CICERONEANDO
Cada palavra sentida, processada e depois expelida em verbos mais parece apontar para vãos entreabertos que perscrutam alma e coração humanos. É como se estivéssemos todos a buscar mínimas escutas sobre ecos que um dia foram nossos e, por razões das mais indecifráveis possíveis, vazam nos espaços invisíveis onde projetamos incansáveis e sôfregas imagens. E, mesmo peculiar a um idêntico aglomerado de racionais, a palavra explode como se fosse a primeira certeza que não anoitece prematuramente. Desengavetam-se bem mais do que um baú de efusões, medos, fantasias ou devaneios. Signos são expulsos na horda dos instantes e vão buscar abrigo longe, muito longe de sua pátria natal. Olhares se devotam intensos a perseguir os versos de gente como Vera Americano, Patrícia Ferreira, Ildásio Tavares, Sonia Regina, Tanussi Cardoso e Floriano Martins. Em meio a verbos e revelações pungentes, a arte sensível do paraibano Sérgio Lucena tece as tramas de uma realidade singularizada em telas e desenhos. Nas linhas de um inconteste livro vivo, Petria Chaves, José Geraldo Neres, Tekka Whitman e Sérgio Luyz Rocha compartilham conosco porções da existência. Um pouco das percepções do trabalho essencialmente humanista do artista plástico Canato está registrada numa breve conversa. Larissa Mendes desfila seus comentários cinéfilos ao redor do grande vencedor do Oscar 2009. Com os sentidos em prontidão, rendemos escutas aos novos trabalhos musicais de Mariana Aydar e Lula Queiroga. São trinta e duas vias percorridas com muita dedicação, caro leitor, para proporcionar a você um perene desengavetar de expressões!
*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.
JANELA POÉTICA (I)
MAÇÃ
Vera Americano
a perfeição
vem
do rigor.
a doçura
subverte
o conjunto.
*
sob a pele
hermética
o sabor do éden
negociável
a cada mordida.
*
esmero
e lustro
suntuosamente
armados
sobre o prato.
os sentidos
hesitam:
repentina afeição.
*
o fruto
silencioso
resgata a função
dos dentes.
na contramão,
o desassossego
pela ruptura iminente.
o nexo?
esse foi devorado,
em desatino.
Pintura: Sérgio Lucena
AS PUPILAS ILUMINADAS
José Geraldo Neres
Elisa banha-se nas horas. Lava cada palavra co
O te
Elisa lança suas paixões pelos degraus do inferno e u
A pausa que se ter
O te
(José Geraldo Neres é poeta, ficcionista, roteirista, com dois livros: “Outros silêncios”, poesia, Prêmio Programa de Ação Cultural - ProAC - Concurso de Apoio a Projetos de Publicação de Livros no Estado de São Paulo, 2008 (Escrituras Editora, 2009); “Pássaros de papel” (Projeto Dulcinéia Catadora, edição artesanal, SP, 2007)
JANELA POÉTICA (II)
COERÊNCIA
Patrícia Ferreira
da segunda vez
pronunciou meu nome com farpas
calculando perfeitamente distâncias
de sombras entre vogais
seu desejo pitagórico de coerência
implanta ângulos em meus ouvidos
(Patrícia Ferreira é artista visual, professora de artes plásticas (SESI/SENAI), mestre em letras e lingüística (UFG) e doutoranda em letras e lingüística (UFG). Adora música punk, grindcore, heavy metal, black metal, death metal, new wave, stoner rock... enfim, adora música! Também curte literatura, comer pipoca no cinema e beber cerveja com os amigos. Publica seus poemas no blog coletivo Vida miúda)
OUVIDOS ABERTOS (I)
Por Fabrício Brandão
LULA QUEIROGA – TEM JUÍZO MAS NÃO USA
O que faríamos se pudéssemos agarrar com mãos habilidosas metade das coisas que nos são atiradas pelo fluxo incansável do pensamento? Certamente, seria um trunfo, mas ainda assim uma conquista com ares bem relativos, pois talvez o devido juízo iria nos deixar desamparados, titubeando em incertezas tão nossas. Gente que se atira a esse tipo de constatação é, no mínimo, atraente, pois ousa tecer as tramas complexas daquilo que bem somos – os tais seres racionais imbuídos em pecar pela miopia da repetição. Então, fica inevitável deixar passar a ideia de que “todo grande amor vem de um coração burro”, intensamente apregoada pela sonoridade do talentoso cantor e compositor pernambucano Lula Queiroga, no instigante canto de Coração burro. Para ouvir Tem juízo mas não usa, terceiro disco solo do artista, é preciso se desgarrar daquelas velhas verdades empoeiradas e percorrer um caminho desprovido de convicções que engessam o olhar.
