da avó paterna. A mãe com um vestido justo, de tafetá roxo e uns repuxados de filó cor-de-rosa. O rapaz, seu par da valsa, vermelho demais de tanto sol, os olhos verdes sorridentes, contemplando-a. Tudo tão puro, tão cristalino, tão inocente. O primeiro beijo trocado a susto, no corredor, apressado e desajeitado. O pedido de namoro. Suspirou, saudosa dos tempos em que sua boca não era murcha, quando as palavras de amor brotavam fáceis. O tempo secara sua boca. A solidão diminuíra seus lábios. Foram tão poucos os beijos que trocara. Ela se sentia humilhada, tantos anos de vida, tão pouca experiência… Mas custava-lhe entender que sua própria neta beijasse e se deixasse beijar apenas pelo ato. Como beijar sem se comprometer? Como ser beijada sem cobrar um compromisso? Ela não entendia isso. Mas a neta estava feliz. Era uma menina saudável, alegre. No entanto… ela tinha medo, duvidava daquela felicidade. Como seria o futuro da garota? Desse jeito, ela em breve passaria do beijo para outros carinhos e já, já estaria trazendo namorados para seu quarto ainda cheio de bonecas, mas já abrindo espaço para pôsteres de cantores, imensos painéis de fotografias, que ela rearranjava quase todos os dias. E ela se angustiava, lembrando do comentário que escutara numa reunião de amigas da filha, quando uma delas se referiu à namorada do filho como uma “peguete”. “Você sabe, não? Aquela que todo o mundo pega”. Era esse seu medo, não queria que sua neta ficasse com essa pecha, e, no entanto, ela mesma cuspira a palavra em cima da garota, seu medo fazendo-a antecipar a possível injúria. As lágrimas escorreram pelas suas faces secas, penduraram-se nos cantos caídos de sua boca.


No bar, a turma ria e se divertia. Conversas e risadas, bebidas apesar da falta de idade. O tempo passava acelerado, as bocas se aproximavam e se afastavam. Outras bocas se testavam, algumas se encontravam e permaneciam exclusivas, afastando-se, aos poucos da brincadeira inconseqüente. A menina, de repente, sentiu-se cansada, quis ir para casa. Encontrou a avó sentada na sala, adormecida em frente da televisão.


O último beijo da noite foi na testa da avó, depois de ajudá-la a ir para a cama. A velha acariciou seu rosto, maravilhada com as faces tão jovens, de carne tão firme, lábios tão polpudos. Prometeu:


- Amanhã te dou um caderninho.

- Caderninho? Prá quê?


- Prá você anotar os nomes, querida. Como Don Juan…


A neta não entendeu, mas era muito tarde, as duas estavam cansadas. E, mesmo depois da explicação, ela talvez não entendesse a simbologia das listas. Mas não importava. As pazes estavam feitas.




(LB é carioca, estuda literatura, escreve contos e sonha que está vivendo...)










Arte: João Colagem










JANELA POÉTICA (IX)



Fragmentos diários


Leila Andrade



Encontrar o dia é uma verdade

Amarelada para tantos


O amor é recôndito

Desconhecido por outros


Os passos seguidos duros

De uma vida que muito revela


São amantes dos mistérios

Sobretudo os que cultuam deuses










Arte: João Colagem






* A fragmentação das formas presentes no trabalho do artista plástico goiano João Colagem, radicado na Holanda há alguns anos, vai muito além de uma abordagem meramente crítica do homem. As garras sensíveis de sua tesoura varrem um universo vasto de sentidos e outras tantas possibilidades da existência, talvez à procura de respostas para uma tamanha inquietação frente à miríade dos mistérios humanos. O que já existe e paira diante de nossos olhos é reinventado para amalgamar toda a matéria da qual somos feitos enquanto seres supostamente racionais. É nesse momento que surgem outros seres capazes de abrigar, num leito de vivas contradições, as porções cômicas e trágicas das mais óbvias criaturas. Quiçá o reconhecimento de nossas imperfeições seja valorosa virtude.


 
publicado por Fabrício Brandão
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