No disco não faltam poesia, sugestão, ironia, e, sobretudo, um amplo painel no qual sons se transformam em imagens vigorosas. É como se o texto da vida saltasse à nossa frente e nos chamasse para intervir a qualquer custo. Lula atravessa com propriedade as vias sonoras de suas percepções, muitas delas embebidas em memória e embaladas num voraz jogo de palavras famintas por lampejos da alma. Some-se a essa preciosa articulação textual a qualidade presente nos arranjos das canções. Mesmo se tratando de um álbum completo, é possível destacar o efeito que faixas como Você não disse, Altos e baixos, Tem juízo mas não usa, Fulana, Barulho da gota e a belíssima Geusa são capazes de produzir aos nossos sentidos. As participações de Lirinha, Lenine e Alceu Valença contribuem para afinar o coro da qualidade musical presente no disco. Modernidade e experimentações sonoras unem-se a serviço dessa verdadeira viagem rumo ao labirinto de nós mesmos. Definitivamente, ter juízo é algo deveras questionável.
JANELA POÉTICA (III)
AS CASAS
Ildásio Tavares
As casas desta cidade,
suas coroas farpadas,
são cemitérios
de vivas almas penadas.
Escondidas por detrás
destes espinhos,
os seres desta cidade
em túmulos fazem ninhos
Os seus projetos
de cama e mesa propícia
são dirigidos por máquinas
de engrenagem subreptícia.
E, assim, nas rodas,
das rodas gira
quem muito te ama
e te admira.
(O escritor baiano Ildásio Tavares pertence à geração Revista da Bahia. Tradutor, professor de inglês e literatura americana, publicou três livros de poesia na década de 70: Imago, 1972, Ditado, 1974 e O Canto do Homem Cotidiano, 1977. Em 1980, publica Tapete do Tempo, em 1996, Poemas Seletos, entre outros. Os melhores nomes já se expressaram sobre sua poesia. Nelson Werneck Sodré diz: "É fácil compreender a alta qualidade do poeta. Em primeiro lugar pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou, as diferentes maneiras de dizer a verdade")
CIRCO
Petria Chaves
O que resta é esse nó. De garganta, de sentimento, de vida passada e vivida. De dizer que já fui sua, minha alma, cada pulso, cada susto, cada laço. De recordação que a gente vê passar na frente e não acredita que passou. Qual vida? Aquela quase morte. Aquela que pululava, rainha. Ainda existem. Desse vulcão que mora aqui dentro, de cores e vertigens. Que periodicamente insiste
(Petria Chaves é menina, por vezes pedra, por vezes chaves, por vezes não sabe o que quer. É jornalista, está de mudança, está de cabelos
JANELA POÉTICA (IV)
as águas novas
Sonia Regina
o tempo não é somente uma linha
do emaranhado que toca os sonhos
com uma nesga de direção
observa. há um começar para quem vive
a descer do mundo sem dele despencar
as mãos não se abrem só para se soltarem:
há no gesto uma nascente. a cabeceira de
um rio soberano que murmura
tu o escutas? é brando ainda o sussurro.
opera desde o leito, a firmeza das águas novas.
como o sangue renovado das artérias, elas fluem
e não mais contornam obstáculos: ultrapassam-nos.
(Poeta por paixão, psicóloga por vocação, professora por talento, mãe por amor, mulher do mundo por missão, artista por mistério… Sonia Regina. Soreg, simplesmente, como assina os seus trabalhos de arte digital)
PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão
Um dos aspectos valiosos em torno do universo da arte é a pluralidade de signos e sentidos que uma mesma obra pode encerrar. Para além das acirradas discussões que se arrastam em torno da permanência da aura do objeto artístico, algo deve ser levado em consideração – a necessidade do aprimoramento do olhar através das percepções sugeridas pelo vasto terreno da sensibilidade. Ao mesmo tempo, apegarmo-nos ao viés da subjetividade nem de longe deve representar qualquer sinal de negligência a cânones e referências consolidados no contexto histórico da humanidade.
A expressão artística, enquanto instrumento motivador de uma transformação efetiva, é capaz de extrapolar noções herméticas e, por assim dizer, elitistas para promover uma aproximação com pessoas tradicionalmente postas à margem nesse intricado jogo interpretativo. E há quem ouse a se enveredar com propriedade por esse terreno. Exemplo vivo disso está no trabalho do artista plástico paulista Cláudio Canato, cuja arte revela-se capaz de transcender meros espaços contemplativos e nos propõe um diálogo no qual as acepções de beleza invariavelmente buscam se abrigar no sagrado das coisas. Utilizando-se de temas que permeiam aspectos sociais e simbólicos, a obra de Canato se agiganta quando os olhares se voltam para as nuances humanas expostas nas mais variadas expressões de suas telas. Ali, cada forma, tom ou gesto refletem um pouco das densidades tão presentes no espírito dos homens. Conversando conosco, Canato fala um pouco sobre seu processo criativo e influências, os rumos da arte contemporânea e alguns outros assuntos que o posicionam como um artista definitivamente engajado com as questões de seu tempo.
Foto: arquivo pessoal
DA - Sua arte, sobretudo através dos recortes humanos, reflete um experimentar de sensações que percorrem tons existencialistas. Que tipo de desejo orienta esse seu olhar?
CANATO - O desejo de ser uma pessoa melhor e de tentar fazer do mundo um mundo mais humano, mais justo e, se possível, mais belo. Através desses recortes, vejo a mim mesmo multifacetado. Tento entender melhor quem sou, principalmente no que posso me transformar e, dessa forma, contribuir como artista e como ser humano. Acho que essa é uma maneira de ser e existir, de experimentar e absorver o mundo, sofrer e viver de forma intensa o real. Viver é uma estética. Sem essa experiência o artista não cria de verdade. É preciso intensidade e muita entrega para entender o mundo e poder interpretá-lo, traduzi-lo, pintá-lo e transcendê-lo.
DA - A estética Barroca e Renascentista que atravessa a sua obra enaltece o propósito de representar as expressões humanas com mais vivacidade e precisão. A opção por tais escolas sempre fez parte de seu trabalho?
CANATO - Os dois momentos são insuperáveis. Ali estavam de fato os “mestres da pintura” e fizeram tudo de tudo de forma impressionante. São minhas duas maiores fontes, das quais absorvo todos os ensinamentos em termos de pintura. No meu começo, não acreditava ser possível fazer algo tão grandioso. E mesmo hoje parece meio pretensioso, mas esse foi o pensamento que sempre norteou minha busca pessoal. Experimentei várias estéticas diferentes, linguagens mais estilizadas, quase abstratas, sempre mergulhado em experimentalismos que, evidentemente, ajudaram a construir meu modo de ser e de pensar.
O Barroco talvez seja a escola que mais me fascina, mas a Renascença foi “o grande momento” da arte. Meus trabalhos devem muito a Botticelli, Ticiano, Caravaggio, Rembrandt e a todos que trago dentro de mim. Sem a ajuda deles eu não teria conseguido certos avanços técnicos. Essas foram influências escolhidas a dedo, mas sempre com a preocupação de ser eu mesmo. Sou da pintura e, definitivamente, um artista da figura. Posso dizer que não foi simples chegar até aqui. Não é tarefa fácil, hoje em dia, trilhar tais caminhos, mas é o que gosto de fazer e o que tenho de mais verdadeiro dentro de mim. O importante é fazer o que se acredita. Não vejo necessidade de romper com nada, nem abandonar nada para ser novo, seja suporte, seja técnica, e, principalmente, o que se acredita. Basta ser você mesmo, isso só já faz de um trabalho único. O importante é produzir de forma honesta e o mais sincera possível. E produzir com amor, isso é essencial.
DA - Certa feita você assinalou que havia muita falta de preparo por parte de gente que se propõe a ensinar arte, aspecto que muitas vezes chega a limitar em demasia a criatividade dos aprendizes. Isso ainda é muito frequente?
CANATO - Infelizmente, assistimos hoje a uma total banalização das coisas, dos valores, e o ensino não ficou livre desse fenômeno. A crise do ensino se reflete diretamente na crise atual da arte. Embora haja uma preocupação cada vez maior com a educação, não se pode dizer que o que se ensina, na maioria das escolas, seja arte, com raríssimas exceções. O ensino de arte foi reduzido a meros trabalhos de “dia dos pais”. Muita coisa precisa ser mudada. Embora muitas pessoas bem intencionadas e preparadas estejam conseguindo realizar seus projetos, ainda há muito por fazer.
Gosto da ideia de ensino multidisciplinar com a arte permeando todas as outras matérias, o que tornaria o aprendizado mais significativo e menos mecânico. O professor assumiria o papel de gerenciador de capacidades e de estimulador de talentos.
Quando o talento existe, deve ser estimulado no mais alto nível. O professor deve, antes de tudo, detectar as diferentes capacidades dos alunos para melhor aproveitá-los. O bom educador é aquele que está atento às mudanças e principalmente às oportunidades em sala de aula, saber como e quando usar a arte para uma maior e mais eficaz absorção do conhecimento por parte do aluno. Estou desenvolvendo um projeto ligado à educação infantil que espero possa contribuir um pouco no desenvolvimento dessas capacidades. Espero um dia ver a arte no lugar que é dela por direito e não como matéria transversal. Sonho em ver a arte presente na vida das pessoas não como entretenimento e passatempo, mas integrada à própria vida, e as pessoas, de fato, fazendo um uso mais consciente dela. Talvez aí o mundo melhore.
DA- Ainda há a questão de que criatividade e domínio técnico nem sempre fazem par constante...
CANATO - Em decorrência da deficiência do ensino, é cada vez mais raro encontrar um artista mestre de seu ofício, que domine de fato alguma técnica. Bons pintores estão quase
Particularmente, vejo esse momento com certo otimismo, tudo é cíclico, tudo se esgota para novamente renascer, renovado. Vejo nessa crise uma nova oportunidade para a pintura e percebo que os experimentalismos contemporâneos, bons ou maus serviram para provar que o belo é essencial para o ser e que o público deve e quer ser respeitado e está sempre ávido por arte de verdade.
DA - Há um viés social muito forte na sua série Pessoas à Margem. Acredita que a arte pode atenuar certos incômodos tão nossos?
CANATO - A arte não só pode atenuar esses incômodos como pode transformá-los. Leonardo dizia que “O belo toca o coração...” e acho que, de forma irreversível, as pessoas se transformam através da arte e cabe a elas transformar o mundo.
A série Pessoas à Margem foi extremamente importante no meu processo de crescimento como artista e como ser humano. Tive oportunidade de conhecer pessoas e ter contato com realidades totalmente diferentes da minha, que me fizeram questionar tudo e querer mudar tudo.
DA - Como você percebe a questão da sobrevivência da aura do objeto artístico face a um mundo tão cheio de ruídos e distorções interpretativas?
CANATO - A aura do objeto artístico nunca morre. As interpretações equivocadas, por mais que atrapalhem e deturpem a visão da obra, não tiram do objeto artístico sua aura. Nos séculos XX e XXI, a arte sofreu duros golpes, as subsequentes rupturas foram esvaziando o conteúdo da produção, sobretudo na produção mais recente. Os ruídos são muitos, mas não prevalecem sobre a verdadeira obra de arte, que permanece independente das opiniões e da crítica. A obra verdadeira é independente, autônoma e atemporal. A arte pura nunca morre, o objeto artístico nasce eterno e pode até, num primeiro momento, ser desprezado e restar esquecido por séculos em algum porão, mas, quando vem à luz, é por todos reconhecido e reverenciado.
Tenho uma teoria: a medida do gênio de um artista está diretamente relacionada ao tempo que sua obra leva para ser entendida e aceita. Se um trabalho leva cinquenta anos para ser compreendido, o artista estava cinquenta anos à frente do seu tempo.
DA - Corremos sérios riscos atribuindo valores a tudo o que se apresenta nessa enxurrada?
CANATO -
O homem que não possui a música em si mesmo,
Aquele a quem não emociona a suave melodia dos sons,
Está maduro para a traição, o roubo e a perfídia.
Sua inteligência é morna como a noite,
Suas aspirações sombrias como o Erebo.
Desconfia de tal homem! Escuta a música.
Shakespeare
A resposta a essa pergunta é sim, é preciso muito discernimento. Nunca se viu tamanha quantidade de informações. Hoje elas nos chegam de todos os lados e por todas as mídias. É um fenômeno sem precedentes e que tem como resultado a banalização da informação e de todas as coisas. Infelizmente, a obra de arte também foi banalizada. Mais do que nunca é preciso saber separar o joio do trigo, pois os carniceiros atacam sem piedade.
Há alguns anos, uma matéria do Arnaldo Jabor dizia que “a arte contemporânea se encontrava num beco sem saída”. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, vivemos hoje o que ele chama de “Anomia Ética e Estética”, as artes moderna e contemporânea devem ser reavaliadas. São pensamentos que devem ser levados a sério, pois muito do que hoje se produz “artísticamente” é lixo e passa despercebido nessa enxurrada.
DA - A série Os Doze Trabalhos de Hércules marca um momento muito especial em seu trabalho, equilibrando os contornos vivos de formas e expressões das personagens com uma valiosa pesquisa histórica. O que mais o motivou a recriar esse verdadeiro ícone mitológico?
CANATO - De fato, é um bom momento, momento de muita segurança. Pela primeira vez, sinto-me no domínio pleno do meu trabalho, livre para criar. Não quero dizer que tenha chegado ao auge, mas acredito que minha produção mais verdadeira começa agora.
Trabalho nessa série há pelo menos dez anos. Sou apaixonado por mitologia e principalmente por simbologia, e os Trabalhos de Hércules me fascinam desde pequeno. Lembro que meu primeiro contato com o herói foi nos livros de Monteiro Lobato. Esse é um mito fascinante e recriá-lo foi como desconstruir a mim mesmo, e o mais interessante foi descobrir que somos todos heróis em potencial.
Existem duas maneiras de se ler um mito: uma é literal, lendo-o pura e simplesmente como uma história, imaginando outros mundos, seus heróis, seus monstros e seus deuses, o que, por si só, já é extraordinário; porém, a outra, e ainda mais fascinante forma de leitura, é indagando o que realmente esta história quer nos contar, é ler buscando seu real significado, sua verdade, que vai muito além das aparências, e que, de certa forma, nos traz de volta desta viagem imaginária, ao percebermos que os mitos nada mais são que imagens de nós mesmos, são contos que ilustram, fantasticamente, nossas próprias histórias.
DA - “A Pintura é o retrato dos mais belos sonhos da Poesia”. O quanto esse pensamento ajuda a dimensionar seus olhares?
CANATO - Essa é uma frase que me foi dedicada por um querido amigo anos atrás. É um pensamento que me ajuda a entender o mundo ou, pelo menos, vê-lo de outra forma, com olhos de poeta.
O poeta trabalha imagens da mesma forma que o pintor. As duas artes são muito íntimas e o diálogo entre elas é muito rico. O artista lê o mundo através do que eu chamo de “códigos do belo”. Esse é um olhar diferenciado, que vê beleza em tudo e tudo através da beleza. Arrisco até a dizer que nós, pintores, também somos poetas, poetas da cor.
JANELA POÉTICA (V)
Tanussi Cardoso
Alimentar aranhas,
eis o meu ofício.
Deixá-las criar tentáculos.
Moscas mansas
apaixonadamente sangrar.
Cuidá-las para tecer
os pequenos vícios
do seu tear:
venenos sutis
tatos improváveis
-vivê-las.
Redescobrir as cores
as sedes e as sedas.
Entrelaçar as sendas
do meu destino nelas:
véus de astúcia
morte e viuvez.
Decifrar sua dança:
rede de valsas
fios de arame.
Aprender com elas
o ritmo do salto.
(Tanussi Cardoso é carioca, formado em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica/RJ, e Bacharel em Direito, pela Bennett/RJ. Dedica-se em tempo integral à literatura, em especial à poesia, além de ser crítico, contista e letrista de MPB)
DROPS DA SÉTIMA ARTE
Por Larissa Mendes
Quem Quer Ser Um Milionário? (Slumdog Millionaire). Inglaterra/Índia. 2008.
Qual o maior trunfo de Quem Quer Ser Um Milionário? A. uma boa história; B. um elenco coeso; C. um bom diretor; D. uma montagem instigante. Resposta correta: todas as alternativas anteriores.
Está escrito: este filme é muito mais que um jogo de perguntas e respostas. Portanto esqueça os dalits e brâmanes da novela das oito ou qualquer modismo indiano. Com um orçamento modesto, pouca publicidade e sem atores famosos, Quem Quer Ser Um Milionário foi o grande vencedor do Oscar 2009, com oito estatuetas (melhor filme, diretor, roteiro adaptado, fotografia, edição, trilha sonora, canção original e mixagem de som).
Baseado no romance Sua Resposta Vale Um Bilhão (no original Q&A), de Vikas Swarup e dirigido pelo brilhante Danny Boyle (que não fazia um filme tão ousado e ágil desde Trainspotting), Quem Quer Ser Um Milionário conta a história de Jamal Malik (Dev Patel), um jovem indiano que se inscreve em um programa de perguntas na TV para ganhar 20 milhões de rúpias. Na verdade, o jogo não passa de um pretexto para reencontrar Latika (Freida Pinto), seu grande amor de infância.
É impossível digerir a história sem lembrar do clichê da “escola da vida”, onde as respostas de Jamal nada mais são que produto de suas próprias vivências no submundo de Mumbai, ao lado do irmão Salim (Madhur Mittal). O conhecimento empírico e subjetivo do participante, aliado à sorte e intuição, se sobrepõe aqui a qualquer genialidade ou trapaça.
Com uma visão não-apelativa, a história transita com sutileza pela densidade de temas como tráfico, trabalho infantil, fanatismo religioso e prostituição, debruçando-se sobre a deterioração e a regeneração do ser humano. O resultado é o retrato de uma espécie de miséria “ensolarada”, onde as mazelas de Jamal são transformadas numa fábula atemporal e porque não, universal. Contrário do longa brasileiro Cidade de Deus (narrativa cruamente realista regada de palavrões, cenas de sexo e violência) – ao qual Milionário foi insistentemente comparado, principalmente por sua estética.
Com maestria subliminar, o enredo faz ainda uma metáfora de Os Três Mosqueteiros da obra de Alexandre Dumas. Personagens que, ironicamente, parecem acompanhar o protagonista ao longo de sua jornada, construindo assim um paralelo entre os três meninos de rua e a personificação de Athos (na figura de um Jamal protetor e devoto à magia do destino), Porthos (representado pela excentricidade, truculência e hedonismo de Salim) e, finalmente, Aramis (uma Latika sensível, leal e forte).
A edição ritmada repleta de flashbacks bem costurados e a entusiasta trilha sonora garantem que até mesmo a dispensável coreografia final – com perdão do trocadilho, uma homenagem de Boyle ao estilo bollywoodiano – não comprometam a originalidade do filme. Certamente o espectador sairá do cinema cantarolando Jai Ho (que significa aleluia): as estatuetas estão em boas mãos.
(Larissa, menina-catarina, é Bacharel em Turismo e Hotelaria, hóspede-cinéfila de ouvidos atentos e turista no mundo das palavras)
JANELA POÉTICA (VI)
SOPRO NO ESCURO
Fabrício Brandão
Ei-la, a madrugada reinante
A governar as horas aceleradas.
Misturam-se anseios à insônia induzida
Por uma sede indefinida de vida.
Junto ao silêncio cortante
Um levante à Elis,
Voz densa e sentida
Rangendo nessa escuridão amiga.
Parecemos íntimos,
Perfilando sensações cristalizadas
Do incorrigível espírito humano.
Sim, somos, de fato,
Repetitivos seres da mesma agonia.
Velamos a dor
Em meio a acessos descarados de loucura,
Crentes de uma solidez invisível,
Reclamando atenção dos que padecem de idêntico mal.
Nem tanto desejo
A suspensão desvairada dos instantes,
Pois sei dos signos encerrados
Na lentidão que agora se faz mister.
O menino foi deixado, então,
Deitado sobre o solo comum da espera.
Sequer trouxeram-lhe a chave,
Apenas sussurraram-lhe promessas de liberdade.
Mas ele não se abala.
O afago que vem das mãos amadas
Lhe permite cruzar a estrada,
Partindo em direção à praia perdida.
RONDA
Tekka Whitman
Pega-se um bonde chamado desejo, vai-se até a Central do Brasil, corta para Sunset Boulevard. Descer
(Tekka é escritora bissexta, de natureza bipolar, mas não morde. Mora em Brasilia, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais. Não quer ser imortal, posto que é chama. Mas quer viver, enquanto dure)
JANELA POÉTICA (VII)
REINO DE VERTIGENS
Floriano Martins
dedicado a Socorro Nunes
Teu corpo e o meu caindo sobre o mundo:
noite saqueada por uma caravana de relâmpagos.
Despojos do tempo foragido de sua fonte,
minando abismos à deriva, perdas flutuantes.
O rosto deformado da beleza que as ruínas cultuam,
linguagem extraviada ao querer entrar em si.
Teu corpo e o meu em sua queda mais secreta.
Um labirinto que fosse um deserto e um deus
ciente que dali não há retorno. Fuga de trevas.
Os disfarces fatais da memória ante o infinito.
Indetíveis sombras caindo sobre o mundo.
Teu corpo e o meu: o que resta de um no outro.
(Floriano Martins é cearense e já publicou alguns livros, entre poemas, ensaios, traduções e preparação de antologias alheias. Edita uma revista virtualíssima, a Agulha. Tem uma incorrigível inclinação para envolver outras pessoas em tudo que faz, em decorrência do que certamente estejam em curso projetos dentro e fora do país, envolvendo a publicação de livros e a organização de eventos)
OUVIDOS ABERTOS (II)
Por Fabrício Brandão
MARIANA AYDAR – PEIXES PÁSSAROS PESSOAS
Há alguns poucos anos, mais precisamente em 2006, o primeiro trabalho da paulistana Mariana Aydar chamava atenção pela personalidade em torno das sonoridades muito bem selecionadas de seu repertório. Kavita 1 já revelava que a moça colocaria com firmeza os pés na complexa estrada guiada pela música. No entanto, o tempo passou e aquela intimidade de outrora, sobretudo definida em gêneros como o samba, evoluiu e tomou forma agigantada em seu mais novo trabalho. Peixes Pássaros Pessoas é um álbum que expõe em vivas cores a maturidade musical vivenciada pela artista, cuja qualidade maior está no ápice vigoroso de sua interpretação, tudo isso aliado a valiosas composições que servem para posicionar Mariana como uma das representantes de peso da nova música brasileira.
Certamente, a receita para o sucesso de Mariana está na capacidade que ela possui de equilibrar tradição e modernidade. Some-se a isso também uma seleção de canções que são fruto de novos e bons compositores, tais como Duani, Romulo Fróes, Carlos Renó, Roberta Sá, dentre outros. O belo samba Florindo abre as alas do disco com propriedade. Em seguida, somos servidos de intensas escutas em torno de Beleza (faixa que conta com a participação preciosa de Mayra Andrade), Manhã azul, Peixes, Nada disso é pra você, O samba me persegue (com Zeca Pagodinho) e da intimista Tudo o que eu trago no bolso (com Lanny Gordin). A temática das relações das pessoas com o mundo e um certo tom existencialista pontuam muito bem a essência do disco. Além do samba, Peixes Pássaros Pessoas traz em suas vias arranjos vestidos em baião e jazz. O canto sensível de Mariana Aydar é capaz de converter as imagens aqui desenhadas num lugar sublime. A voz não se cala jamais e, em cada alameda do disco, pulsa um desejo humano recorrente, o de agarrar, com o apelo dos sentidos, outras esferas nossas do entendimento de si e do outro. Por aqui, um tudo escorre melódico, atraente e intenso.
JANELA POÉTICA (VIII)
RITUAL
Leila Andrade
hoje acordou tão perto
uma vã falta de nexo:
a dor do sonho noturno
que se instaurou
longe das mãos,
confundida na respiração
um breve desassossego:
há em cada dia um rito
de passagem
O silêncio da deserção
Sérgio Luyz Rocha
Até onde sei calei-me não de um silêncio convicto, mas de um vazio de olhares, calei-me da ausência de verbos irregulares que pudéssemos conjugar sem pressa numa única pessoa enquanto os festejos perseguissem as horas. Calei-me de marés altas e da fartura as tantas, calei-me de conveses abandonados e porões inda mergulhados na tinta fresca da memória. Calei-me de silêncios entrincheirados argutos acompanhando-me os passos, e calei-me das aventuras impróprias que adormeciam antes que eu retornasse dos caminhos incorpóreos do sonho. Calei-me das agressões que me lamberam as faces e me atiraram aos leões, calei-me dos milagres viciados nas esquinas, das aparições paridas no cortejo fumegante dos cafés, calei-me para ver-te dançar, requebrar-se cabrocha, contorcer-se odalisca, misturar-se aos sons inaudíveis da extrema-unção. Calei-me das terminologias, das aliterações, calei-me das dormências e dos sacrifícios, calei-me de calores incontidos e dos bons modos e quando arremessado contra a turba calei-me num voo cego. Até onde sei, procurei nas fechaduras, ranhuras, brechas, portas entreabertas calar-me mais do que pensei e apenas ressenti o mal dos carinhos noturnos. Calei-me amanhecendo com as fuças ainda cheias de sua genitália, calei-me no corte da navalha e na lavanda das prostitutas, e calei-me destas cruezas abstratas que desenham seres pavorosos nos noticiários e incensam as poucas verdades veladas atrás das portas. Calei-me dos trovões e dos ruídos que desciam as escadas na ponta dos pés; bailarinos meninos escondidos vizinhos deitados ao meu lado. Calei-me destas cerrações que nos fazem sombras dentro das espirais de um mundo em movimento, e calei-me destes mesmos movimentos puxando todas as gavetas de um caminho de pedras e fragmentos e vísceras e autores catalogados no silêncio das bibliotecas. Calei-me das especiarias e sob o cutelo dos magos calei-me por definição e muito mais do que devia.
(Sérgio Luyz Rocha é paulistano dos altos de Santana e escreve desde sempre porque as palavras assim querem; ele mesmo não tem querer. Filósofo pela Universidade Federal de Sergipe e educador, acredita que as artes e a educação possam salvar a Humanidade, no mais, é pura circunstância)
* O essencial